São Paulo, domingo, 02 de julho de 2000


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O preconceito sociológico em história

Evaldo Cabral de Mello

No seu livro de recordações, Tocqueville (1805-1859) assinalou a diferença de perspectiva entre o intelectual e o político. Ao passo que o primeiro escrevia a história pairando sobre os acontecimentos e em termos de grandes forças impessoais, o segundo tendia a vê-la episodicamente. Ambos, segundo Tocqueville, se equivocavam. Sua própria reflexão levava-o a detestar "esses sistemas absolutos que fazem depender todos os sucessos da história de grandes causas primeiras, ligando-se umas às outras por um encadeamento fatal e que suprimem, por assim dizer, os homens da história do gênero humano", tendência que julgava estreita "na sua pretensa grandeza (...) sob seu ar de verdade matemática". Parecia-lhe que "o acaso ou antes a trama de causas segundas, que chamamos assim por não saber destrinçá-la, entra consideravelmente em tudo o que vemos no teatro do mundo". Por outro lado, ele não podia se abster de pensar que "o acaso só produz o que estava preparado anteriormente", pois "os fatos precedentes, a natureza das instituições, o feitio dos espíritos, o estado dos costumes são os materiais com os quais ele produz essas viradas que nos surpreendem e atemorizam". Restava, portanto, fazer a grande síntese. Já num passo de "A Democracia na América", ele esboçara a sociologia da sociologia, ao explicar a preferência pelas macroexplicações históricas, inerente a essa disciplina eminentemente oitocentista na sua origem, pelo feitio democrático dos tempos. Como o século 19 estava dominado pela paixão da igualdade, não se lograva discernir a marca de vontades individuais que se imprimissem duradouramente sobre os eventos. Daí que os intelectuais tendessem a pensar a história como um sistema de causas gerais. Nessa perspectiva, as "Recordações" poderiam ser lidas a contrapelo tanto de "A Democracia na América" quanto da obra que tinha em preparo ao morrer, "O Antigo Regime e a Revolução". O que ele pôs de relevo nesses livros são as grandes linhas de força, enquanto a tônica das "Recordações" é inescapavelmente a do político, como era então o autor, deputado à Assembléia Nacional pelo seu distrito normando. Como a perspectiva do homem de ação privilegia a trama, a atuação individual ocupa o primeiro plano da cena nas memórias, donde inclusive o recurso ao retrato histórico, no admirável perfil que traçou de Luís Napoleão, técnica cultivada pela historiografia oitocentista, mas abandonada no século 20, na sua empolgação com a história econômica e social. Escusado assinalar que, na dicotomia tocquevilliana, já se encontram em botão as duas grandes perspectivas que ainda presidem à sociologia atual, o "totalismo" -para evitar o anglicismo "holismo"- e o individualismo metodológico. Antítese que está na raiz de uma outra, entre causalidade sociológica e causalidade histórica, proposta por uma das obras mais importantes de filosofia crítica da história que o século 20 produziu, a "Introdução à Filosofia da História", de Raymond Aron, grande leitor e intérprete de Tocqueville. Tese defendida na Sorbonne em 1938, trata-se de livro de leitura penosa até mesmo para os versados na matéria, como H.-I. Marrou, que, em "Do Conhecimento Histórico" (1954), vulgarizaria (no bom sentido) várias das teorias aronianas. Marrou confessava haver dedicado à leitura e à releitura da "Introdução" nada menos de três meses de verão, vale dizer, de um período livre dos afazeres quotidianos de professor universitário. Mas a dificuldade da "Introdução" nada tem a ver com a obscuridade, buscada ou não, que afasta os amadores e impressiona os incautos. A despeito da sua formação germânica, Aron foi um mestre da expressão didática; e boa parte da sua atividade intelectual foi consumida, desde seus primeiros livros, "A Sociologia Alemã Contemporânea" (1935) e "A Filosofia Crítica da História" (1938), no esforço verdadeiramente caridoso de debulhar para os leigos o que pensaram os grandes alemães, de Dilthey a Max Weber. A dificuldade da obra de Aron vem da necessidade imposta ao leitor de trafegar incessantemente entre os argumentos setoriais e os argumentos centrais.

