São Paulo, domingo, 02 de abril de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A MÃE IDEAL DO REGIME

BIOGRAFIA DE EVA BRAUN LANÇADA NA INGLATERRA RESSALTA COMO HITLER PENSAVA EM FAZER DE SUA AMANTE O MODELO PERFEITO DA MULHER ALEMÃ, AO MESMO TEMPO BELA, FÉRTIL E ALIENADA

TOM ROSENTHAL

Em 1981 Gore Vidal publicou na "The Nation" um ensaio intitulado "Pink Triangle Yellow Star" [Triângulo Rosa Estrela Amarela]. O título referia-se aos dois distintivos usados pelos internos nos campos de concentração de Hitler: a estrela amarela para denotar os judeus, o triângulo rosa para os homossexuais. Mas o alvo principal dessa crítica tipicamente escorchante não foi o Holocausto, e sim a homofobia declarada da intelligentsia americana.
"Eu estava presente", escreveu Vidal, "quando [o escritor americano] Christopher Isherwood tentou defender sua tese para um jovem produtor de cinema judeu. "Afinal", disse Isherwood, "Hitler matou 600 mil homossexuais". O jovem não ficou impressionado. "Mas Hitler matou 6 milhões de judeus", ele disse gravemente. "O que você é?", perguntou Isherwood. "Uma imobiliária?"."


Embora Eva fosse apaixonada por Hitler, ele não quis ou não pôde reconhecê-la publica-mente nem como amante oficial


Isso poderia parecer de relevância duvidosa para o estudo extenso e exaustivamente pesquisado de Angela Lambert sobre a única amante duradoura de Hitler e, por cerca de 36 horas, sua mulher, Eva Braun, mas na verdade reproduz um dos principais temas secundários do livro "The Lost Life of Eva Braun" (A Vida Perdida de Eva Braun, ed. Century, 512 págs., 20 libras, R$ 76).
Lambert não aprecia a palavra "Holocausto" e prefere usar a expressão "eventos negros" para descrever a escala e a variedade das atrocidades nazistas, alegando que, para a maioria das pessoas, "Holocausto" indica exclusivamente a chacina dos judeus.
Na verdade, a política e prática de extermínio nazista abrangeu judeus, negros, ciganos, comunistas e "degenerados" físicos, mentais e morais, todos os quais deveriam ser extirpados para a pura glória ariana do Reich de mil anos.

Uma mulher comum
Lambert, uma autora inglesa não-judia, está bem qualificada para seu trabalho, já que sua mãe era alemã, nasceu com um mês de diferença de Eva Braun, em 1912, e vinha de uma classe social e um passado semelhantes aos de Braun. Portanto, para Lambert, Braun não é uma criatura exótica, mas uma mulher comum de um tipo alemão específico.
O livro de Lambert contém, inevitavelmente -pois Braun, como tema biográfico, só existe enquanto criatura de Hitler-, um caleidoscópio de retratos do Führer pelos olhos de seus contemporâneos e colegas que escreveram sobre ele, notadamente Albert Speer e Putzi Hanfstaengel.
Lambert também faz uso constante e adequado dos melhores textos anteriores sobre Hitler, especialmente o ótimo livro de Gitta Sereny sobre "Hitler's Table Talk" [Mesa de Discursos de Hitler], de Speer e Trevor-Roper.
Sem essa urdidura habilidosa, escrever uma biografia de Eva Braun seria tentar fazer tijolos sem palha; o uso de um clichê que tem sua própria ironia, já que essa era a tarefa impossível exigida dos filhos de Israel por seus senhores faraônicos.
Visto que Braun, sem sua relação com Hitler, não teria recebido nenhuma atenção biográfica, é justo dizer que hoje ela existe com tal detalhe neste livro simplesmente porque ainda existe essa vasta necessidade de satisfazer nossa curiosidade sobre o período nazista; uma curiosidade que, suspeito, é em parte voyeurística e, em parte, um desejo de tentar compreender como esse longo período maléfico pôde ser tolerado quase sem questionamento pelo povo alemão.

