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São Paulo, domingo, 02 de fevereiro de 2003

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Para Norman Mailer, a disposição bélica dos EUA mascara o desejo dos conservadores de criar uma versão moderna da Roma antiga e impor ao mundo uma reforma moral

A construção do império mundial pela guerra

Associated Press
Homem demonstra, em rua de Baguio (Filipinas), a potenciais clientes o videogame "Bin Laden Versus USA"


da Redação

Um dos poucos intelectuais americanos a não engrossar o coro nacionalista pós-11 de setembro, Norman Mailer é um dos mais conhecidos escritores dos EUA. O autor nasceu em 1923, em New Jersey, e foi sargento do exército durante a Segunda Guerra Mundial, logo vertendo a experiência para o romance "Os Nus e os Mortos" (1948). Nos anos 40 trabalhou como roteirista em Hollywood, tematizando mais tarde em livro os bastidores corrompidos do showbizz ("O Parque dos Cervos", 1955). Na década seguinte firmou-se como ensaísta anti-establishment. Um dos fundadores do jornal underground "Village Voice", Mailer escreveu um livro criticando a guerra do Vietnã (1967), mas apoiou os Estados Unidos na Guerra do Golfo, em 1991, por "razões patrióticas". Na entrevista a seguir, publicada originalmente na revista "American Conservative" e da qual o Mais! reproduz trechos, o escritor comenta o atual "estado de espírito" norte-americano.

O senhor é pessimista sobre a ameaça do poder estatal, do totalitarismo americano? O senhor disse que se enganou várias vezes sobre isso e depois ficou feliz por ter se enganado.
Não sou favorável à guerra. O que eu penso desde o início é que há um subtexto muito peculiar na visão do governo Bush sobre o que se deve fazer com o Iraque. Algum tempo atrás eles começaram sugerindo que o Iraque era uma ameaça nuclear imediata. Hoje geralmente se concorda que não é. Então o pessoal do Bush começou a falar no enorme perigo de um ataque bioquímico contra nós. Mas eles não conseguiram provar que o Iraque está pronto para essa terrível possibilidade. Depois, outra grande acusação: o Iraque é um abrigo para terroristas. Bem, até onde posso ver, e isso do ponto de vista de um romancista, se eu fosse Saddam Hussein, as últimas pessoas que desejaria ter em meu país seriam terroristas estrangeiros, já que estou interessado em controlar totalmente minha própria terra. Os terroristas são canhões avulsos. Por que Hussein estaria disposto a pagar um preço imprevisível? Qual é, assim, o subtexto? Por que a Casa Branca quer essa guerra, por quê? O que eles querem? Pode-se citar como motivo o acesso ao petróleo, mas seria uma recompensa suficiente?
Então vi um artigo publicado em setembro no "Journal-Constitution", um artigo que não recebeu atenção dos jornais americanos. Ele me surpreendeu. O autor, Jay Bookman, salienta o que todo mundo tem perguntado: por que não há um plano do que deve ser feito no Iraque quando a guerra estiver ganha? A firme sugestão de Bookman é que esse plano sempre existiu. Vamos ocupar o Iraque, e ocupá-lo por muito tempo. Então tudo começa a fazer sentido à sua própria maneira. Porque isso significa que estamos inaugurando o Império Mundial Americano. Esse é precisamente o subtexto.
Por trás de tudo, nesse caso, existe o desejo de ter uma enorme presença militar no Oriente Médio e uma base para eventualmente dominar o mundo. Quando nos tornarmos uma versão do século 21 do antigo Império Romano, então a reforma moral entrará em cena. Os militares são obviamente mais puritanos que os veículos de entretenimento.

O senhor acha que podemos estar no roteiro da Al Qaeda ou no roteiro de Osama Bin Laden? Existe realmente uma guerra de civilizações que, se começar para valer, não será propícia ao globalismo americano?
Acho que há uma boa dose de realidade nisso. De um ponto de vista muçulmano radical, a América é absolutamente o Grande Satã e esta é uma guerra até a morte. Mas, em termos de realidades militares, não acho que seja necessário para nós construir um império para conseguirmos conter o ódio muçulmano. Por uma coisa, à parte de qualquer outra: quanto tempo os extremistas islâmicos levariam para nos derrubar? Cem anos? Terrorismo sistemático durante cem anos? Cinquenta anos? Seu ódio exacerbado provavelmente não durará tanto. Os estados de espírito históricos mudam. Os temperamentos envelhecem. O que quero explicar é - vou fazê-lo em duas partes: primeiro, havia uma opinião feroz na época em que a União Soviética caiu. Os conservadores sentiram que era sua oportunidade de dominar o mundo, porque éramos as únicas pessoas que sabiam como conduzir o mundo. E eles ficaram furiosos quando Clinton entrou. Um dos motivos pelos quais ele foi tão odiado é ter frustrado o que eles queriam. Essa dominação do mundo, tão clara, tão possível do ponto de vista deles em 1992, se perdeu.
Como isso contribuiu para o intenso ódio contra Clinton! Essa atitude, acredito, cresceu, se aprofundou e supurou durante os oito anos do governo Clinton. Não sei se os chefes da Casa Branca conversam em particular sobre isso, mas o principal elemento em seu atual raciocínio, eu suspeito, é que, se a América se tornar um império, necessariamente tudo o que precisa ser reforçado aqui será afetado positivamente. É a idéia deles! Se a América se transformar no equivalente moderno do Império Romano, será necessário criar gerações inteiras que poderão servir como militares em todas as partes do mundo. Isso dará uma nova ênfase mais uma vez à educação. Esses são os argumentos deles, eu suspeito. Não são os meus. Não sou a favor do Império Mundial. Posso prever intermináveis desastres decorrentes disso.
O que eles não levam em conta é a excepcional perversidade dos assuntos humanos. No mínimo poderíamos nos tornar uma espécie de país totalitário, dominando o mundo, com muito pouca liberdade de expressão. Além disso, todo o esquema poderia dar errado. A própria idéia encerra uma enorme presunção. Existe uma espécie de mística louca nos americanos: a idéia de que nós, americanos, podemos fazer qualquer coisa. Eles realmente acreditam que a América não apenas é capaz de governar o mundo, mas que ela deve governar o mundo.