Duas tendências opostas
A "Introdução" foi pensada contra duas tendências opostas. A primeira, o "positivismo histórico", que ainda dominava na França dos anos 30, malgrado os pais fundadores dos "Annales" já haverem encetado seu combate contra a história factual. A segunda foi o "sociologismo", àquela altura um perigo antes potencial do que real, ao menos na historiografia francesa. Aron pensou assim não só contra o passado, mas também contra o futuro, vale dizer, contra o que constitui hoje a atmosfera dominante na historiografia, pois sociologismo pode servir para designar não só a inclinação sociologizante, estrito senso, aplicada à história, mas também o que, a partir dos anos 50, virá a ser o impacto das ciências humanas em geral sobre o conhecimento histórico. O ponto de partida de Aron foi o debate alemão de finais do século 19 e começos do 20 em torno das relações entre a história e as ciências naturais; e, em especial, a tese de Weber segundo a qual ela seria uma reflexão bifronte, que recorria, de um lado, à compreensão da conduta dos agentes históricos (a que Aron dedica a segunda parte da "Introdução"), e, de outro, à causalidade (de que se ocupa na terceira). Salvo Rickert, esses precursores, absorvidos pela missão de provar a irredutibilidade da história diante da natureza, não se tinham preocupado com as diferenças entre a história e as outras ciências humanas, embora na época a sociologia já constituísse uma disciplina de tendências visivelmente imperiais. De acordo com Windelband, Rickert distinguiu entre o objetivo generalizador das ciências naturais e o objeto individualizante das ciências humanas, mas, indo além do seu mestre, sobrepôs a esta uma segunda distinção, baseada na referência aos valores. Enquanto as ciências naturais desconheceriam a referência aos valores, mas conheceriam a diferença entre generalização (como na física) e individualização (como na geologia), as ciências humanas seriam, por um lado, generalizantes e valorativas (como a sociologia e a economia) e, por outro (o caso da historiografia), individualizantes e valorativas. Já Ranke, que não tinha ambições teóricas, atinara, aliás, com a distinção quando escrevera que "há realmente apenas duas maneiras de adquirir conhecimento sobre assuntos humanos, por meio da percepção do particular ou por meio da abstração". Mas, enquanto Windelband, Rickert ou Dilthey estarão basicamente interessados em fundar a autonomia das ciências humanas em relação às ciências naturais, Ranke utilizara o argumento no propósito de preservar a história das pretensões excessivas do hegelianismo. Tamanho atrevimento lhe custaria da parte de Hegel o comentário depreciativo de que ele era apenas "um historiador comum".

Mera questão de gosto
Como o positivismo histórico morreu, o interesse da "Introdução à Filosofia da História" consiste hoje na segunda vertente, a crítica ao que Aron chamou "preconceito sociológico". Nesse particular, a obra contém por antecipação a crítica da história estruturalista atualmente praticada, que tende a negligenciar a causalidade histórica em favor da causalidade sociológica. Em dois dos cursos que professou no Collège de France nos anos 70, postumamente editados sob o título de "Lições sobre a História", Aron destinou uma farpa ao estruturalismo braudeliano, inclusive aos historiadores que "pensam tornar-se doutos quando fazem abstração dos detalhes dos acontecimentos e crêem que a história da série dos preços do bife a partir de 1950 é singularmente mais interessante que a narrativa das revoluções".
Não havia por que considerar um tipo de história mais científico do que o outro, tudo não passando de "mera questão de gosto". Qual a diferença entre causalidade sociológica e causalidade histórica? Simplificando excessivamente, poder-se-ia dizer que a causalidade sociológica assemelha-se à perspectiva do intelectual segundo Tocqueville, a histórica, à perspectiva do homem de ação. A sociologia pressupõe a explicação que transcende o curso dos acontecimentos para buscar as regularidades macroscópicas, trazendo embutida uma opção teórica que se manifesta por meio da eficácia, real ou pretendida, de certos "fatores", que as escolas sociológicas de oitocentos e começos de novecentos procuraram erigir em chaves de suas macroexplicações: o "fato" geográfico, o racial, o demográfico, o econômico etc. Por sua vez, a causalidade histórica seria uma explicação imanente ao curso dos acontecimentos, devendo levar em conta a sucessão cronológica. Aron, contudo, frisa o fato de que ambas causalidades não são excludentes, mas complementares. O homem de ação opera entre regularidades, mas também entre acasos, entendendo-se acaso à maneira do velho Cournot, sem nenhum laivo metafísico ou providencialista, como a interferência imprevista de uma sequência ou série histórica em outra sequência ou série histórica, por exemplo, a interferência inesperada da guerra anglo-holandesa de 1654 no conflito militar entre Portugal e os Países Baixos em torno do Nordeste.

