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Ponto de fuga
O ser no aparecer
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Em 1948, Merleau-Ponty fez sete conferências no rádio, em Paris, imediatamente publicadas. Hoje, quase 60
anos depois, elas surgem editadas no
Brasil.
As modas intelectuais são o que são: tomam certos autores, celebram-nos para
além da medida, transformam-nos em
hambúrgueres de idéias mais ou menos
compreendidas. À parte as qualidades intrínsecas de cada um, talvez alguns se prestem melhor do que outros a essas metamorfoses. Seja como for, Merleau-Ponty
nunca brilhou como estrela efêmera. Foi
sempre um filósofo maior.
Quando proferiu suas palestras radiofônicas, tinha 40 anos. Era o autor de dois livros importantes, duas teses na verdade:
"Estrutura do Comportamento" e "Fenomenologia da Percepção" (ambos pela
Martins Fontes). Grande parte de sua obra
ainda estava por vir, cada vez mais densa,
até 1961, ano em que morreu. Deixou, incompleto, "O Visível e o Invisível" (Perspectiva), que teve publicação póstuma.
As conferências, intituladas "Conversas
1948" (Martins Fontes), preenchem apenas
75 páginas. São diamantes. Claras, concisas, anunciam já as concepções do último
Merleau-Ponty, nas quais o homem e o
mundo estão em amálgama, em "quiasma", em troca constante e inesgotável, em
intercâmbio de contrários apenas aparentes. Trazem também poderosos instrumentos para a compreensão da arte. Mostram
como ela extrai seu ser, sua intensidade, da
percepção instaurada, do seu aparecer, "da
firmeza e do brilho de sua carne", como diria o filósofo mais tarde.
Cuca
Merleau-Ponty absorveu as mais fundas
concepções românticas, que assinalam os
limites da racionalidade e incorporam as
forças cognoscitivas daquilo que está fora,
além ou aquém, do campo racional. A razão pode ser, quem sabe, preferível "ao
pensamento infantil, mórbido ou bárbaro"
(tão amados pelo romantismo), "mas com
uma condição, a de não se considerar pensamento de direito divino, que se confronte
cada vez mais honestamente com as obscuridades e as dificuldades da vida humana,
que não perca contato com as raízes irracionais dessa vida...".
Caso contrário, atinge-se o avesso da racionalidade: "Amar a razão (...), exigir o
eterno, quando se descobre cada vez melhor a realidade do tempo, exigir o conceito
mais claro, quando a própria coisa é ambígua, é a forma mais insidiosa do romantismo, é preferir a palavra razão ao exercício
da razão".
A obra de arte situa-se, aqui, num ponto
crucial. Ela é um "aparecer" dentro do
mundo da percepção, como uma totalidade tangível, "escrava de todos os signos, de
todos os detalhes que a manifestam para
mim". Irredutível portanto ao conceito e,
na verdade, a qualquer coisa que não seja
ela própria. Merleau-Ponty detecta na arte,
e em particular na arte moderna, o papel
fundador de uma percepção heurística,
opaca e reveladora ao mesmo tempo, dentro do próprio mundo da percepção.
Episteme
No sétimo e último capítulo de "Conversas 1948", Merleau-Ponty desenha a oposição entre as configurações de pensamento
no mundo clássico e no mundo moderno.
À segurança, ao dogmatismo dos clássicos,
os modernos substituem a incompletude e
a ambigüidade. Haveria apenas uma ressalva a fazer, capaz, porém, de reforçar ainda
mais uma tal perspectiva. Ela é mais fácil de
ser formulada hoje, quando as práticas artísticas modernas já se encontram absorvidas, do que em 1948, momento no qual ainda se afirmavam. É a seguinte: na modernidade, o acabamento eterno das obras clássicas só pode ser pensado de um ângulo
atual, que exclui o eterno e o completo.
Desse modo, por perfeitas que sejam, as
obras clássicas se oferecem a um olhar que
desconhece a perspectiva da perfeição.
Tornam-se, portanto, tão modernas, tão
inacabadas, quanto as outras.
Felicidade
Deliciosa "Flauta Mágica", recente, no
Teatro Municipal de São Paulo. Cenários limitados, direção de cena sem muita imaginação, alguns bichos e traquitanas engraçados. Foi a música de Mozart que, bem servida por um elenco brasileiro de bela qualidade, deixou o público caminhando nas
nuvens.
Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
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