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Punição da pobreza
EUA E EUROPA OCIDENTAL VÊM ADOTANDO MEDIDAS POLICIAIS E JURÍDICAS PARA TENTAR LIDAR COM OS EFEITOS PERVERSOS DAS POLÍTICAS NEOLIBERAIS
ADALTON MARQUES
ESPECIAL PARA A FOLHA
Desde há muito tempo, os noticiários
informam sobre a
chamada "guerra
entre os comandos" e sobre as operações policiais em áreas tidas como críticas -assim chamadas pela intelligentsia policial- no Rio de
Janeiro e em São Paulo.
Nas últimas semanas, essa
"intermitente guerra duplamente articulada" ganhou, novamente, visibilidade na grande mídia.
Era a vez do Rio de Janeiro.
Os jornais televisivos transmitiram as imagens de um helicóptero da Polícia Militar "pegando fogo" em pleno voo, instantes após ter sido alvejado
por projéteis disparados por algum poderoso armamento,
empunhado pelas mãos de algum "criminoso".
Também assistimos a cenas
de tiroteios, de pessoas ensanguentadas diante das câmeras,
de choro, de desespero. No dia
25 passado, as forças públicas
já contabilizavam mais de 40
mortos e outros tantos feridos.
Sem bem-estar
Não há dúvidas de que se está
no calor de uma hora que já se
alonga por anos... No olho de
um furacão que ainda não conhecemos bem, nem sua natureza nem sua extensão, tampouco sua intensidade. É preciso um exame meticuloso.
Sobre as operações policiais,
a crescente preocupação governamental com segurança aparece como uma importante pista para os analistas que se esforçam na produção de conceituações que respondam aos
problemas impostos pelos
acontecimentos em tela.
Nessa senda, é indispensável
considerar os estudos de Loïc
Wacquant, com destaque para
os livros "Os Condenados da
Cidade" (Revan, 2001), "As Prisões da Miséria" (Jorge Zahar,
2001) e "As Duas Faces do Gueto" (Boitempo, 2008).
O autor vem detectando um
amplo processo de transformação nas sociedades avançadas
do capitalismo ocidental -mas
também na América Latina.
Consiste, fundamentalmente, na realização daquilo que
denomina "punição da pobreza", conjunto de medidas elaboradas para administrar os
efeitos das políticas neoliberais, decorrentes do abandono
sistemático das regulamentações de bem-estar social.
Mutação histórica
Sobre os rejeitados da sociedade de mercado intensificam-se as políticas públicas de polícia, jurídicas e prisionais, seja
como forma de substituição
(no caso dos EUA), seja como
forma de suplementação (no
caso da Europa ocidental) das
políticas de educação, saúde,
seguridade e habitação.
Em suma, Wacquant fala de
uma mutação histórica na qual,
simultaneamente, processa-se
o fenecimento do Estado de
bem-estar social e a prosperidade do Estado penal.
Procedendo desse modo,
Wacquant faz um vigoroso deslocamento em relação às noções de Estado neoliberal correntes durante a década de 90.
Pois, ao invés de voltar-se para os conceitos prontos, dando
as costas às mutações históricas, o autor se volta para as relações que atravessavam esses
Estados.
Ele mostra que suas constituições ocorrem na própria
operação das estratégias governamentais (aproximando-se
fortemente dos ganhos teóricos fornecidos por Michel Foucault em suas já clássicas análises sobre o Estado).
É preciso fazer o mesmo para
analisar os casos do Rio de Janeiro e de São Paulo: deslocar o
diagnóstico de Wacquant em
proveito do que vem sendo observado.
Afinal, os modelos de substituição e de suplementação das
políticas de Estado de bem-estar social pelas políticas de Estado penal não parecem pertinentes para pensar o Brasil,
que nunca chegou a consolidar
algo parecido com um Estado
de bem-estar.
Com relação às chamadas
"guerras entre comandos", as
melhores pistas têm sido dadas
por pesquisadores que se debruçam sobre esses coletivos
sem utilizar os tradicionais vieses jurídicos.
Evitam, assim, tornarem-se
analistas estatais a observar as
degenerescências (ou exotismos) de um mundo não oficial.
Estudo de relações
Merecem destaque o livro
"Um Abraço para Todos os
Amigos - Algumas Considerações sobre o Tráfico de Drogas
no Rio de Janeiro", de Antônio
Rafael Barbosa (Eduff, 1998), a
dissertação "Junto e Misturado
- Imanência e Transcendência
no PCC", de Karina Biondi
(Universidade Federal de São
Carlos, SP, 2009), e a tese
"Fronteiras de Tensão - Um Estudo sobre Política e Violência
nas Periferias de São Paulo", de
Gabriel Feltran (Universidade
Estadual de Campinas, 2008).
Nesses escritos, em vez de
nos depararmos com os péssimos conceitos prontos "crime
organizado", "criminalidade
organizada", "Estado paralelo",
"sindicato do crime", "máfia" e,
ainda, com a improdutiva divisão binária entre "trabalhadores" e "criminosos", encontramos uma meticulosa atenção às
relações que atravessam os objetos estudados.
Essas duas frentes analíticas
são imprescindíveis para trazer
para fora do inominável esse
estado de coisas intolerável.
ADALTON MARQUES é mestrando em antropologia social na USP.
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