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Ponto de fuga
O monstro episódico
A imagem filmada
é uma espécie de sobrevida; alguns personagens de "Cloverfield" sentem
isso e deixam mensagens gravadas, caso venham a ser mortos
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Desde "King Kong", em
1933, desde o início do
cinema falado Nova
York é alvo de destruições catastróficas nos filmes. São profecias, frutos do medo. Metrópole por excelência, ativa, moderna, alvo simbólico de fascínios e ódios, ela terminou sendo atingida de fato no tremendo 11 de Setembro.
A visão do ataque se repetiu
no mundo inteiro em imagens
límpidas: o brilho das torres, o
azul do céu, perfeição cristalina. Depois, a bela forma do
avião que se chocava contra o
edifício retilíneo e, enfim, o
desmoronamento.
Essas imagens claras ocultam, no entanto, as ramificações das causas. Ao invés de
uma revelação, o episódio agudo desencadeia, estarrecida, a
incapacidade de compreender.
Ele concentra a desagregação
dos sinais e dos sentidos. Põe
em evidência a história para
melhor mostrá-la como incógnita. Assinala a fragilidade de
cada um, à mercê de forças que
ultrapassam a todos.
Baudrillard disse que o 11 de
Setembro significava um "retorno do real", mas retorno sobre o quê? Sobre as ilusões de
que é possível compreender e
agir. O real que retorna admite
apenas uma navegação intuitiva, uma navegação de cabotagem, sem mapa, sem bússola,
descobrindo, aqui e ali, fragmentos de sinais, soltos, que se
recusam à coerência.
Os processos da representação cinematográfica reagiram
antes dos filósofos e substituíram o entendimento pela inquietação. É quando o medo se
torna uma forma silenciosa, intuitiva e profunda de conhecimento. Instaura a fragilidade e
a orfandade provocadas pelo
não-saber e pelo não-poder.
Lagartixa
Nova York é arrasada em
"Cloverfield", filme de Matt
Reeves. Para tanto, ele ressuscita e atualiza Godzilla, o velho
dinossauro atômico japonês,
responsável por um apocalipse
urbano.
Da mesma maneira que em
"A Bruxa de Blair", a ficção é
construída como a verdade de
um documentário amador, testemunha dos acontecimentos.
Esse procedimento faz viver a
catástrofe pelos olhos das vítimas (e também reduz os custos
de produção: Cloverfield é um
blockbuster econômico).
Mergulha-se em meio ao
simpático grupo de jovens que
se diverte numa festa e que será
surpreendido em seguida pela
incursão do monstro. Um deles, encarregado de filmar o encontro feliz, seguirá captando
as imagens do caos. A fita continha um registro anterior que
irrompe de vez em quando, em
curtos trechos, trazendo momentos de um dia idílico em
Coney Island, praia popular
que fica no Brooklyn.
Essa teimosia do filme anterior em reaparecer por pequenas porções é melancólica: o registro antigo vai se apagando e fazendo sumir a paz e a felicidade que ele contém.
De algum modo, porém, como restam fragmentos acidentais, ele permanece para falar
da perda: perda do registro gravado, perda também da felicidade e da paz.
Fantasma
A imagem filmada é uma espécie de sobrevida. Alguns personagens de "Cloverfield" sentem isso, e deixam mensagens gravadas, caso venham a ser
mortos.
Numa delas, a moça conclui:
"Eu não sei por que isso está
acontecendo... Mas vamos esperar até que isso passe".
Par
"O Hospedeiro", dirigido por
Bong Joon-ho, jovem diretor
coreano, lançado em 2006,
também tem um monstro reptiliano. Maravilhoso filme em
que se equilibram o cômico, o
pesadelo e o sentimento épico.
Mas "O Hospedeiro" é uma
crítica ecológica. "Cloverfield"
expõe a irracionalidade mais
obscura: é menos uma crítica
que um abscesso angustiado.
jorgecoli@uol.com.br
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