E agora?
Não tenho certeza de que se possa fazer alguma coisa. Os EUA estão numa condição psíquica muito ruim. Se realmente estiverem, muitas pessoas poderão recorrer à idéia do império como uma solução transcendental, uma maneira de se livrar de nossa constante culpa. Após a Segunda Guerra, o país embarcou na ascensão econômica. Muitos americanos ficaram felizes com sua prosperidade, mas também se sentiam secretamente culpados. Por quê? Porque somos um país cristão. O "judaico" em "judaico-cristão" é basicamente um ornamento. E a idéia, se você é realmente cristão - e uma grande maioria na América naquele momento era significativamente devota -, é que você não deveria ser tão rico. Deus não queria isso. Jesus certamente não queria. Você não deveria acumular um monte de dinheiro, você deveria usar sua vida em atos razoavelmente altruístas. Essa era uma metade da psique coletiva. A outra metade: derrote todos os seus concorrentes, porque você tem de vencer. Em certa medida, e esse é um comentário cruel, mas possivelmente preciso, ser americano é ser um paradoxo. De um lado você é um bom cristão e, de outro, é visceralmente combativo. Você deve ser machão e vencer. No entanto, continuamos avançando, nos tornamos cada vez mais poderosos, enquanto a culpa se desenvolvia.

Se a nossa é realmente uma sociedade pós-cristã cujo bem maior é o materialismo, e é necessária uma fé para combater uma fé, os muçulmanos não estão mais bem equipados para nos combater?
Não. A dificuldade que tenho para falar sobre isso é que não conheço suficientemente o islã. Mas me parece que, se não os atacarmos, isso poderia adiar a guerra por 50 anos. A discussão seguinte seria: temos condições de adiar? Podemos vencê-la agora e poderíamos perdê-la daqui a 50 anos.
Se tentarmos ser um império, a verdadeira questão será se somos capazes de conviver com o terrorismo num nível em que os israelenses, digamos, convivem. Ser israelense hoje significa que você não pode fazer planos sólidos, e os judeus adoram ter programas e executá-los.

O senhor descreveu o apoio neoconservador à guerra como potencialmente problemático para Israel. Por quê?
A América poderia vencer facilmente o Iraque, mas se Saddam tem um complexo de Sansão, qual seria seu último ato? Poderia atingir Israel no final com tudo o que ainda tiver? Nesse momento ele será um homem muito perigoso, sem mais nada a perder. Ele não ousaria atacar Israel no início. Isso certamente o destruiria. Ele nem sequer ousaria, acredito, permitir que terroristas o fizessem para ele, devido ao motivo óbvio de que seria muito fácil atribuir a ele. Mas se Saddam tiver perdido tudo, se for remotamente tão mau quanto o pintam, e bem pode ser, então a probabilidade é que derrube as colunas do templo: ele estará pronto para descansar como o superterrorista da história. O que não entendo, portanto, é por que o governo Sharon está tão disposto a apostar na capacidade de Israel se defender (ou ser defendida) contra um ataque extremo.

O senhor nunca foi um anti-sionista de qualquer espécie.
Não, eu parto de um conjunto de noções simples, nada sofisticadas, sobre Israel. Era um país tão pequeno quando começou... Se os líderes árabes tivessem algum tipo de bondade humana, poderiam ter dito: essas pessoas passaram pelo inferno. Vamos tratá-las com cortesia islâmica, como devemos tratar os estrangeiros. Em vez disso, os declararam inimigos. Os israelenses não tiveram alternativa senão se fortalecer e aliar-se a nós. Ao fazer isso, alguns dos melhores aspectos da natureza judia - a ironia, o amor pela verdade, o amor pela sabedoria e a justiça - sofreram depredações internas.
Quando se tratou de salvar seu país, tudo mudou. Quantidade modifica qualidade - talvez sejam as três melhores palavras que Engels escreveu. Na medida em que os israelenses endureceram, perderam qualquer objetividade elevada e duramente conquistada, qualquer busca desinteressada pelo valor social. O logotipo tornou-se Israel, meu Israel. Isso era inevitável. Também é trágico, eu acho. Israel é hoje mais uma potência no mundo. Mas o que eles perderam é especial. Hoje eles tratam os palestinos como se os palestinos fossem judeus do gueto. É uma das grandes ironias. Você sabe: quanto mais velho você fica, mais passa a depender da ironia como último elemento humano em que pode confiar. Tudo o que existe será mais cedo ou mais tarde virado do avesso.

Qual a sua opinião sobre Ariel Sharon?
Ele é o que é. Um bruto. Um general de potência. Acho que sua defesa seria: "Sou o que o destino me fez". Se ele tivesse vivido no gueto, teria sido um dos homens mais fortes e provavelmente um dos mais desprezados. Mas ele é um israelense. O que é óbvio, o que se destaca na maioria dos israelenses é que eles são patriotas. Meu Deus, como são! Depois de Hitler, como poderiam não ser? Nesse sentido, tenho certeza de que Sharon acredita que está fazendo a única coisa possível, que está fazendo a coisa certa.


Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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