O imprevisível e a repetição
Sem regularidades, o agente estaria sem rumo, perdido numa totalidade ininteligível; e, sem o acaso, reduzido à condição de mero executor do destino. O que explicaria a necessidade para o homem de ação, embora não o faça necessariamente, de integrar as duas categorias, calculando as consequências da decisão a tomar numa situação que é essencialmente ambígua, pois ao mesmo tempo em que contém elementos imprevisíveis, comporta também elementos passíveis de repetição. Aron pretendia demonstrar assim a legitimidade e indispensabilidade de ambos os tipos de explicação, pondo em causa "o preconceito sociológico" que privilegia um tipo de causalidade relativamente ao outro.
A seu ver, não há contradição entre ambos tipos ou só haveria se um deles fosse considerado como o único válido. Devido ao seu caráter macroscópico, a explicação sociológica já começa necessariamente a um nível mais elevado de generalização do que a explicação histórica. Como as formulações abstratas da sociologia não esgotam a concreção da experiência histórica, sempre subsistirá a margem de irredutibilidade, que, não pertencendo ao ser, mas ao conhecer, é detectável inclusive nas ciências naturais, embora na história possua significado próprio.
Como a causalidade sociológica corresponde à história que os homens fazem sem saber que a estão fazendo, sempre haverá que recorrer à causalidade histórica, que é a causalidade da história vivida, da história que os homens pensam que estão fazendo. O que interessa à sociologia das guerras é muito diferente do que interessa ao historiador das origens da Primeira Guerra Mundial. Ele está empenhado em compreender não como a competição imperialista provocou o conflito, mas em reconstruir a sequência fatual, a qual terá sido de começo metodicamente descartada pelo sociólogo, vale dizer, o processo de decisão dos governos envolvidos e os esforços diplomáticos feitos entre o ultimato austríaco à Sérvia e as declarações de guerra das potências européias. Reconstrução que não é menos rigorosa nem menos trabalhosa do que a das séries estatísticas a que recorrerá o sociólogo ou o economista ao abordarem a concorrência entre a Inglaterra e a Alemanha pelo controle dos mercados mundiais.
Aron não desce a exemplos, mas procuremos ilustrar a diferença, começando por um caso extremo de causalidade sociológica que já não é levada a sério, uma explicação macroscópica de natureza racial. Partindo das idéias de um jurista do tempo de Luís 16, Boulanvilliers, Gobineau explicou a Revolução Francesa como a reação dos descendentes da população galo-romana contra o domínio a que a submetera a aristocracia germânica dos francos. O problema de semelhante teoria, como das explicações macroscópicas em geral, consiste em adequá-la à realidade vivida da Revolução Francesa.
No outro extremo, o da explicação histórica, poder-se-ia citar a história da Guerra do Peloponeso, de Tucídides, em que o encadeamento fatual é apresentado em estado puro, mas, como sua leitura pode ser indigesta, tome-se uma obra menos complexa e ambiciosa: "O Telegrama de Zimerman", em que Barbara Tuchman reconstrói a intriga (no sentido da palavra inglesa "plot", portanto sem conotação pejorativa), que levou à entrada dos EUA na Primeira Guerra Mundial. Como sua causalidade é a histórica, a autora não está interessada nas grandes forças que condicionaram a decisão do presidente Wilson, como o interesse econômico e geopolítico dos EUA em evitar que a aliança imperial da Alemanha do Kaiser e da Áustria dos Habsburgos dominasse a Europa liberal da Grã-Bretanha e da França. Ela preferiu narrar a consequência de eventos desencadeada pela expedição do telegrama em que o ministro das Relações Exteriores do Reich instruía seu representante no México a concluir um pacto com este país visando a invasão e a conquista do Texas. Mas a teoria de Gobineau ou o livro de Tuchman são, como disse, exemplos extremos, quase tipos ideais de explicação, de vez que, na prática, o historiador se move ao longo de um eixo que vai da causalidade sociológica à causalidade histórica, determinando sua posição de maneira a alcançar o ponto de equilíbrio que lhe pareça mais adequado à inteligibilidade do tema. Ele pode procurar integrar ambas as perspectivas ou fazer a soma de uma parte narrativa e de outra interpretativa, como no "Carnaval de Romans", de Le Roy Ladurie; ou, simplesmente, algo bem mais difícil, misturando narrativa e interpretação no mesmo discurso, vale dizer, recorrendo à grande arte dos historiadores do século 19, abandonada pelos seus sucessores do 20. A história comparada também ajuda a entender a diferença entre o ofício do historiador e o do sociólogo. A história comparada encontra-se, com efeito, na fronteira entre história e sociologia, a ponto de certas obras deixarem o leitor na incerteza. "As Origens Sociais da Ditadura e da Democracia", de Barrington Moore, é um estudo de sociologia ou de história comparada? É certamente as duas coisas, embora não seja seguramente um livro de história. Dos "Reis Taumaturgos", de Marc Bloch, dir-se-ia que é uma obra de historiador dotado de uma perspectiva de história comparada.

