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O pernil e o nada
Sim, minha mulher, tenho
o prazer de lhe informar que até o presente momento vivemos na ignorância
e no erro
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[Em diálogo com a mulher, o
sr. Vigne justifica seu abandono da religião e diz que tudo
equivale a nada. Diante da
ameaça de ficar sem jantar, faz
pastiche da filosofia existencialista sobre a constituição da
subjetividade a partir do olhar
do outro, após afirmar que sua
mulher não é um "ser-aí" -tradução de "dasein", de Heidegger, incorporado por Sartre]
SRA. VIGNE (distraída) - Quais são,
senhor Vigne, as ridículas superstições que diz abandonar?
SR. VIGNE - A religião, minha
mulher.
SRA. VIGNE - Ah, é!
(sobressaltando-se)
Então é a religião?
SR. VIGNE - Sim, minha mulher,
tenho o prazer de lhe informar
que até o presente momento vivemos na ignorância e no erro.
Agora, ao contrário, acabo de
aprender a verdade: que não há
verdade superior e que não
existe mesmo verdade alguma,
que tudo é acaso, que pode haver fumaça sem fogo e que, enfim, tudo é nada vezes nada.
SRA. VIGNE - Ufa, se não sou eu
quem está ouvindo errado, é
você que está ensandecido. E,
no lugar de dissertar como um
arcebispo, seria melhor tomar
conta de seu pequeno caixeiro,
que está a um passo de explodir
após ter se entupido com seus
bombons de marshmallow.
SR. VIGNE - Isso vai lhe ensinar,
minha mulher. É totalmente
indiferente que ele coma
marshmallows, que exploda ou
que não exploda.
SRA. VIGNE - Agora entendi! É
mais um de seus ataques de
mau humor. Você terá febre de
noite e vai tomar um purgante
amanhã, como de hábito.
SR. VIGNE - Pare de ser vulgar,
senhora, e não atribua ao mau
humor aquilo que advém do
puro e nobre conhecimento.
SRA. VIGNE - Eis, com efeito,
uma nova ciência, que o levará
longe. Bem, seja como quiser, e,
já que nada serve para nada, você não vai jantar hoje, ao passo
que eu continuarei a chafurdar
na ignorância e no erro enquanto como sozinha aquele
gordo pernil que Deus -sim,
Deus, ele mesmo- nos enviou
nessa manhã.
SR. VIGNE - Acontece, minha
querida, que você não é um
"ser-aí" e por isso é necessário
que eu jante bem ainda que nada faça sentido.
SRA. VIGNE - Isso está ficando
divertido, meu tresloucado marido, e terei prazer se me explicar essa nova maravilha.
SR. VIGNE - Quer dizer, eu... Enfim, é pelo seu bem que eu devo
jantar.
SRA. VIGNE - Pelo meu bem?
SR. VIGNE - Sem dúvida, pois...
(ele hesita, depois fala rápido, como um iluminado) ...A
partir daquilo que acabo de
aprender, eu não sou nada sem
você e devo me tornar aquilo
que sou ajudando-a a ser aquilo
que você é, donde se conclui
que, sendo aquilo que sou, devo
fazer aquilo que você faz e que,
sendo aquilo que você é, você
deve me deixar fazer aquilo que
é preciso fazer para que você e
eu sejamos aquilo que nós somos. Eis a razão pela qual eu
devo jantar. Está claro?
SRA. VIGNE - Tão claro que vou
agora mesmo ao hospício pedir
socorro urgente.
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