São Paulo, domingo, 02 de maio de 2004

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"A Civilização Feudal", de Jérôme Baschet, renova a cronologia do período ao considerar a América colonial como extensão da Idade Média européia

A velha dinâmica do Novo Mundo

Jacques le Goff
especial para o "Le Monde"

Permitam-me, já que o autor se refere à minha "Civilisation de l'Occident Médieval" [Civilização do Ocidente Medieval, ed. Arthaud, 1964], avaliar o caminho percorrido em 40 anos no conhecimento e na interpretação da Idade Média, ao apresentar "La Civilisation Féodale - De l'An Mil a la Colonisation de l'Amérique" [A Civilização Feudal - Do Ano Mil à Colonização da América], de Jérôme Baschet.
Este livro marcará época. A ler o subtítulo, essa Europa medieval tende a uma propagação: o descobrimento da América e sua colonização, realizando em seu proveito uma globalização que faz entrar na história interconectada um continente até então isolado.
Jérôme Baschet renova assim a cronologia. A Idade Média propriamente dita só começa nos arredores do ano mil quando se produz "uma mudança completa de tendência". A Antigüidade tardia definitivamente desapareceu, a Idade Média feudal aparece. Uma mesma exasperação inovadora de herança hagiográfica ocorre no final do século 15. Baschet adota a idéia de que a Idade Média não acabou aí, que há uma "longa Idade Média", mas ele a acompanha numa direção inovadora, a do Novo Mundo.
O que os conquistadores espanhóis trouxeram a este, com os romances de cavalaria em suas bagagens, foi de fato a Idade Média. E Baschet adotará a análise da Controvérsia de Valladolid (1550-1551) sobre a natureza dos índios para fazer disso uma ilustração da "lógica equívoca" do cristianismo medieval partilhada pelos oponentes que crêem, tanto uns quanto outros, na coexistência da hierarquia e da igualdade.
A invenção dessa época feudal americana se inscreve na aventura pessoal de Baschet. Convidado para lecionar na universidade mexicana de San Cristobal de las Casas, o jovem medievalista ficou fascinado por Chiapas (que lhe inspirou um estudo contemporâneo, "L'Étincelle Zapatiste" [A Faísca Zapatista, ed. Denoël, 2002]), esforçando-se por compreender a evolução histórica por idas e voltas entre passado e presente. Ele divide desde então seu ensino entre San Cristobal e Paris. Donde o projeto de explicar ao público mexicano uma civilização continuada em feudalidade americana. Uma ocasião de repensar a Idade Média européia.


"O impulso que conduz à conquista das Américas é basicamente o mesmo que vemos operar desde o século 11"


