São Paulo, domingo, 02 de maio de 2004

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Ponto de fuga

Terror e crueldade

Jorge Coli

Seis filmes de José Mojica Marins foram editados, há dois anos, em DVD e reunidos num estojo pela marca Cinemagia. É o resultado evidente de um trabalho feito com cuidado amoroso, inteligência e conhecimento aprofundado. São obras que têm o personagem de Zé do Caixão como centro, ao qual se acrescenta o de Finis Hominis, no filme do mesmo nome. Estão longe de esgotar a filmografia de Mojica Marins, que deve conter muitos outros tesouros, mas permitem um contato consistente com esse mundo de poderes criadores fora do comum.
Há grande firmeza no modo de fotografar, definir os ângulos, iluminar, montar. Essa certeza sem hesitação surpreende pela energia expressiva das tomadas, conferindo a tudo presença e verdade. O simples modo de mostrar o vulto de Zé do Caixão andando numa rua escura ou de expor um rosto contorcido pelo medo vem carregado de intensidades capazes de provar que o essencial, em arte, não se aprende no colégio. Acrescente-se o imaginário desvairado, cujo tropismo é conduzido pela exposição da crueldade visual: o cinema de Mojica tem pulsões semelhantes àquelas que presidiram a escrita de Artaud ou de Sade.
Mojica foi classificado, um pouco facilmente, como "primitivo". É verdade que seu cinema não demonstra nem obediência a uma gramática convencional nem fluência habilidosa. A rugosidade que se sente ali é antes força que fraqueza; por contraste, ela demonstra que muito cinema "bem feito", liso, escorreito e bem-intencionado permanece numa superfície sedutora, mas sem substância e sem permanência.

Centros - As criações de José Mojica Marins são singulares e originais, não se assimilam a nenhuma outra, mesmo no domínio específico do filme de terror. A história contada se esboça com traços largos e norteia a ação sem muito rigor. O importante são situações intensas, episódios que adquirem, com freqüência, um caráter autônomo e que se costuram como podem no resto da trama.
A unidade é outra, origina-se em obsessões reiteradas que seria fascinante estudar, como fez Carlos Primati num ensaio sobre o caráter crucial do olho e do olhar nessa obra. Os filmes se interpenetram, reapresentam cenas vistas anteriormente, em obras precedentes, mas renovadas em seus sentidos. Sobretudo, Zé do Caixão torna-se mais que um personagem, vira uma entidade, uma espécie de mito.
Outros atores foram diretores de si mesmos, criando também silhuetas marcantes; Chaplin é o melhor exemplo. Porém talvez não haja outro caso de um diretor que surja num filme, como Mojica em "Delírios de um Anormal" (1978), para tranqüilizar uma vítima, explicando que Zé do Caixão não existe, é imaginário e, portanto, não deve ser temido. Como esse desdobramento não se dá na realidade, mas na ficção do cinema, é claro que Zé do Caixão ressurge mais real e mais cruel do que nunca, desmentindo o ceticismo de seu criador.

Formas - Décio Pignatari assinalou o "satanismo baudelairiano" de Mojica Marins. Há, de fato, pontos em comum entre os dois universos. Um deles é a admiração pela beleza feminina, perfeita, mas vulnerável, sujeita à destruição, ao apodrecimento. Porém, no avesso de Baudelaire, o homem se ergue cruel, e a mulher, dominada, é sua vítima. Zé do Caixão, grande transgressor porque se considera acima da humanidade e de suas pobres crenças, está em constante busca insatisfeita de uma "mulher superior", à sua altura.

Teias - A cultura de Mojica é eminentemente popular: filmes num cinema de bairro em sua infância, quadrinhos e, é bem provável, histórias amedrontadoras de tradição oral. Mas ela tem afinidades com certos grandes momentos da arte do Ocidente, como o teatro "de horror" elisabetano. Seria, por exemplo, magnífico se Mojica escolhesse um dia, por tema, a tragédia "Titus Andronicus", de Shakespeare. Nela, um general romano, pai de uma moça que foi estuprada, teve as mãos decepadas e a língua arrancada, vinga-se, servindo à rainha Tamora, mãe dos dois criminosos, tortas feitas com a carne e o sangue de seus próprios filhos.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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