São Paulo, domingo, 02 de maio de 2004

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+ sociedade

Formação de alianças para a manutenção do poder não legitima existência de uma "zona de amoralidade" política

Em defesa do moralismo

Ruy Fausto
especial para a Folha

Este texto se refere em parte aos acontecimentos recentes em torno de um caso de corrupção envolvendo um assessor de um ministro, mas, de um modo mais geral, ele concerne ao estatuto atual da ética e, em particular, ao papel que a esquerda deve conceder à ética no interior da política. Há uma estranha unanimidade (não só na esquerda) em torno da condenação do "moralismo". Digamos desde já: se "moralismo" significa a recusa de toda e qualquer aliança em política, a crítica do moralismo se justifica plenamente. O imobilismo total em nome da pureza política absoluta é a pior das coisas. E sabe-se que o discurso moralista vazio ou extremo pode servir como ideologia e se interverter no seu contrário. Mas não se trata disso. Tentarei mostrar que, por trás da crítica do "moralismo", existe outra coisa: uma carga de preconceitos anti-éticos que é preciso desmistificar.
A crítica da moral (neste texto, uso "moral" e "ética" como sinônimos) é um "leitmotiv" do pensamento "contemporâneo". Ela está em Nietzsche, em Marx e foi possível tirá-la de Freud. Assim, a crítica à ética põe no mesmo campo filosofias opostas. Entre nós, há um fenômeno semelhante. Um filósofo conhecido desenvolveu o tema da "zona de amoralidade" inerente à política. Volto a esse tema, não porque ache que seu discurso seja pertinente, mas porque esse discurso continua circulando sem crítica.
O autor tentou se explicar, dizendo que amoralismo não é antimoralismo. Mas, como tentei mostrar em outro lugar, o termo "amoral" designa certamente o que é contrário à ética, já que "imoral" passou a ter sobretudo a conotação daquilo que fere o puritanismo em matéria sexual ou de "bons costumes" (o que -fora os casos de violência, pedofilia inclusive-, nada tem a ver com a ética).
A tal "zona de amoralidade", segundo o mesmo filósofo, seria inerente a toda competição. O que significa que ela habitaria não só a grande política, mas também a universidade, a vida pessoal etc. A respeito do caso Collor, ele dizia explicitamente que, em política -e, na realidade, para ele, na competição em geral- o limite era a revelação dos fatos: desde que se consiga não ser descoberto, não há objeção. A leitura pretensamente vulgar dos textos desse filósofo é, assim, a leitura que nos dá a essência deles.
O que se confirma, aliás, pela intervenção recente do seu autor a propósito do caso em tela. Retomando o seu discurso habitual, ele termina não pedindo mais exigência moral ao PT, mas pedindo menos... O PT deveria ser "menos juiz e mais empreendedor". Isto é, o PT deve tolerar mais do que tolera (dentro e fora dele, sem dúvida), desde que "faça". Eu poderia mostrar que, em outros registros, a tendência a pôr a ética entre parênteses aparece também em outros filósofos e cientistas sociais do país.
Minha posição -começo pelo problema das alianças- é a de que, se um partido como o PT é obrigado a fazer alianças, estas devem ter limites de dois tipos, políticos e éticos. E, no interior de cada um desses limites, seria preciso distinguir os casos extremos (o das personalidades ou partidos claramente reacionários ou notoriamente corruptos), para os quais as alianças são vedadas em termos mais ou menos absolutos; e os outros casos, em que dependem em geral das circunstâncias.
Mas admitir limites éticos não seria cair no moralismo? Situo-me no interior da perspectiva de uma esquerda democrática que não visa a instituir, mesmo a longo prazo, nenhuma sociedade comunista e que também rejeita, como caminho fundamental, uma revolução violenta. Se a perspectiva fosse revolucionária e comunista, já aí -é preciso observar- a ética e, em alguma medida, a luta contra a corrupção não estariam totalmente ausentes, mas esta última, sobretudo, teria um papel subordinado.
Porém na nossa perspectiva, a luta contra a corrupção passa a ser, de algum modo, um objetivo estratégico. E, sendo assim, a transigência em relação aos corruptos, enquanto meio para realizar um fim que tem como elemento importante, precisamente, a redução radical da corrupção, produz uma "má" contradição que leva a um impasse. O meio -que aliás tende a uma multiplicação "infinita"- bloqueia a realização do seu fim. (A perspectiva que defendo é pós-dialética: a experiência do século 20 nos obriga a pôr o que o marxismo apenas pressupunha. O que não significa fundamentar, sem mais, a política na ética. Quanto às posições que critico, elas são pré-dialéticas).
Mas, se nem todos os meios são válidos, quais são os limites para a ação? E qual a diferença entre os limites da ação no plano da política ou da grande política e no plano da vida dita pessoal (ou também na micropolítica)? Os limites no interior da política -refiro-me aos limites éticos da política, há limites especificamente políticos, já indicados- são, em grandes linhas, jurídicos. Mas, atenção, limites jurídicos não são, como se pretendeu, os de saber se fulano foi ou não condenado pela Justiça. Os políticos desonestos têm meios de escapar da Justiça, sendo o mais simples deles a compra dos juízes. A fortiori, o limite não pode ser o de não ser descoberto... O limite ético, no interior do plano da grande política, é, em grandes linhas, o de saber se, objetivamente, houve ou não houve transgressão da lei.
Já no plano da vida dita pessoal, e também no plano do microssocial, o critério jurídico, mesmo no sentido preciso em que o tomei, é insuficiente. É possível fazer coisas totalmente condenáveis sem violar a lei. Manipular uma banca em concurso, ser desleal para com um amigo. Aqui o direito não basta, e intervém a ética. Dir-se-á, fazendo eco a uma frase clássica, que a ética é "impotente". Mas ela seria muito menos impotente -e a política não é onipotente- se todos não se apressassem em dizer que ela é impotente...
Voltando à macropolítica para concluir. A experiência petista só terá êxito se o PT for, ao mesmo tempo, um partido igual aos outros, no sentido de que respeita plenamente as regras democráticas, e um partido diferente dos outros, no sentido de que suas exigências políticas e éticas são de tipo original. Não há política de esquerda pensável -nem viável- sem referência a valores.


Ruy Fausto é professor emérito da USP e autor de, entre outros livros, "Marx -Lógica e Política" (editora 34).


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