São Paulo, domingo, 01 de setembro de 2002

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Segredo a quatro chaves


Em "O Julgamento de Kissinger", o jornalista Christopher Hitchens faz um duro balanço da carreira do ex-secretário de Estado dos EUA e Nobel da Paz em 1973


Gilberto Felisberto Vasconcellos
especial para a Folha

Responsável por genocídio de civis na Indochina, em Bangladesh, em Timor Leste, em Chipre, derrubador de Allende, responsável pelos mortos e desaparecidos no Chile, admirador de Pinochet, assassinatos, sequestros, torturas, conselheiro de segurança de Nixon, 20 mil norte-americanos mortos no Vietnã entre 68 e 72, tendo orgasmo acionando os bombardeiros dos aviões B-52 em cima do Camboja, com 600 mil mortos civis e 350 mil no Laos.
Incrível sua capacidade de matar. Além de useiro e vezeiro em grampear telefone nos Estados Unidos. Meu Deus, como é que um homem com tamanho currículo de maldade e atrocidade consegue dormir tranquilo em sua vida de longevo aos 80 anos? Não só consegue, como ele se acha o máximo, o gostosão, o bacanudo da política internacional nos últimos 30 anos.
O doutor Henry Kissinger -eis o que surpreende o jornalista Christopher Hitchens- nunca deu o menor sinal de arrependimento do que fez. Não se sente culpado de nada. À luz da psicanálise, Kissinger foge à regra: ele é capaz de manter psiquicamente a quatro chaves o segredo. Não tem necessidade de confessar. Nem de pedir perdão.
Aliás, muita gente o admira. Tanto que já ganhou o Prêmio Nobel da Paz. Diplomata o mais citado.
Depois de revelar os podres de Kissinger, o autor desse livro achava que iria ser processado, mas isso não aconteceu. Por incrível que pareça, muita gente quer ouvir o que Kissinger tem a dizer, cobrando US$ 30 mil por palestra. Afinal ele foi professor catedrático de Harvard. De acadêmico a conselheiro de segurança nacional de Nixon. Do exercício da cátedra à práxis do extermínio em vários lugares do mundo.
Do filósofo Sócrates a Kissinger alguma coisa mudou na atividade de ensinar. Um, lá na Grécia Antiga, teve que tomar cicuta depois de dar aulas; o outro ganha rios de dinheiro em Nova York, dono de uma consultora particular, "Kissinger Associates", espécie de forrado Cebrap que estabelece contratos e planejamentos entre corporações multinacionais e os governos, American Express, ITT Lockheed, Banca Nazionale del Lavoro, Coca-Cola, Fiat, Midland Bank.
Nesta "reportagem investigativa" somos informados de que o professor medíocre subiu na vida através da adulação e da ausência total de escrúpulos. Judeu alemão, com a ascensão do nazismo, veio morar nos Estados Unidos.
Em sua carteira de identidade está grafado o antimarxismo. É célebre sua frase para justificar a derrubada de Allende no Chile: "Não vejo por que temos de ficar parados enquanto um país se torna comunista pela irresponsabilidade de seu povo".
Se tivesse comandando a segurança dos EUA em 1964, certamente teria ajudado a derrubar João Goulart.
Secretário de Estado de 1973 a 1976, durante o embargo do petróleo pela Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), Kissinger não viu com bons olhos a invenção tecnológica do Pró-Álcool entre nós. Auto-suficiência energética dos trópicos? Um imenso Japão na América do Sul? Nem pensar. Fato é que, desde então, o Proálcool está morrendo devagar que nem d. Sebastião em Alcácer-Quibir.
Kissinger esteve no Brasil durante o período Geisel, mas não se cogitou aqui em condecorá-lo, diferentemente do que teria rolado em março de 2002: o governo brasileiro tinha a intenção de homenageá-lo com a Ordem do Cruzeiro do Sul...
O doutor Kissinger hoje já não pode mais fazer suas viagens pelo mundo sem ser atingido por tomates. Em tempo: inglês, o autor deste livro não é nenhum americanofóbico -tanto que defendeu a invasão dos EUA no Afeganistão depois do 11 de setembro. "Petróleo oblige", diria Noam Chomsky.


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de, entre outros, "Biomassa - A Eterna Energia do Futuro" (ed. Senac).


O Julgamento de Kissinger
192 págs., R$ 32,00 de Christopher Hitchens. Trad. Adelina França. Editora Boitempo (r. Euclides de Andrade, 27, CEP 05030-030, SP, tel. 0/xx/11/3875-7250).



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