São Paulo, domingo, 02 de maio de 2004

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+ estética

LEIA ABAIXO, COM EXCLUSIVIDADE, UMA CONVERSA DO ESTILISTA FRANCÊS CHRISTIAN LACROIX COM A ARTISTA BEATRIZ MILHAZES

A Geometria que explode o quadrado e o círculo

da Redação

Christian Lacroix e Beatriz Milhazes conversam no estúdio do estilista, em Paris. Um faz moda, na França, a outra, pinturas, no Brasil -que podem ser vistas atualmente na galeria Fortes Vilaça (tel. 0/xx/11/ 3032-7066)-, mas descobrem que compartilham o processo de evocar "alguma coisa muito bruta e muito barroca, muito primitiva, primal, nojenta, suja, humana e depois esfregá-la com ouro, pedras preciosas, coisas que brilham...". O diálogo entre ambos, de que o Mais! adianta um trecho, será publicado em livro pela Kerguéhennec-Centre d'Art Contemporain, em setembro.

Christian Lacroix - Quando você pinta, fica muito tranqüila fisicamente ou há momentos, como na música brasileira, muito sensuais ou enérgicos? Como esse processo é muito longo, não há coisas que lhe escapam no caminho?
Beatriz Milhazes - Sempre tive medo da rapidez de meus pensamentos e das imagens que me vêm à mente. Mas elas são freadas pela lentidão de meu processo e da técnica que utilizo. Em um determinado momento, paro e me pergunto: o que acontece agora que tenho quatro quadros sobre uma parede branca? Várias idéias surgem. Eu me concentro naquela que me parece mais adiantada, no caminho mais claro.
Lacroix - Isso significa que você trabalha um pouco em série ou você não procura fazer séries?
Milhazes - Esforço-me para evitar as séries. Quando trabalhamos em várias telas ao mesmo tempo, é mais fácil recorrer à mesma paleta. Mas não é o que quero. Tenho necessidade de passar de uma atmosfera para outra, de uma paleta para outra enquanto crio e, sobretudo, de mudar continuamente os parâmetros do problema. Quando faço uma exposição, gosto de mostrar obras que apresentam essas variações.
Lacroix - Você já foi tentada pelo computador, a paleta gráfica? O que você descreve como processo se aproxima muito do computador.
Milhazes - Não utilizo computador porque o monitor é muito pequeno. Tenho uma necessidade compulsiva de contato físico com minhas telas.
Lacroix - Se você não olhar de perto essa matéria, que é completamente física, pode pensar no computador. Acho interessante o fato de realizar à mão uma coisa muito contemporânea. E aí talvez possamos começar a falar de sua relação com a tradição e com o seu país. É evidente que não podemos pensar que você seja escandinava. Não digo que pensemos imediatamente no Brasil, mas creio que rapidamente sentimos a latinidade, o Mediterrâneo, a Espanha, alguma coisa que compartilhamos e que também é algo que avança e que está na "modernidade". Em seu trabalho há muitos elementos que vêm de igrejas, de trajes. De onde vem sua relação com isso? Ela remonta à infância, a uma vontade de estar ligada ao país que herdou tradições espanholas, mas que também é jovem?
Milhazes - É também um país muito misturado culturalmente. Utilizei conscientemente esse aspecto desde o início. Essa relação com o passado me interessa, mas é complicada porque a pintura vem da Europa, depois dos EUA e depois dá uma volta com o modernismo brasileiro dos anos 30. Como fazer a ligação entre essa história e minha cultura, as coisas que vejo, que vêm da minha cidade, dos meus interesses?
A arte decorativa, por exemplo, me fascina. No início eu utilizava tecidos, fazia colagens, meu trabalho era mais geométrico. Comecei a alcançar uma liberdade com as formas no início dos anos 90. Foi nessa época que fiz uma primeira exposição realmente interessante. Eu acabava de descobrir minha técnica, podia fazer meus desenhos. Voltei a utilizar elementos industriais em minhas colagens há pouco tempo.
