São Paulo, domingo, 02 de maio de 2004

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Macbush

Fragmentos de "A Tragicômica História de Dubya, o Grande, Rei da América, e Subseqüente Imperador da Oceania"

Tradução de Barbara Heliodora

PREFÁCIO

Não pode ser posta muito em dúvida a existência histórica do Rei-Imperador Dubya, o Grande, que se supõe haver reinado de 2001 a 2009 e presidido a transição da Plutocracia Americana para o Império Oceânico, o que parece ter acontecido em novembro de 2004, 20 anos após o profeta Orwellius. Infelizmente, só uns poucos fragmentos de "Dubya, o Grande" (também conhecida como "Macbush") foram recuperados. Eles foram encontrados durante o Tempo Perturbado que se seguiu à queda do Império Oceânico. A Grande Crise dos Bancos precedeu a Rebelião dos Servos, e a Segunda Guerra Civil resultou em grandes carnificina e saques. Após o saque do latifúndio dos descendentes de Richard, Duque de Helliburton (protagonista e herói-vilão de "Dubya, o Grande"), em Wyoming, vários pedacinhos do texto foram encontrados embrulhando cerca de uma dúzia de amostras de conhaque. A fim de editar esses rascunhos imundos, rasgados por vidros quebrados, fui compelido a empreender o dúbio labor da emenda conjectural, que raramente resulta em consenso acadêmico universal. No entanto fui auxiliado em minha tarefa por minha percuciente suposição de que o dramaturgo responsável pela composição de "Dubya, o Grande" tenha sido Richard Wharfinger, autor de "A Tragédia do Correio", que nos foi preservada por um sumário completo do enredo, com extratos, por T. Pynchon em "O Leilão do Lote 49". Boa parte de "Dubya, o Grande" parece ter sido plagiada de Shakespeare, em particular de sua alta tragédia "Macbeth". Wharfinger, como sempre foi seu hábito, também surrupiou do antecessor de Shakespeare, Christopher Marlowe. O personagem Richard, Duque de Helliburton, é devedor de Barabas, herói-vilão de o "Judeu de Malta", de Marlowe, enquanto Dubya, o Grande foi arrancado principalmente de "Macbeth" e de Tamerlão, de "Tamerlão, o Grande", de Marlowe. Embora pouco mérito estético possa ser atribuído a "Dubya, o Grande", talvez a obra possa sobreviver como uma curiosidade histórica, realmente pitoresca para nós, do reinado ordeiro do Rei Jeb 5º, que presidiu toda a Restauração da Dinastia Bush. Wharfinger era um dramaturgo um tanto sanguinolento, que preferia as entranhas sangrentas de Titus Andronicus, Troilus e Cresida, e Macbeth, aos dramas mais refinados de Shakespeare. Essa preferência de Wharfinger foi reforçada pelas brutalidades do Tamerlão, o Grande, de Marlowe, que refletem a liderança guerreira de Dubya, o Grande, e pela maquiavélica sede de sangue de Barabas, forte característica de Richard, Duque de Helliburton, e de Rummy, Barão Bechtoll, e seu capanga Wolfie.

Dramatis Personae
(Relação de Wharfinger, porém apenas alguns deles aparecem nos três fragmentos preservados.)

Dubya, o Grande
O Rei Pai
Richard, Duque de Helliburton
Rummy, Barão Bechtoll
Lord Colin of Powell
Barão Ashplant
Grão-Duque de Bakerhut
Príncipe Jeb de Veneria
Sir Will Slick, o Usurpador
Sodom Hussy, Imperador da Babilônia

A Cabala, ou as Sete Virtudes Mortais:
Wolfie, o líder
Pearl-of-Great-Price
Will Crystal
Faith
Kaghan
Elyot
Gingy Newt

A Rainha-Imperatriz
A Rainha Mãe
Lady Slick
Lady Leezza de Stanford

(As três cenas existentes são Ato 1, cena 1; Ato 2, cena 3; Ato 3, cena 5. Todas elas se passam em Washington, D.C.).

Ato 1, cena 1

Um esconderijo secreto de Richard, Duque de Helliburton. Entram, juntando-se a ele, Rummy, Barão Bechtoll e Wolfie.

