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O mercador da nova doutrina
SR. NÉANT - A bem dizer, não tenho exatamente uma profissão,
tendo consagrado minha vida
às coisas do espírito e nada sabendo fazer com as mãos. Mas
há algum tempo, e por pura vocação, quis arrumar um ofício.
Tornei-me mercador da nova
doutrina.
SR. VIGNE - Isso é muito bom,
meu senhor, e eu o felicito.
Mas, suplico-lhe, o que é isso?
SR. NÉANT - Isso o quê?
SR. VIGNE - Um mercador da nova doutrina?
SR. NÉANT - É o ofício que me
traz até aqui.
SR. VIGNE - Nesse caso, senhor,
é o melhor dos ofícios e merece
meus aplausos.
SR. NÉANT - Nunca duvidei de
sua aprovação e por isso vim
vê-lo. Pois aquilo que tenho a
dizer não posso dizê-lo a todo
mundo e escolhi, para expor as
finas mercadorias de que disponho, homens como o senhor,
que devem sua primazia ao caráter, aos costumes e ao gênio.
SR. VIGNE - É verdade que tenho
verniz mundano e algumas
conjecturas sobre as coisas do
espírito, mas não sabia que minha modesta reputação tivesse
chegado até o senhor.
SR. NÉANT - O fato é que chegou
até Paris e seus trabalhos são
conhecidos por lá.
SR. VIGNE - Meus trabalhos!
Mas não me recordo de tê-los
publicado.
SR. NÉANT - É verdade; entretanto, nós o conhecemos, e a
melhor prova é que aqui estou.
SR. VIGNE - É preciso crer no
que diz, com efeito, pois essa
prova é irrefutável. Mas continue, sou todo ouvidos e já começo a sentir certa afeição pelo
senhor.
SR. NÉANT - Então estamos de
acordo. Para falar brevemente,
eis o caso: trago-lhe o que se faz
de melhor em Paris em matéria
de filosofia e pretendo lhe mostrar todas as vantagens dela.
SR. VIGNE (espantado e gaguejando de
satisfação) - Uma honraria dessa, meu senhor, uma honraria
dessa me faz sonhar. Acho que
vou perder a fala.
SR. NÉANT - Não se inquiete.
Posso muito bem falar sozinho.
Entretanto, se o seu fôlego voltar, gostaria de começar por
duas questões, e a primeira
consiste em saber se o senhor é
religioso.
SR. VIGNE - Tenho alguma noção, senhor, das verdades da fé
católica, na qual meus pais me
criaram.
SR. NÉANT - Isso significa que o
senhor vive no erro, pela razão
de que essa verdade se encontra hoje desmentida.
SR. VIGNE - E por quem?
SR. NÉANT - Por este livro aqui.
SR. VIGNE - E que livro é esse?
SR. NÉANT - O novo evangelho
do qual eu sou apóstolo.
SR. VIGNE - O senhor me deixa
espantado; não ouvi dizer que o
mundo havia recebido a visita
de um novo messias.
SR. NÉANT - Mas assim é. E, para
a graça de todos nós, vários
messias estão agora em Paris.
SR. VIGNE - Vários? Isso não é
demais?
SR. NÉANT (severamente) - Nos
tempos atuais, não poderíamos
ter messias em excesso.
SR. VIGNE (afobado) - Sem dúvida,
sem dúvida, o senhor tem razão. Mas confesso que sinto alguma dificuldade em pensar
que a religião em que vivi até
agora...
SR. NÉANT - Essa religião, em todo caso, não cabe mais para as
pessoas que estão na moda em
Paris.
SR. VIGNE - Ah! Senhor, o que
está me dizendo! A gente de Paris é racional demais para pensar nisso tudo em vão. E sua
conversa me abre tantos horizontes que eu quero logo responder a sua segunda questão.
SR. NÉANT - O senhor acredita
que tudo nesse mundo tem
uma causa?
SR. VIGNE - É isso que aprendemos no colégio em que fiz meus
estudos.
SR. NÉANT - Eia! Isso reforça minha opinião de que seria preciso, para dar exemplo, esfolar vivos duas ou três dúzias de professores, pois os seus o fizeram
viver até hoje na mentira.
SR. VIGNE - Espere aí! O que
quer dizer?
SR. NÉANT - Quero dizer, senhor, que nada tem causa e que
tudo é acaso.
SR. VIGNE - Então eu estou aqui,
diante do senhor, prefeito desta cidade, farmacêutico oficial,
pai de uma bela filha e tudo isso, em suma, sem uma razão?
Como pode ser assim?
SR. NÉANT - É que este mundo é
absurdo.
SR. VIGNE - E por que este mundo é absurdo?
SR. NÉANT - Pela simples razão
de que ele não se explica.
SR. VIGNE - E como não?
SR. NÉANT - Porque é absurdo.
SR. VIGNE - Caramba, agora eu
vejo as coisas claras e me explico claramente porque esse
mundo não se explica.
SR. NÉANT - É a sua inteligência
que merece todas as honras.
SR. VIGNE - Meu Deus, como essa filosofia me dá prazer! Sinto
que vou adotá-la sem demora.
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