Lacroix - Ao mesmo tempo, há em você uma individualidade e uma independência que são formidáveis. Eu não diria que sua pintura está na contracorrente -não vamos começar o debate da pintura que está viva ou morta, mas sempre presente-, no entanto você quase se inscreve naquilo que aqui conhecemos mais ou menos no mesmo momento, que estava ligado não à "movida" espanhola, mas a essa vontade de um retorno a uma coisa física, depois de anos de mínimo, de nada, de conceito, de branco sobre branco e preto sobre preto. Você deve ter sentido dificuldades em relação a isso.
Milhazes - É claro, tive problemas para que aceitassem meu trabalho. Sinto-me uma artista geométrica, mas não posso pôr tudo em um quadrado ou um círculo.
Lacroix - Imagino que as pessoas que estudaram com você deviam estar ligadas ao que se fazia em Nova York, enquanto você tinha sua linha com os tecidos que recortava. Você devia ser a única.
Milhazes - Eu estava completamente só no Brasil. A arte contemporânea brasileira é cativante, e há alguns artistas muito bons, reconhecidos internacionalmente, mas não os encontramos na pintura, eles fazem principalmente objetos, arte conceitual. No início eu estava isolada, sentia-me ligada ao modernismo brasileiro. Depois uma porta se abriu nos Estados Unidos. As pessoas foram atraídas por esse estilo, percebido pela crítica americana como uma pintura abstrata que trazia coisas novas.
Lacroix - Existe um complexo em relação a essa utilização de referências populares?
Milhazes - Totalmente, sobretudo no meu meio. Essas referências estão ligadas às camadas sociais mais pobres do meu país, elas não afetam os intelectuais e os artistas. Elas têm uma conotação pejorativa, mas sempre as utilizei. No entanto penso que hoje essa relação está mudando um pouco. As elites começaram a dar importância ao fato de haver uma arte brasileira, e essas referências populares são cada vez mais aceitas.
Lacroix - Tampouco tenho a impressão de que para você fosse o caso de reivindicar raízes, mas simplesmente que esses motivos lhe falavam, eles fazem parte de você, de sua tradição, de sua família, do ambiente em que você cresceu, sem tentar politizar ou buscar uma alternativa. A noção de "exotismo" significa alguma coisa para você?
Milhazes - Se você pensar nos clichês do exotismo, evidentemente não concordo. Mas a tropicália, por exemplo, me atrai. É um movimento diretamente ligado à idéia de "tropicus".
Lacroix - Em seu catálogo intitulado "Mares do Sul", o texto de Adriano Pedrosa faz um paralelo com Gauguin e a idéia de que é preciso ir além dos trópicos para encontrar uma espécie de paraíso perdido. É muito pertinente.
Milhazes - A imagem que me vem imediatamente ao espírito quando penso nos trópicos, em ser tropical, é a da beleza, da sensualidade e do primitivismo. É uma visão que me encanta, de pura fantasia, de sonho, de desejo do prazer desconhecido. Gauguin fez uma viagem em busca do "paraíso perdido" e introduziu esses elementos em sua pintura. O projeto modernista brasileiro fez o inverso: alimentou-se da arte européia para disseminá-la nos trópicos.
A beleza me cativa, mas acredito que, embora meu trabalho possa ser bonito, representa todo um mundo claustrofóbico.
Lacroix - Eu não diria que é bonito, é muito indócil. Encontramos em "Mares do Sul" talvez não uma angústia, mas um lado um pouco labiríntico, uma busca orgânica, como se você passeasse em um corpo ou um jardim do século 18 em forma de labirinto, no qual procura o Minotauro com o fio de Ariadne. As partituras talvez sejam o fio vermelho que impedem que você se perca. Existem impressões em que pessoalmente me reconheci em meus momentos de tristeza, quando sentimos uma certa dor de estômago. Eu não diria que é bonito...
Milhazes - Entendo perfeitamente essa sensação. A claustrofobia vem de um excesso de imagens justapostas, de contrastes simultâneos de cores intensas que podem tirar o fôlego. O labirinto é esse que você descreve: um passeio num jardim do século 18 que pode levar à claustrofobia ou não.