Essa reorientação renova a cronologia da Idade Média. O que se observa é um crescimento e uma expansão. Eu havia combatido em 1964 a visão tradicional de uma Idade Média de estagnação e de obscurantismo em favor de uma Idade Média de criação. Com mais força e clareza, e uma admirável mestria sintética, Jérôme Baschet demonstra que a palavra-chave da civilização feudal, seu "leitmotiv" e seu fio condutor, é "dinâmica". O historiador explica esse aumento de importância por meio de uma série de tensões segundo dois trajetos paralelos.
O primeiro oferece uma bela exposição da instalação da feudalidade sob o duplo signo da ordem e do crescimento, integrando o fruto dos trabalhos de Robert Fossier, Georges Duby e Pierre Toubert e demonstrando o sistema das tensões feudais entre impulsos rural e urbano, "dominium" senhorial e majestade da realeza. Construção que reúne sob sua autoridade a concepção trifuncional da sociedade ("os que rezam, os que combatem, os que trabalham"), descoberta indo-européia de Dumézil que adquiriu direito de cidadania na história medieval enquanto "imaginário do feudalismo".
Finalmente, um grande capítulo estuda, nas perspectivas abertas por Alain Guerreau, a evolução da igreja medieval, "instituição dominante do feudalismo... sua coluna vertebral e o fermento de seu dinamismo".
Como situar então a Idade Média dos séculos 14-15, tradicionalmente concebida como o tempo de um declínio, apesar do prestígio do grande livro de Johan Huizinga, "O Outono da Idade Média" (1919)? Baschet é claro: "As graves dificuldades [do período] não impedem a manutenção de uma forte dinâmica... O impulso que conduz à conquista das Américas é fundamentalmente o mesmo que vemos operar desde o século 11". Assim irá prosseguir "uma dinâmica milenar de afirmação".
A segunda parte expõe as estruturas fundamentais da sociedade medieval. A análise estrutural vem equilibrar a exposição cronológica. Com isso, Jérôme Baschet faz uma referência explícita à história das mentalidades, que ampliou a historiografia do último meio século. Alegro-me de ver Baschet aprofundar a exposição das estruturas espaço-temporais da cristandade medieval. A história se faz no tempo e no espaço. O tempo é a uma só vez o tempo litúrgico do calendário, o tempo social dos campos e das cidades, o ideológico da história e o imaginário da escatologia.
Quanto ao espaço, Baschet mostra como se articulam entre si, sob a égide da igreja, a localização das relíquias e o controle das peregrinações, a tensão entre o apego do homem medieval ao solo e sua necessidade de viagem, de deslocamento ao exterior, que faz dele um "homo viator", e também a tensão entre o enraizamento interior e o apelo exterior.
Outros conflitos fazem dele um combatente. Contra o inimigo, e é a guerra entre o bem e o mal, o combate contra satã, a outra grande criação com vocação dominadora da Idade Média e que Jérôme Baschet conhece bem por ter escrito uma importante tese, "As Justiças do Além - As Representações do Inferno na França e na Itália dos séculos 12-15" (1993), onde mostra como a Idade Média foi também criadora de uma nova geografia do Além, compreendendo Paraíso e Inferno e a eles acrescentando o perturbador Purgatório e os dois limbos.
Contra ele mesmo também, e é a união tumultuosa dos corpos e das almas chamados a reencontrarem-se na ressurreição, depois de terem vivido na terra o par dilacerado de uma pessoa ambivalente.
Mas a civilização feudal inventou também solidariedades e iluminações. Para além da solidariedade hierárquica do domínio feudal, da comuna e do reino, a Idade Média criou aquela, fundamental, do parentesco, que, com a terra, está na base da feudalidade.
Tanto mais que ao parentesco da linhagem se acrescenta o parentesco espiritual do batismo, da ordem religiosa, da confraria. Ele assegura a reprodução física e simbólica da cristandade. E o "ponto focal do sistema" é o parentesco divino por meio dos paradoxos da Trindade e da estranha assunção da Virgem, mãe, filha e mulher de Cristo, alimentando uma outra tensão, a vivida pela mulher medieval entre a divinização de Maria e sua condição terrena ambígua. Curioso monoteísmo, esse monoteísmo feudal que escandaliza judeus e muçulmanos.
Iluminação, por fim: a das imagens. A feudalidade é uma civilização da imagem mediadora, nem adorada nem desprezada. Baschet instala admiravelmente uma civilização da "imago" no centro da antropologia cristã, uma vez que, segundo Jean-Claude Schmidt, o Deus do "Gênesis" criou o homem "à sua imagem e à sua semelhança".
Tendo conduzido até as costas da América a civilização feudal, que ele resume como "uma lógica geral de articulação dos contrários", Jérôme Baschet a deixa entre o bem e o mal que ela igualmente praticou, conforme a expressão de Walter Benjamin: "Não há nenhum documento de cultura que não seja também documento de barbárie". Todo aquele que quiser entrar na Idade Média nem sombria nem dourada da história deverá, daqui por diante, passar por esta "Civilização Feudal".

Jacques le Goff é historiador francês e um dos principais medievalistas vivos. É autor de "São Luís" (ed. Record) e, com Jean-Claude Schmitt, "Dicionário Temático do Ocidente Medieval" (Edusc/ Imprensa Oficial).
Tradução de Paulo Neves.

La Civilisation Féodale
576 págs., 28,50 euros de Jérôme Baschet. Ed. Aubier.

Onde encomendar
Livros em francês podem ser encomendados, em São Paulo, na Fnac (tel. 0/xx/11/4501-3000) e, no Rio de Janeiro, na livraria Leonardo da Vinci (tel. 0/xx/21/2533-2237).



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