São Paulo, domingo, 01 de outubro de 2006

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Duplo Warhol

Documentário exibido nos EUA investiga a formação e as obsessões do criador da arte pop

ROBIN POGREBIN
Andy Warhol -cujos quadros que tinham por tema latas de sopa Campbell capturaram seu fascínio quanto ao mercado dos EUA- aparentemente não exerceu atração recíproca entre as empresas patrocinadoras quando o cineasta Ric Burns saiu à procura de apoio.
"Foi muito, muito difícil levantar a verba", diz Burns sobre o processo de busca de patrocínio para "Andy Warhol - A Documentary Film", incluído na programação de "American Masters", série de documentários biográficos da rede pública de TV PBS. "Tive de provar às pessoas que ele foi um grande artista", diz Burns, que ainda precisa obter US$ 225 mil [R$ 484 mil] em verbas para completar o orçamento de seu filme de US$ 3,6 milhões e quatro horas de duração.
Burns, que realizou com sucesso documentários biográficos sobre o dramaturgo Eugene O'Neill e o fotógrafo Ansel Adams, diz que Warhol, morto em 1987, aos 58 anos, continua a ser uma figura controversa, porque algumas pessoas não consideram que suas empreitadas, que tomam celebridade e comércio como temas, mereçam a classificação de "arte". "A ambivalência que ele suscita é incrível", diz.

O sonho americano
Donald Rosenfeld, que produziu o filme em parceria com Daniel Wolf, sugeriu que nem todos são capazes de ver além da superfície do personagem que Warhol construiu. "Trata-se do sonho americano, mas, para as corporações, há sempre o perigo de que seja um pesadelo americano", diz Rosenfeld. "As pessoas o consideravam um pouco transgressivo demais, escancarado demais."
O filme localiza as raízes de Warhol, desde a infância, em Pittsburgh, onde cresceu pobre, inibido em termos físicos e sonhando ser Shirley Temple.
O filme revela detalhes que as pessoas que não fazem parte do mundo das artes talvez desconheçam. O sobrenome do artista era Warhola, até que o tipógrafo de uma revista para a qual desenhava anúncios omitiu o "A", e Warhol preferiu deixar o erro passar sem correção.
Ele fez plástica no nariz e passou por prolongado tratamento para amaciar a pele ainda antes dos 30 anos. Sua mãe se mudou para a casa dele em 1952 e morou com o filho por 20 anos. Porque ele costumava entregar suas primeiras ilustrações comerciais embaladas em sacos de papel pardo, os colegas o apelidaram de "Raggedy Andy" [Andy Esfarrapado, marca de um boneco de pano].
A maior parte das pessoas supõe, incorretamente, que Warhol fosse tão "poseur" e pretensioso quanto sua aparência indicava, diz Burns. "A posteridade dele foi obscurecida por aquela imagem de Andy usando um casaco de couro preto, peruca e óculos escuros", afirma. "Será que as pessoas realmente acreditam que ele nasceu daquele jeito?"
Embora Warhol normalmente seja associado de maneira muito firme a algo que representava essencialmente um disfarce, Burns diz que o artista não levava essa imagem a sério.

Lado vulnerável
De fato, queria que as pessoas se aproximassem, queria se sentir integrado. O filme tenta explorar esse lado vulnerável, quase infantil.
O desafio que Burns enfrentou no filme foi criar de um trabalho de mídia sobre uma criatura que manipulava a mídia com muita destreza. Burns diz que compreendeu de imediato que não deveria optar por uma abordagem estilizada ou por uma abordagem que arremedasse as ousadias de Warhol. Na verdade, diz, ele caminhou no sentido oposto e optou por "trabalhar da maneira mais convencional que pudesse".
Warhol foi um artista obsessivamente prolífico, produzindo em um ano mais do que certos pintores produzem em toda uma vida. "Ele estava deliberada e intencionalmente competindo com Picasso e costumava perguntar quantos quadros Picasso pintava por dia", diz.
Burns também veio a respeitar o cinema de Warhol tanto quanto suas pinturas. Um espectador do século 21 talvez encontre dificuldade para apreciar os prolongados exames de minúcias cotidianas que compõem tamanha parcela do cinema de Warhol: um corte de cabelo, um beijo, um homem dormindo, oito horas do edifício Empire State.
"Andy defendia a idéia de observar alguma coisa por muito tempo, de assistir a alguma coisa enquanto se modificava", diz Burns. "Era observar uma pessoa da maneira que um pintor observa -contemplando de maneira profunda o que está acontecendo-, e seus filmes são uma licença ilimitada de observação. O espectador se torna um grande voyeur. Está espionando -e sabe disso."
O documentário de Burns não torna fácil a tarefa de quem deseja amar Warhol. O artista é inescrutável e -nas raras ocasiões em que fala- frustrantemente reticente.
Embora explore o lado sombrio de Warhol, o documentário é também uma celebração despudorada de seu trabalho, classificando-o freqüentemente como gênio e como uma das mais importantes figuras artísticas da segunda metade do século 20. "Quando você encontra um exemplo de algo genuíno, a vontade é levantar da cadeira e comemorar", diz Burns.
"Andy era um artigo raro, precioso, um dos grandes artistas gerados por uma democracia de mercado", acrescenta. "O objetivo é que as pessoas celebrem -com senso crítico- um homem profundo, complicado e inacreditavelmente talentoso, cujas realizações continuaremos a ponderar por ainda muito tempo."


Este texto saiu no "New York Times".
Tradução de Paulo Migliacci.


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