São Paulo, domingo, 01 de outubro de 2006

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Viciada em Freud

Romance narra a relação de Marilyn Monroe com seu último psicanalista

PATRICK KÉCHICHIAN
Mito moderno e portanto simplista, Marilyn Monroe [1926-62] convém de maneira bastante perfeita a nossos sonhos -sonhos que a indústria cinematográfica e a fotografia cuidadosamente enquadraram. Mas Michel Schneider de maneira nenhuma tenta encontrar espaço entre os biógrafos e os pesquisadores que estudaram a vida de Marilyn, com especial predileção por seu cadáver.
Seu romance ["Marilyn -Dernières Séances", Últimas Sessões, ed. Grasset, 532 págs., 20 euros, R$ 57] constitui mais um sonho que se vem somar aos outros sonhos, uma divagação ou uma especulação -especialmente sobre a morte.
O interesse dele por Marilyn, na forma pela qual se manifesta, não se enquadra no campo do fascínio, do amor frenético por um ícone.
Verdadeiramente "viciada em Freud", Marilyn Monroe conseguiu ser tratada por quatro psicanalistas diferentes, em sua curta vida, entre os quais Anna Freud, filha do fundador da disciplina, com quem se consultou em Londres no final de 1956. Em janeiro de 1960, a atriz começou aquela que seria sua última experiência analítica. Optou por Ralph Greenson, um médico conhecido, nascido no Brooklyn em 1911, filho de judeus russos, que fez amizade com Freud em Viena em 1933.

O astro do inconsciente
Depois que começou a clinicar em um consultório em Beverly Hills, Greenson se tornou "o astro do inconsciente freudiano "made in Hollywood'". Um de seus colegas chegou a dizer que ele constituía "a espinha dorsal da psicanálise na metade oeste dos EUA".
Peter Lorre, Tony Curtis, Frank Sinatra e Vincente Minnelli se estenderam em seu divã. A análise de Marilyn duraria 20 meses. Estabeleceu-se uma relação pouco ortodoxa entre a atriz que Anna Freud definira como "paciente longe do ideal em termos analíticos" -devido a sua angústia, depressão e carência infinitas- e um profissional que navegava de acordo com as próprias luzes, com uma bússola idiossincrática, e incapaz de refletir devidamente sobre a distância que o separava de sua paciente.
De fato, certo dia Greenson propôs o problemático conceito de "aliança terapêutica" [acordo de confiança recíproca entre paciente e analista] como "método para resolver os impasses da transferência". "Mas até que ponto isso vai, essa terapia por meio do amor?", perguntou um dia um colega agressivo e ansioso, Milton Wexler.
"Incompatíveis e inseparáveis, Marilyn e Ralph queriam acima de tudo se perder. Não romper, mas se perderem um no outro."
Na noite de 4 de agosto de 1962, Marilyn foi encontrada morta em sua casa, provavelmente por suicídio. "Foi a morte que a matou. Pessoa nenhuma, nem ela nem ninguém", concluiu Truman Capote, amigo da atriz: uma forma de conduzir o enigma ao seu nível justo, longe da anedota e da ilusão. "A quem você pertence?", perguntou Greenson a sua paciente. "Ao medo", ela respondeu.
Afresco apaixonante e minucioso, mas jamais pesado ou impreciso, sobre um mundo reduzido à dimensão de Hollywood com seus cenários, miragens, complôs e um imenso elenco de figurantes magníficos ou medíocres -Clark Gable, Yves Montand, John Huston, George Cukor, Billy Wilder, Lee Strasberg e também John e Robert Kennedy-, o romance de Schneider é muito mais do que uma reconstituição de época.
O texto faz surgir, sob uma luz complexa e ambivalente, as duas figuras, a da atriz e a de seu terapeuta. Mesmo assim, entre Marilyn em exposição perpétua ("em superexposição", como disse Joseph Mankiewicz) e o psicanalista que se apóia nas regras da psicanálise como um equilibrista caminhando em corda bamba, a festa não é conduzida apenas a dois.
Propagador de todas as ilusões, espelho de solidão refletindo o vazio, o cinema é a um só tempo um parceiro e uma forma de revelação.
Demonstrando admirável disponibilidade com relação a seu tema, Schneider construiu e orquestrou seu romance com inteligência notável. E, subitamente, uma imagem há tanto tempo fixa, aprisionada no mito, ganha vida e consistência. "De um mito, eu precisava criar uma pessoa."


Este texto saiu no "Le Monde".
Tradução de Paulo Migliacci.
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