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São Paulo, domingo, 02 de fevereiro de 2003

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Autor de "O Teatro de Sabbath" explica por que não se considera um escritor judeu americano

A velocidade da América e a tradição da impermanência

por Philip Roth

Nunca me considerei, nem no tempo de uma única frase, como um escritor judeu americano -ou americano judeu. A consciência que tenho de meu país, devo-a a escritores em sua maior parte nascidos na América 30 a 60 anos antes de mim, tempo em que milhões de pobres deixavam o Velho Mundo pelo Novo e no qual imigrantes que falavam iídiche, vindos da Rússia e do leste da Europa, iam, como tantos outros, encher pardieiros em nossas cidades. Os escritores de que falo não sabiam grande coisa do meio familiar de um garoto como eu, oriundo, de forma muito tipicamente americana, de quatro avós judeus expulsos da Europa pela pobreza no século 19 e de pais criados num país do qual se consideravam parte integrante. De fato, nascidos na Nova Jersey do começo do século 20, meu pai e minha mãe conheciam a felicidade de estar em casa na América, embora não ignorassem que a maioria de seus "superiores" por direito divino os estigmatizavam como raça desprezível, embora tivessem se tornado adultos numa América que, até a década do pós-guerra, excluía sistematicamente os judeus de boa parte da vida institucional e profissional. Consciência da América Os escritores que formaram, mas também ampliaram, a consciência que tenho da América são em sua maioria filhos das pequenas cidades do Meio-Oeste e do Sul. Nenhum deles é judeu. O que fez com que eles fossem o que são não foi, portanto, a imigração em massa dos anos 1880-1910, que arrancou minha família da sujeição do gueto e do controle da ortodoxia religiosa, mas sim o declínio da vida e dos valores rurais, suplantados por uma civilização dos negócios sempre mais invasora em sua busca do lucro. O que os fez o que eles são foi a industrialização de uma América agrária que conheceu sua explosão nos anos 1870 e que, ao oferecer trabalho às hordas de operários imigrantes, acelerou sua assimilação, bem como a americanização, pela escola pública, de seus filhos.
Esses escritores conheceram o cadinho das cidades industrializadas e as provas impostas ao proletariado urbano, que galvanizavam o movimento sindical, e também a avidez dinâmica dos capitalistas onívoros, com seus trustes e monopólios. Em uma palavra, eles foram moldados por essa força que, desde os balbucios do país, está no princípio mesmo de sua experiência e que ainda hoje sustenta sua lenda: uma mudança sem descanso, desestabilizadora, e as transformações da paisagem nacional que ela acarreta -uma mudança à escala e à velocidade da América, a impermanência absoluta como tradição duradoura.
O que me levou a ler esses autores, na inocência de meus 16, 17 ou 18 anos (penso, entre outros, em Hamlin Garland, nascido no Wisconsin, 1860; em Theodore Dreiser, nascido em Indiana, 1871; em Sherwood Anderson, nascido em Ohio, 1876; em Ring Lardner, nascido no Michigan, 1885; em Sinclair Lewis, nascido no Minnesota, 1885; em Thomas Wolfe, nascido na Carolina do Norte, 1900; em Erskine Caldwell, nascido na Geórgia, 1903), o que me levou a lê-los foi minha grande ignorância desses milhares de quilômetros da América estendidos para além da costa atlântica norte e da velha cidade portuária de Newark, na Nova Jersey, onde cresci. É verdade que nasci numa família específica, numa época específica, que travava lutas muito específicas, mas eu haveria de escolher, também, ser o filho desses escritores e, por meio da implacável intimidade da literatura, de sua qualidade concreta, de sua atenção arrebatada aos detalhes, por meio da paixão pelo singular e da aversão ao geral que são a carne da ficção, haveria de penetrar a América deles para conhecê-la tão bem quanto a minha. O fascínio que a singularidade desse país exercia estava em seu auge durante o pós-guerra, quando, ainda ginasiano, passei a explorar as prateleiras da biblioteca municipal de Newark para ampliar a percepção do espaço que eu habitava. Apesar da tensão e até mesmo da ferocidade dos antagonismos subjacentes, de classe, de raça, de região e de religião, apesar do conflito entre o trabalho e o capital, contrapartida do desenvolvimento industrial, apesar da batalha -às vezes violenta- pelos salários e pelo tempo de trabalho, que a própria guerra não pudera interromper, a América havia conhecido entre 1941 e 1945 uma unidade, um impulso comunitário sem precedente. Ela se via transformada no palco dos acontecimentos mais espetaculares do pós-guerra, e esse sentimento nacional não se devia apenas aos mitos patrióticos do tempo da guerra nem ao chauvinismo triunfante; ele se baseava também numa apreciação realista do empreendimento que levara à vitória de 1945 -um prodígio de esforço físico, de planificação industrial, uma gestão genial, uma mobilização conjugada do mundo do trabalho e do exército, um sobressalto de fervor coletivo que teria parecido completamente irrealizável durante a Grande Depressão da década anterior. O alcance histórico desse momento da América não deixou de influir sobre minhas escolhas de leituras, e ele explica amplamente a autoridade que sobre mim exerceram esses escritores formadores. Pois o fato de lê-los confirmou-me uma evidência que esse empreendimento colossal, que essa guerra brutal contra dois inimigos temíveis revelara e encarnara, cada dia durante cerca de quatro anos, para praticamente todas as famílias judaicas do meu meio e para todos os meus amigos judeus: antes de tudo -e acima de tudo- éramos americanos e não podíamos senão reivindicar nossa americanidade; mais do que nunca éramos livres para ir aonde bem entendêssemos -em suma, a aventura americana era um destino ao qual não escaparíamos.


