São Paulo, domingo, 02 de maio de 2004

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Surgimento de testamentos minuciosos e de seguros de vida aponta para tentativas individuais e coletivas de moldar o futuro

A história do amanhã

Peter Burke

A História do Futuro" soa como um conto de Borges, mas, na realidade, é o título de um livro do grande pregador jesuíta Antônio Vieira. Como muitos ocidentais em meados do século 17, Vieira acreditava na iminência do milênio, associada à quinta e última monarquia mundial, a do rei português dom João 4º. Sua história do futuro previa a chegada do reino de mil anos de Cristo na Terra. Não sou profeta nem futurólogo, de modo que o que segue será uma discussão não do futuro propriamente dito, mas de diferentes visões daquilo que aguarda a humanidade. Como essas visões mudaram ao longo do tempo, podemos afirmar que o futuro tem um passado.
Uma das mais interessantes discussões dos "futuros passados" foi proposta alguns anos atrás por Reinhart Koselleck, que, a meu ver, é um dos mais importantes historiadores atuantes no mundo de hoje. De acordo com Koselleck, nossas imagens do futuro estão estreitamente ligadas às imagens que temos do passado, tanto assim que Koselleck certamente apreciaria as idéias de Gilberto Freyre acerca do "tempo tríbio". Ele destaca especialmente o que vê como sendo "a grande divisão", o fato de que tanto o futuro quanto o passado acabaram sendo vistos de maneira diferente no Ocidente no final do século 18, especialmente após a Revolução Francesa.
Algumas pessoas, especialmente os intelectuais, começaram a se ver como estando vivendo numa nova era, algo que às vezes descreviam como sendo a "modernidade". Houve uma mudança no horizonte das expectativas. O passado deixou de ser visto como fonte de bons exemplos e modelos de comportamento, porque o "progresso" (um novo termo para designar uma nova idéia) o tornava superado. Quanto ao futuro, ele começava a ser visto não como algo fixo, planejado por Deus (como Vieira, por exemplo, o enxergava), mas, pelo contrário, como algo fluido, instável, aberto a todas as possibilidades ou, na descrição de Koselleck, algo "construtível".
Dois exemplos franceses ilustram a mudança nas atitudes que se processava no final do século 18. Em 1771, o jornalista Sébastien Mercier publicou o que pode ser descrito como a primeira obra de ficção científica do mundo. Ela se intitulava "O Ano 2440" e descrevia como seria a vida nesse momento do futuro distante. Após a Revolução Francesa, foi adotado um calendário novo, no qual 1789 se tornou o "Ano 1", simbolizando a visão dos revolucionários de que não havia retrocesso possível, que a humanidade estava recomeçando do zero. Por essas razões todas podemos falar da "invenção" do futuro nessa época.
Desenvolvendo essa idéia e analisando os últimos 200 anos de maneira mais detalhada, os historiadores passaram a chamar a atenção para o lugar cada vez mais importante ocupado pelo futuro na vida social e cultural. Os governos começaram a planejar as mudanças sociais e, com isso, a prever as tendências sociais futuras, coletando estatísticas relativas à população, emprego, importações, exportações e assim por diante.
Romances ambientados no futuro se tornaram cada vez mais comuns, desde "Looking Backwards" (1888), do americano Edward Bellamy, até "A Máquina do Tempo" (1895), do inglês H.G. Wells, sem falar na proliferação de um novo gênero, a ficção científica, no século 20. Um movimento rotulado "futurismo" pode ter sido restrito à Itália, mas os futuristas apenas explicitavam -ou levavam adiante- idéias que já estavam implícitas na tendência ao chamado modernismo nas artes, tanto antes quanto depois da Primeira Guerra Mundial. A relevância das tradições culturais para o presente passou a ser questionada ainda mais fortemente nessa época do que o tinha sido durante o Iluminismo ou na "era das reformas" do século 19.
A idéia de Koselleck sobre a descoberta ou invenção do futuro no final do século 18 é, sob muitos aspectos, atraente, além de incorporar insights importantes sobre os últimos dois séculos e meio. Apesar disso, não acredito que possamos aceitá-la irrestritamente, por duas razões opostas, porém complementares.
Em primeiro lugar, é enganoso dizer que antes das revoluções Francesa e Industrial as pessoas não tinham um senso do futuro como sendo maleável, manipulável ou "construtível". Quando lemos os testamentos de pessoas comuns e de outras ricas, constatamos muitas tentativas de moldar o futuro, legando dinheiro a um filho, criado ou convento, em detrimento de outro, ou fundando hospitais, escolas ou faculdades. Indivíduos e famílias seguiam estratégias de casamento com vista a conservar seu status ou a ascender socialmente no futuro.
Essas estratégias incluíam tentativas de chefes de família de controlar os atos de seus descendentes centenas de anos mais tarde, fazendo com que lhes fosse legalmente impossível fragmentar o patrimônio familiar. O surgimento dos seguros -primeiro para navios, no final da Idade Média italiana, e depois os seguros de vida, na Amsterdã do século 17- também pode ser visto como tentativa coletiva de controlar o futuro.
É verdade que esses exemplos implicam uma visão de futuro mais ou menos semelhante ao presente, mas outras práticas sugerem que algumas pessoas estavam pensando um futuro que diferia do presente em alguns aspectos importantes. Os navegantes, por exemplo, esperavam encontrar terras novas. Os filósofos naturais esperavam fazer descobertas. Os missionários esperavam converter judeus, muçulmanos e pagãos ao cristianismo, por meio de seus próprios esforços e pela graça de Deus. Os jogadores esperavam fazer fortuna. Os novos estatutos e as reformas das leis expressavam um senso do futuro como sendo algo controlável e distinto do passado.
Em segundo lugar, apesar do ritmo cada vez mais acelerado das transformações tecnológicas e sociais, no que diz respeito à cultura (atitudes, valores, crenças, pressuposições), todos nós somos mais tradicionais do que gostam de imaginar os "progressistas". O milenarismo tão vivamente expresso por Antônio Vieira em seus sermões não desapareceu ao final do século 18. Ainda estava muito vivo em Canudos, um século mais tarde, e não apenas no Brasil, mas também nos EUA e na Europa. O crescimento contínuo de grupos como Testemunhas de Jeová em muitas partes do mundo pode servir de lembrete de que o milenarismo está longe de acabado.
Nas artes, o modernismo pode ter se transformado na nova ortodoxia, tomando o lugar das tradições clássica e renascentista que ainda dominavam as escolas de arte em 1900, mas a arte figurativa ainda existe e, em alguns lugares, vem renascendo. Mais importante ainda, embora não intencional, foi a criação de algo ao qual se deu o nome de "a tradição do novo". Quando o artista francês Marcel Duchamp inscreveu seu nome num urinol e o expôs numa mostra de arte, em 1917, fez um gesto revolucionário que contestou as premissas dominantes sobre a relação entre a vida cotidiana e aquilo a que chamamos "arte".
Entretanto vários artistas posteriores repetiram o gesto de Duchamp e, com isso, modificaram seu significado, definindo-se como seguidores de um movimento, o modernismo, que já tem cerca de cem anos de idade. Na política, e não apenas na arte, a revolução é capaz de se congelar e virar tradição, como nos lembra o nome do partido político mexicano Partido Revolucionário Institucional.
A história do futuro não deve ser vista nos termos simples de uma grande divisão entre o antes e o depois da Revolução Francesa.


Peter Burke é historiador inglês, autor de "Uma História Social do Conhecimento" (Jorge Zahar Editor) e "O Renascimento Italiano" (ed. Nova Alexandria). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Clara Allain.


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