Tentação generalizante
Nada mais útil para o historiador do que iluminar seu tema por meio de outros exemplos do gênero, como para o historiador de uma sedição colonial no Brasil, o conhecimento, mesmo superficial, de outros movimentos da mesma natureza na América espanhola, o qual lhe sugerirá hipóteses a explorar ou a evitar, questões a levantar ou a descartar e lhe permitirá corrigir o vezo narcisístico dos estudiosos que tendem a acreditar na enorme originalidade dos seus temas. Mas, se o historiador do nativismo pode aprender enormemente com a história dos movimentos de independência no México ou no Peru, ele não deve sucumbir à tentação generalizante da sociologia, a menos que queira jogar a história para o alto. Para o historiador, a história comparada é a ante-sala da sociologia, assim como para o sociólogo ela é a da história. Já se pretendeu que Weber foi mais um grande comparatista do que um sociólogo. E, com efeito, seu esboço de sociologia sistemática não chega a 10% do que escreveu, os 90% restantes sendo história comparada dos sistemas de dominação política, do fenômeno urbano ou de história das religiões. Há, aliás, quem ainda vá mais longe e, pondo em dúvida a ambição da sociologia de tornar-se uma ciência nomológica, afirme que, de fato, ela nunca passará de um comparativismo pretensioso. Na "Introdução", Aron não se ocupou da questão conexa à causalidade histórica, mas que só recentemente veio a merecer a atenção da filosofia crítica da história, a questão da narratividade, de que só veio a tratar de raspão nos cursos do Collège de France. Quem diz causalidade histórica diz narratividade, que é o discurso adequado à sua captação. Esse é o motivo pelo qual o preconceito sociológico levou ao abandono da técnica narrativa. Malgrado os melhores esforços, gênero nenhum de história, inclusive o estruturalista, conseguiu abolir o passado como sequência de acontecimentos. Paul Ricoeur observou que nem sequer a obra mais conhecida de Braudel conseguiu realizar a proeza, pois ela também contém sua intriga ou enredo, que é a mutação do Mediterrâneo de palco principal em palco secundário nas relações econômicas e de poder na Europa renascentista, intriga ou enredo que subjaz às análises setoriais do tempo longo e da conjuntura. Mesmo o que se designará de "história imóvel" pressupõe a sequência, vale dizer, a narratividade. Os camponeses do Languedoc entre a Baixa Idade Média e o século 18 viveram ao longo de um ciclo agrário de ritmo extremamente lento, mas nem por isso isento de começo, meio e fim. A história do clima requer escalas cronológicas ainda mais anchas, mas já foi narrada.

Revitalização da narrativa
Se a escola dos "Annales" liquidou com a história factual dos historiadores positivistas, ela não poderia fazer o mesmo com o a priori que é a dimensão narrativa da história. Pelo contrário, o que do ponto de vista dos seus fundadores constituiria decerto um efeito perverso, cabe sustentar que, graças aos "Annales", a história narrativa ganhou novos contornos e saiu revitalizada do teste. Hoje, a história política, mesmo em suas vertentes mais convencionalmente fatuais, como a história diplomática, pode ser feita a partir de alicerces muito mais sólidos.
Caberia, aliás, sustentar que, dada a tendência das escolas a também produzirem seus aiatolás, muitos braudelianos foram mais braudelianos do que Braudel. Afinal de contas, no prefácio à segunda edição do "Mediterrâneo", ele aludiu às razões por que resolveu concluir a obra com uma parte de história fatual. Por que o fez? Porque "uma história global não pode reduzir-se ao único estudo das estruturas estáveis ou das evoluções lentas", mesmo se estas representam, a seu ver, "o essencial do passado dos homens, ao menos do que nos agrada hoje, em 1966, considerar como o essencial".


Evaldo Cabral de Mello é historiador e diplomata aposentado, autor de, entre outros, "Rubro Veio" e "O Negócio do Brasil - Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669" (Topbooks). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 501 d.C.", da Folha.


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