Para todas as famílias judaicas do meu meio, em Newark, antes de tudo, e acima de tudo, éramos americanos e não podíamos senão reivindicar nossa americanidade


Ora, a maior cidade do país, e a mais célebre, distava apenas uns 30 km de minha rua de Newark. Pontes sobre dois rios e uma vasta salina, um túnel sob o Hudson, e deixava-se Nova Jersey rumo à cidade então mais povoada do globo. Mas, justamente por causa de sua imensidão, e talvez também por sua proximidade, Nova York não foi o lugar privilegiado do meu romantismo autóctone de adolescente. Em seu poema de 1927, que termina com estas seis palavras desde então célebres: "Enterre meu coração em Wounded Knee", Stephen Vincent Benet falava tanto em nome de um judeuzinho criado no tempo de Roosevelt quanto no de um jovem de boa família, diplomado em Yale, como ele próprio o era, e seu primeiro verso declarava com uma espontaneidade inteiramente whitmaniana: "Me apaixonei pelos nomes americanos". A música desses nomes de lugares longínquos, as vastas dimensões do país, seus dialetos e suas paisagens, tão americanas, todas, no entanto tão diferentes de minha América, tinham de fato com que seduzir, por seu poderoso lirismo, um garoto sensível a essas coisas. No centro desse fascínio, o paradoxo de ser um sujeito livre, esperto, que falava gíria, dizia lorotas e, ao mesmo tempo, era cidadão de um colosso imensamente diverso e não-conhecível.

Cosmopolita avisado
Meu personagem de cosmopolita avisado não era exportável fora de minha casa: perdido em pleno campo, em plena América, com todas as amarras soltas, o americano volta a ser rústico, traindo suas emoções de rústico; como o literato Stephen Vincent Benet, ele não consegue deixar de vibrar aos simples nomes de Spartenburg, Santa Cruz, do Farol de Nantucket, ele vibra diante de nomes tão prosaicos quanto Skunktown Plains [planícies de Zorrilhópolis" ou tão deliciosamente obscenos quanto Little French Lick [A Lambidinha Francesa].
O fator determinante de nossa identidade era portanto esse provincianismo graças ao qual nós, americanos -americanos simplesmente, e dispensando qualquer especificativo-, teríamos recusado todo adjetivo capaz de restringir nosso gozo desse nome genérico e imponente, que reivindicávamos como um direito imprescritível. Um judeu de Newark? Tudo bem, vá lá. Um produto do Newark industrial, da pequena burguesia do bairro judeu, com sua dosagem única de energias e de incertezas sociais, decididamente otimista quanto às chances de seus filhos, circunspecta em relação aos vizinhos não-judeus; um produto desse bairro judeu de antes da guerra, e não de um outro, irlandês, eslavo, italiano ou negro... Certamente.
"Judeu de Newark" descrevia bastante bem aquele que havia crescido na parte sudoeste da cidade entre os anos 1930 e 1940. Ser judeu de Newark, dessa cidade em grande parte operária onde a influência política era diretamente proporcional à pressão étnica, onde os fatos históricos se revezavam com a superstição folclórica para alimentar a xenofobia ambiente em cada comunidade, onde a repartição dos empregos e das vocações coincidia geralmente com as clivagens religiosas, nacionais e raciais -tudo isso contribuía enormemente para a maneira pela qual uma criança podia se definir, para o sentimento que ela podia ter de sua singularidade, para sua maneira de considerar sua comunidade específica dentro do grande esquema nacional. E o que é mais: aguçar a receptividade aos costumes próprios de cada bairro nos sensibiliza necessariamente aos conflitos de interesse que governam os negócios humanos, os quais, cedo ou tarde, desencadeiam no romancista em embrião um impulso mimético. Newark, chave de minha vocação, abriu meus sentidos a todo o resto.
Então, judeu de Newark, por que não? Mas judeu americano? Americano judeu? Pertenço a uma geração autóctone: nossa infância teve por cenário e por espetáculo as tribulações do país numa guerra mundial que se eternizava; ginasianos ou colegiais, chegamos à maioridade durante as grandes reviravoltas da década do pós-guerra; crescer americanos foi uma experiência demasiado rica para não ultrapassar um rótulo restritivo qualquer. Nunca me considerei, nem no tempo de uma única frase, um escritor judeu americano ou americano judeu, como tampouco imagino Theodore Dreiser, Ernest Hemingway ou John Cleever considerando-se escritores cristãos americanos ou americanos cristãos. Na condição de romancista, considero-me -e isso desde o meu começo, há mais de 40 anos- um americano livre, que imagina o mais vigorosamente que puder aquilo que lhe agrada representar, na língua materna da qual é o escravo -um escravo agradecido.

Philip Roth é escritor, recebeu duas vezes o National Book Awards e é autor, entre outros romances, da trilogia "Pastoral Americana", "Casei com um Comunista" e "A Marca Humana" (Companhia das Letras). Este texto foi originalmente publicado no "Le Monde".

Tradução de Paulo Neves.


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