São Paulo, domingo, 02 de março de 2008

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Ponto de fuga

O monstro episódico


A imagem filmada é uma espécie de sobrevida; alguns personagens de "Cloverfield" sentem isso e deixam mensagens gravadas, caso venham a ser mortos

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Desde "King Kong", em 1933, desde o início do cinema falado Nova York é alvo de destruições catastróficas nos filmes. São profecias, frutos do medo. Metrópole por excelência, ativa, moderna, alvo simbólico de fascínios e ódios, ela terminou sendo atingida de fato no tremendo 11 de Setembro.
A visão do ataque se repetiu no mundo inteiro em imagens límpidas: o brilho das torres, o azul do céu, perfeição cristalina. Depois, a bela forma do avião que se chocava contra o edifício retilíneo e, enfim, o desmoronamento.
Essas imagens claras ocultam, no entanto, as ramificações das causas. Ao invés de uma revelação, o episódio agudo desencadeia, estarrecida, a incapacidade de compreender. Ele concentra a desagregação dos sinais e dos sentidos. Põe em evidência a história para melhor mostrá-la como incógnita. Assinala a fragilidade de cada um, à mercê de forças que ultrapassam a todos.
Baudrillard disse que o 11 de Setembro significava um "retorno do real", mas retorno sobre o quê? Sobre as ilusões de que é possível compreender e agir. O real que retorna admite apenas uma navegação intuitiva, uma navegação de cabotagem, sem mapa, sem bússola, descobrindo, aqui e ali, fragmentos de sinais, soltos, que se recusam à coerência.
Os processos da representação cinematográfica reagiram antes dos filósofos e substituíram o entendimento pela inquietação. É quando o medo se torna uma forma silenciosa, intuitiva e profunda de conhecimento. Instaura a fragilidade e a orfandade provocadas pelo não-saber e pelo não-poder.

Lagartixa
Nova York é arrasada em "Cloverfield", filme de Matt Reeves. Para tanto, ele ressuscita e atualiza Godzilla, o velho dinossauro atômico japonês, responsável por um apocalipse urbano.
Da mesma maneira que em "A Bruxa de Blair", a ficção é construída como a verdade de um documentário amador, testemunha dos acontecimentos. Esse procedimento faz viver a catástrofe pelos olhos das vítimas (e também reduz os custos de produção: Cloverfield é um blockbuster econômico).
Mergulha-se em meio ao simpático grupo de jovens que se diverte numa festa e que será surpreendido em seguida pela incursão do monstro. Um deles, encarregado de filmar o encontro feliz, seguirá captando as imagens do caos. A fita continha um registro anterior que irrompe de vez em quando, em curtos trechos, trazendo momentos de um dia idílico em Coney Island, praia popular que fica no Brooklyn.
Essa teimosia do filme anterior em reaparecer por pequenas porções é melancólica: o registro antigo vai se apagando e fazendo sumir a paz e a felicidade que ele contém. De algum modo, porém, como restam fragmentos acidentais, ele permanece para falar da perda: perda do registro gravado, perda também da felicidade e da paz.

Fantasma
A imagem filmada é uma espécie de sobrevida. Alguns personagens de "Cloverfield" sentem isso, e deixam mensagens gravadas, caso venham a ser mortos.
Numa delas, a moça conclui: "Eu não sei por que isso está acontecendo... Mas vamos esperar até que isso passe".

Par
"O Hospedeiro", dirigido por Bong Joon-ho, jovem diretor coreano, lançado em 2006, também tem um monstro reptiliano. Maravilhoso filme em que se equilibram o cômico, o pesadelo e o sentimento épico.
Mas "O Hospedeiro" é uma crítica ecológica. "Cloverfield" expõe a irracionalidade mais obscura: é menos uma crítica que um abscesso angustiado.


jorgecoli@uol.com.br


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