Lacroix - Podemos chegar à idéia de que isso come. Você também come as coisas e depois você fagocita os outros. O que me choca é essa força cinética. É nessa força centrífuga que você encontra o equilíbrio, essa explosão... Quando estamos diante de uma de suas telas, temos a sensação de explosão e de unidade ao mesmo tempo. Há alguma coisa que mantém essa explosão no lugar, que impede que seja completamente desordenada e faz que finalmente todo o seu repertório seja imperceptível. É um todo, uma unidade. Não digo que exista uma serenidade, isso depende dos quadros. No entanto não podemos afirmar: trata-se de uma flor, com uma pérola e um pouco de motivo têxtil dos anos 60. Nunca. No fim temos uma impressão única. Você tenta contar sua história e ir até o fim, ou deseja que o espectador leia alguma coisa em particular?
Milhazes - Existem pelo menos dois tipos de espectadores: os amadores e o meio especializado -o crítico de arte e os artistas. Eu tenho a sorte de conhecer especialistas que vêm ver meu trabalho em meu ateliê. Paulo Herkenhoff, um crítico de arte, foi e continua sendo uma fonte constante de conselhos. Tenho amigos artistas com os quais também mantenho um diálogo. As críticas americanas e européias publicadas na imprensa especializada sobre uma exposição e sobre meu trabalho me são preciosas de modo geral. Os artigos com freqüência se distanciam da obra e propõem leituras inesperadas. A opinião do público amador surge de modo direto e espontâneo, o que me fascina constantemente. Às vezes ela também levanta questões. As crianças também têm uma relação especial com minha pintura, elas se identificam facilmente e suas reações se exprimem sem filtros.
Lacroix - Eu ainda não falei do meu trabalho, mas creio que há uma contradição perpétua, e é o que me faz continuar de pé, como os equilibristas sobre seu fio. É entre o "high and low", para usar uma coisa pejorativa, de "junky", e não ir em direção ao zen, mas à meditação e ao universo. É um aspecto importante em seu trabalho, sempre os dois extremos: a Espanha e o vodu, os católicos e os pagãos. Eu fui criado na religião católica, mas uma religião engraçada.
Porque no sul da França as igrejas são construídas sobre os antigos templos de Vênus, existe sempre uma relação muito sensual. Mas não creio que possa haver espiritualidade sem sensualidade. Tenho a necessidade de apreender a vida através do toque, tenho necessidade de respirar, falo com freqüência em odores. Quando era criança, na escola maternal, colocava os potes de tinta na boca, tinha desejo do amarelo, do vermelho, de me carregar como um caçador pré-histórico se carrega da força de um animal, imagino. Como não sou muito violento, eu preferia engolir a tinta (risos). Esse aspecto me agrada muito em você, esse trabalho transatlântico e perpétuo que conta sua família, seu povo, sua tradição. É talvez por isso que nos reconhecemos, eu com minha arte decorativa ou aplicada, não sei realmente o que faço. Creio que temos esse mesmo processo de provocar encontros entre coisas que não têm absolutamente nada a ver umas com as outras. Alguma coisa muito bruta e muito barroca, muito primitiva, primal, nojenta, suja, humana e depois esfregá-la com ouro, pedras preciosas, coisas que brilham. É verdade que isso fala às crianças, e não é um trabalho unicamente de impulso.
Milhazes - Todas essas contradições são fascinantes. Elas funcionam como um motor, assim como o medo, aliás. Tenho medo de muitas coisas. Você disse que eu tenho medo do Carnaval, e é verdade. O Carnaval, a praia, a floresta, a arte decorativa, o kitsch, as igrejas e até as cores -tudo isso me dá medo e me fascina ao mesmo tempo. Dizem-me muitas vezes que sou corajosa por fazer o que faço, e penso exatamente o contrário: faço porque tenho medo.
Lacroix - Os arquitetos brasileiros a marcaram?
Milhazes - Eu me interessei muito pelo trabalho de Burle Marx. Antes, minha relação com a natureza era mais ligada à reprodução dela. Hoje começo a prestar mais atenção nessa relação com ela, é como a luz natural que me lembra as igrejas.
Lacroix - As colagens, de que falávamos há pouco, participam do mesmo processo?
Milhazes - A técnica que utilizo na pintura se baseia no conceito da colagem. Eu pinto motivos sobre uma folha de plástico e colo essa imagem acabada na tela. Depois retiro o plástico, como uma decalcomania. Minha pintura é feita da junção desses pequenos pedaços que eu mesma pinto. Para as colagens sobre papel o processo é diferente. Utilizo materiais de origem industrial: papéis de chocolate, de bombons, e até fitas.