Outro protagonista
É quase óbvio demais afirmar que a figura-chave do livro não é Eva Braun, mas Adolf Hitler. Como Hitler havia ditado qual devia ser a aparência da mulher alemã ideal, essa era a aparência de Eva.
Ele havia decretado que a mulher nazista perfeita apoiaria seu homem e geraria o maior número possível de pequenos nazistas e não demonstraria interesse por conhecimento de política; para tanto, o modelo absoluto não foi na verdade Eva Braun, mas Magda Goebbels, que deu a Josef seis crianças louras imaculadas e fechou os olhos não apenas para a política maléfica dele mas também para suas constantes traições.
À parte a sobrinha de Hitler, Geli Raubal -que, incapaz de suportar seu tio como Führer e amante, se matou-, Eva foi a única mulher que ele se permitiu amar.
Ela não deu filhos a Hitler porque, como Lambert sugere, ele oficialmente se negou a casar porque era casado com o partido e na realidade evitou casar-se porque o casamento em sua sociedade exigiria filhos, e ele se recusava a procriar porque, enquanto reprovava a degeneração e produziu leis de eugenia revoltantes para evitá-la, sabia que a história de sua família era perigosamente inclinada à loucura, que não queria transmitir ou perpetuar.
Hitler conheceu Eva em 1929, quando ela era adolescente e trabalhava em Munique como auxiliar na casa fotográfica de Heinrich Hoffmann, que habilmente identificou o potencial de Hitler ainda em 1922. Hitler era 23 anos mais velho, carismático, potencialmente rico -os royalties de "Minha Luta" foram enormes- e já marcado pelo poder.
Da parte de Hitler, o relacionamento cresceu lentamente, mas afinal ele comprou para Eva uma casinha em Munique e, quando dominou a Alemanha, fez um apartamento para ela no Berghof, de onde comandava tudo quando não estava em Berlim.
Embora Eva fosse profundamente apaixonada por Hitler, ele não quis ou não pôde reconhecê-la publicamente nem sequer como amante oficial. Ela nunca foi apresentada a seus visitantes poderosos. Era mencionada, quando o era, como uma secretária, dentre as muitas que ele tinha. Exceto à noite, ela raramente o via em particular e ainda mais raramente sozinha.
Passava horas intermináveis nadando, exercitando-se, embelezando-se, trocando de roupas e fazendo compras. As mulheres nazistas, com exceção de Henriette von Schirach e Margret Speer, a ignoravam ou esnobavam, uma atividade segura para elas, pois Eva não tinha posição oficial e seu nome nem aparecia na lista telefônica do Berghof.

A queda
No período da queda, ela se mudou para o "bunker" com o Führer e, durante um dia e meio, depois de uma cerimônia civil apressada, foi Frau Hitler.
Como Lambert deixa claro, Eva Braun era uma mulher bonita e agradável, despida de malícia e certamente não era nazista. Não foi realmente interessante, mas Lambert escreveu um livro interessante sobre ela e seu período horrivelmente envolvente. Albert Speer, que a apreciava muito, disse: "Para todos os autores de história, Eva Braun será uma decepção". Para mim, pelo menos, sua vida é uma lembrança terrível do que Hannah Arendt escreveu em seu grande livro sobre Eichmann: "Era como se naqueles últimos minutos ele estivesse resumindo as lições que esse longo curso sobre a maldade humana nos deu -a lição da terrível, absolutamente desafiadora banalidade do mal".
Onde encomendar
"The Lost Life of Eva Braun", de Angela Lambert, pode ser encomendada no site www.amazon.co.uk

Este texto foi publicado no "Independent".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


Texto Anterior: Micropolítica do poder
Próximo Texto: + livros: A nação entre quatro paredes
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.