Helliburton - Não cai um só pardal sem que Ele note,
Quem cria império sem a Sua ajuda?
Bechtoll - Jesus e grandes hostes andam juntos,
Como Wolfie sempre garante.
Wolfie - O Jesus yankee é um republicano.
Segundo o Evangelho de São Leo.
Helliburton - O petróleo de Babilônia é nosso!
Nós temos de ficar com o golfo Pérsico.
O que dizem os Planos Especiais?
Bechtoll - Que Wolfie fale pela Cabala.
Wolfie - Vão discutir de quem é a coroa.
Que direito tem César ao império?
O poder fez os reis, e a melhor lei
É a escrita em sangue numa lua cheia.
Podemos rir, com as sacolas bem cheias.
Helliburton - E assim eu, Helliburton, devo agir
Com meus meios de tráfico guerreiro,
E ficando mais rico, hei de murar
Bens infinitos só nesta salinha.
Bechtoll - E aí vêm nossos ladrões de lua.

Entram, precipitadamente, e alinham-se junto de Wolfie, as seis outras Virtudes Mortais. Com Wolfie dando o ritmo, eles entoam, em uníssono:

Cabala - Bando esquisito, de mão dada,
Querendo o mar e a terra assaltada,
Nós conspiramos, planejamos,
Sete por ti, e tu por sete,
Vezes sete, é o céu republicano,
Óleo e poder trazendo à luz
Tudo encantando pelo Bush
Fazer, de Sodom Hussy, angu-sh.
Helliburton - Esperem, assaltantes -neo
Leais straussanios de São Leo,
A Europa é contra essa cruzada,
É tudo queixa e gritalhada.
O que podemos fazer crer,
E verdadeiro parecer?
Bechtoll - A Europa já acabou e, sério,
Vai engrossar o nosso império.
Wolfie - Armas de Destruição em Massa
Igual à Peste por lá grassa
Na Babilônia tudo é fogo
E os assassinos acham jogo
Fazer cair as Torres-Jóia,
ando Nova York em Tróia.
Helliburton - Isso já basta; é avançar
Nada de leve ou devagar.
Rei Dubya tem de nos ouvir,
E em cruzada, pra Base, partir!

(A "Base" é a tradução de Wharfinger para o Al Qaeda árabe. O resto do Ato 1 está perdido, para além até da reconstrução conjectural.)

Ato 2, cena 3

Dubya - Abaixem, reinados triplos do mundo
Choque e horror vão chover em seus muros
Com o meu patético credo batendo em todos.
Pois não sabem que eu, Dubya de Crawford,
Trago a bênção de um Novo Mundo ordeiro?
Funde-se o mundo em minha Oceania,
Garanto democracia e comércio,
E todos saberão que eu sou Dubya,
Imperador do globo, com a bandeira
Ao vento em Babilônia, e prendo em jaula
O tirano que quis matar Papai.
Vou prender Sodom Hussy numa teia,
Pra'ele bater com a cabeça na terra,
E enfeitar meu triunfo.
Helliburton - Vamos dançar mentira qual verdade,
Pois já juramos vendeta perpétua
A Democráticos, Base e mais todos
Que duvidem de nossa integridade,
E os condenados a queda e a destino
Indizíveis.
Bechtoll - De suas mentiras faremos verdades,
Verdade nossa. Quem não está conosco,
Aqui ou na Europa, é contra nós
Apenas Helliburton e Bechtoll
Reconstruirão a Babilônia.
Leezza - Quem nos duvida? Só os que desejam
Que a fumaça do canhão seja de Peste.
Roover - O sábio Mencken nos aconselhou:
Engane o povo o tempo todo.
Wolfie - Boobus americanus, chamou-o o sábio,
Nós temos de salvá-lo de si mesmo.
Helliburton - Cremos na Segurança Nacional,
e o Estado
Conhece todo o ouro de Plutão.
Ashplant - Estado alerta pensa e prevê tudo;
Qual Deus, desvenda as idéias no ovo.
Há um mistério na alma do Estado,
Cujo funcionamento é mais divino
Do que essa imprensa tola sabe e imprime.
O que é deles primeiro é nosso
E tem de ser assim para sempre.
Rover - Bravos, Barão! A Oceania floresce
Com idéia e fala de sentido duplo.
Quem ferra o pobre e enriquece o rico
Diz que o que é contra quer guerra de classes.
Wolfie - Nossas hostes apodrecem aqui
Em casa, em condições de horror
Porém vicejam lá na Babilônia.
Mas só daqueles é que nós falamos.
Bechtoll - Nossos bravos Joe (valem o nome),
Ignorando a fortuna, brandem armas
Que, fumegando de justiça e sangue,
Quais favoritos do valor trincharam
O seu caminho até achar os biltres
Que, sem saudar e sem dizer adeus,
Descoseram, do umbigo até a goela,
Ficando nas ameias suas cabeças.
Hellyburton - Tu, Rummy, alegras-me a minha alma
Como o petróleo do Golfo os meus cofres.
Dubya - Que a Cabala cante!