Lacroix - Você faz suas pesquisas em revistas, recupera coisas em latas de lixo ou são coisas muito limpas que você compra na papelaria?
Milhazes - Neste momento estou fazendo uma verdadeira coleção de papéis de embalagem, mas não qualquer um. Prefiro não misturar as embalagens, limitando-me às que exprimem a sedução, o prazer, o exagero. O sentido seria completamente diferente se eu utilizasse papéis de bombom com embalagens de sabonete.
Lacroix - Como você sabe quando um quadro está pronto?
Milhazes - Em princípio, o ponto final está muito ligado ao instante em que sinto que as cores estão equilibradas. É muito importante que eu não passe ao estágio seguinte, em que o acréscimo de elementos se torna decoração. Encontrei coisas que criam uma ruptura no olhar do espectador, mas que continuam orgânicas, abertas. É aí que paro. Para minha última exposição em Nova York eu tinha realizado um pequeno quadro que não me satisfazia realmente. Ao chegar lá, decidi não mostrá-lo e vou retrabalhar nele.
Também já me aconteceu de jogar fora um quadro. Existe até uma fase de meu trabalho, por volta de 1987, da qual não tenho nenhuma tela. Duas ou três foram vendidas, mas dei as outras a uma pessoa na rua. Não podia guardá-las em meu ateliê, para mim eram como fantasmas monstruosos.
Lacroix - O que é muito aperfeiçoado em seu trabalho é esse lado aparentemente inacabado, que é interessante. Existe sempre uma área não coberta. E, na verdade, se essa área for pintada, torna-se papel pintado, não é mais pintura.
Milhazes - Sim, quero manter a idéia de composição.
Lacroix - Você vê muitos outros artistas no Brasil e nos Estados Unidos? Compara seu trabalho com o de outras pessoas?
Milhazes - No Brasil tenho alguns amigos artistas, mas o trabalho deles não está realmente ligado ao que faço. Nos Estados Unidos e na Europa tenho mais relações com artistas que trabalham na mesma linha que a minha. Para mim é importante não ficar só. Philip Taaffe, um pintor americano de cujo trabalho gosto muito, também utiliza a idéia de decorativo. A inclusão de elementos da arte decorativa na pintura abstrata é uma questão que retorna com freqüência.
Nos anos 70, Robert Kushner lançou a "pattern-painting" e nos anos 80 as pinturas de Philip são, de maneira surpreendente, a melhor representação desse estilo. Também estou em contato com outros artistas americanos e ingleses, como Polly Appfelbaum, Franz Ackerman, Fiona Rae, Sarah Morris, David Reed, Fabian Marcaccio, para citar alguns.
Lacroix - Você tem reflexões que lhe vêm à cabeça em relação ao que acontece no Brasil e no mundo? O 11 de Setembro mudou seu trabalho em suas relações com os Estados Unidos?
Milhazes - As grandes questões da vida, o mundo em que vivemos, fazem parte de meu trabalho de maneira subjetiva. Meu ateliê é um universo à parte dessa realidade. Meus sentimentos surgem por meio das cores, das formas, dos símbolos... Depois do 11 de Setembro o repertório dos anos 70 que me interessa está cada vez mais presente em minha pintura, o símbolo de "peace and love", por exemplo, se tornou uma constante.
Lacroix - Eu pessoalmente tenho essa angústia do fim do mundo, do fim de qualquer coisa. Milhazes - Nós perdemos o sentido de respeito.
Lacroix - É preciso lutar contra isso. Não podemos trabalhar da mesma maneira, mesmo que seja no sentido de um trabalho mais alegre, de um trabalho mais espiritual. A prova disso é que seu trabalho se torna mais leve e mais espiritual.
Milhazes - Certamente. Eu acredito na vida, na beleza das coisas que trazem uma energia positiva. É também a arte que dá certo sentido à época contemporânea e que pode mostrar um caminho diferente. É por isso que não gosto das exposições que parafraseiam o mundo ou o jornal matinal. Acredito na estética.


Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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