Pois não sabem que eu, Dubya de Crawford,/ Trago a bênção de um Novo Mundo ordeiro?/ Funde-se o mundo em minha Oceania,/ Garanto democracia e comércio,/ E todos saberão que eu sou Dubya,/ Imperador do globo, com a bandeira/ Ao vento em Babilônia, e prendo em jaula/ O tirano que quis matar Papai.



As Sete Virtudes Mortais, com ritmo batido por Wolfie, concluem a cena, dançando, enquanto entoam:

Cabala - Viva! Viva Dubya! Viva Macbush! Tane de Crawford, Ladrão de Bagdá!
Rei - Imperador da Oceania!
Que proclamemos nós, Irmãos Suspeitos,
Os Valentões de Terras e Mares,
Que na areia, milhões de Muçulmanos,
Hão de sofrer com os ataque de Dunya.

O resto da cena está perdido.

Ato 3, cena 5

Dubya em conclave com Helliburton, Bechtoll, Leezza e Wolfie.

Wolfie - Oh, real favorito dos deuses!
Sodom Hussy foi capturado!
Dubya - Missão cumprida!
Helliburton - Não devemos ouvir os que debocham
Porque ninguém encontra as A.D.M. (1),
E nem as suas ligações com a Base!
Bechtoll - Busquem, na pecadora Babilônia,
E apunhalem qualquer assassino,
E isso inclui todos que serviram Hussy.
Wolfie - Por um tempo eles vão apunhalar,
Mas nossa força imensa agüenta as perdas.
A política do Império é a preempção.
Dubya terá pra sempre a Oceania!
Leezza - Nós detonamos Dubya para a glória!
Dubya - Que a Cabala proclame o meu império!

Entra a Cabala, que canta, ao ritmo de Wolfie.

Cabala - Pé de sapo, olho de rã,
Pelo de rato, língua de cã,
Pico de cobra feia e suja,
Lagarto, asa de coruja,
Todo o horror que Dubya trouxe à terra
Vire sopa infernal de dor e guerra.

Helliburton - Muito bem! Vocês sabem trabalhar!
Do lucro todos vão compartilhar!

Todos em cena proclamam Dubya Imperador de Oceania.

Dubya - Flagelo e dominador de reinos,
Trarei ao globo a paz universal,
Unipolar, vencendo o Eixo do Mal!

Nota sumária do editor: O resto está perdido, porém é duvidoso que Wharfinger tenha feito a crônica da queda da América e da Oceania para uma Terceira Economia e o subseqüente Tempo Perturbador. Embora estas cenas sejam apenas um segmento da completa "Tragicômica História de Dubya, o Grande, Rei da América, e Subseqüentemente Imperador da Oceania", elas talvez satisfaçam como a quebrada ruína do monumento de seus grandes desejos.

Harold Bloom Professor de Coisas-em-Geral Universidade de Weissnichtwo

Nota:
1. A.D.M. - armas de destruição em massa.

Harold Bloom é professor de literatura na Universidade Yale; é autor de, entre outros, "O Cânone Ocidental" e "Shakespeare - A Invenção do Humano" (ed. Objetiva). O texto acima, publicado originalmente na revista "Vanity Fair", foi reproduzido com permissão do autor.

Barbara Heliodora é crítica de teatro, tradutora e autora de "Falando de Shakespeare" (ed. Perspectiva), entre outros.



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