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Atento mais à dimensão simbólica das sociedades do que a temas nativos, Ruy Coelho não deixou discípulos na USP
Tão longe, tão perto
Heloisa Pontes
especial para a Folha
Há alguma coisa em comum entre um modernista
destemperado e um sociólogo acadêmico? No Brasil, sim. Se as pessoas em questão se chamarem Oswald
de Andrade (1890-54) e Ruy Coelho e se suas relações
forem vistas contra um pano de fundo mais amplo que
conformou as afinidades e as notáveis diferenças entre
eles. De um lado, o modernismo, a Revolução de 30, a
leva de estudos e "retratos" do Brasil, o universo de sociabilidade das elites culturais. De outro, a Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, a missão francesa, os jovens universitários que, no
início dos anos 40, lançaram a célebre revista "Clima".
Ruy Coelho, nesse periódico, escrevia um pouco sobre tudo aquilo que mais os interessava: filosofia, estética, teatro, cinema e literatura. Ao contrário dos amigos
mais próximos -Antonio Candido, Decio de Almeida
Prado, Lourival Gomes Machado, Paulo Emílio Salles
Gomes e Gilda de Mello e Souza, que definiram, desde
logo, os temas de suas especialidades-, Ruy Coelho
transitava por todas elas. Ele fazia, em "Clima" e segundo suas próprias palavras, "o papel do casaca-de-ferro"
-aquele funcionário fardado que providencia, no circo, a troca de cenários e roupas. Quando faltava algum
artigo ou "artista de mais nomeada", Ruy Coelho inventava "algumas pelotiquices para distrair o público".
A afirmação é dele, e a ironia fina, consigo mesmo e
com os outros, era um dos traços que ele tinha em comum com Oswald de Andrade.
Ambos são autores de frases ferinas, que, com o passar do tempo, funcionam como os famosos biscoitinhos de Proust, poderosos por evocar, de uma só vez, as
múltiplas arestas de uma experiência singular. No caso
de Oswald, a dele e a dos modernistas diante do aparecimento da, então, "novíssima geração", a que pertencia
Ruy Coelho. Admiração, desconfiança, surpresa e perda de bússola. Uma profusão de sentimentos ambivalentes que foram condensados por Oswald na alcunha
que os celebrizou: "Os chato-boys". Dela nunca mais se
livraram. Chato-boys porque liam "desde os três anos,
tinham Spengler no intestino aos vinte" e, por essas e
outras, perdiam muitas coisas.
O risco do diletantismo
Ruy Coelho, por sua vez,
é autor de uma frase que até hoje faz sucesso na Faculdade de Filosofia, embora os personagens nela referidos
não se encontrem mais (infelizmente) lá: ele próprio,
Florestan Fernandes e muitos outros. Dizia Ruy que
Florestan era "uma ilha de sociologia cercada de literatura por todos os lados". Ele evidentemente era, junto
com Antonio Candido, da parte das águas, ainda que tivesse feito a sua vida profissional como professor de sociologia dessa faculdade, onde se formara em filosofia
(1941) e em ciências sociais (1942).
Dentre os membros do grupo Clima, Ruy Coelho foi o
único a realizar estudos de doutorado no exterior. Em
1945, mudou-se para os Estados Unidos. A decisão fora
motivada, segundo suas palavras, "pela necessidade de
uma formação séria e de uma carreira. Eu me lembro de
dizer ao Antonio Candido, no final de 1944, que nós corríamos o perigo muito sério de nos tornarmos diletantes, nos espraiarmos por várias coisas, ficarmos vendo
balé, cinema, teatro etc.".
A formação intelectual que Ruy Coelho recebera na
USP (sobretudo dos professores franceses, como Lévi-Strauss, Pierre Mombeig, Roger Bastide e Jean Maugué)
e atualizara na revista "Clima" seria aprofundada durante a estada no exterior. Primeiro nos EUA, como aluno de pós-graduação, entre 1945 e 1947. Em seguida, em
Honduras, onde fez a pesquisa para o doutorado sobre
os caraíbas negros. Por fim, como professor assistente
na Universidade de Porto Rico, entre 1949 e 1950, e pesquisador da Unesco, em Paris. Na capital francesa, Ruy
morou de meados de 1950 ao final de 1953. De volta ao
Brasil, em 1954, integrou-se ao corpo docente da Faculdade de Filosofia, depois de uma prolongada ausência
de quase nove anos.
Doutor aos 35 anos pela Universidade de Northwestern, em Chicago, livre-docente aos 41 pela USP, Ruy
Coelho tornou-se, aos 44 anos, professor catedrático da
antiga cadeira de sociologia 2 (em que começara como
assistente de Fernando de Azevedo). O ano era 1964 e a
cadeira em questão representava o pólo "fraco" da sociologia feita na Faculdade de Filosofia. O pólo forte era
a cadeira de sociologia 1, em que se encontravam Florestan e seus assistentes, entre os quais o atual presidente da República.
Como Florestan Fernandes, Ruy Coelho obtivera o
doutorado com um objeto etnológico, distante da atualidade social e política do momento. Mas, enquanto os
temas do doutorado de Florestan -os tupinambás e
sua guerra- tinham ressonâncias no pensamento social brasileiro, os negros caraíbas de Honduras estavam
a léguas de distância desse universo. Seguindo um padrão de carreira antropológica próprio do mundo norte-americano, Ruy escolheu um objeto distante geográfica e culturalmente da sociedade em que cursara o
doutorado. Se essa opção fazia (e faz) um enorme sentido para a antropologia praticada nos EUA, o mesmo
não acontecia aqui.
A não ser a etnologia que se dedicava ao estudo das
sociedades indígenas (mas somente daquelas situadas
no território brasileiro), as demais ciências sociais da
época privilegiavam a análise de fenômenos sociais e
culturais do país. Advém daí a restrita receptividade da
tese de Ruy. Ainda que seus colegas pudessem discutir
as conclusões a que chegara, não havia aqui um chão intelectual propício para constituir uma área de pesquisa
a partir dos desdobramentos analíticos do assunto que
escolhera para o doutorado.
Como sociólogo, voltado para a apreensão teórica das
relações entre indivíduo e sociedade, desdobrada pela
análise da conformação da personalidade e de suas ligações com a estrutura social, Ruy Coelho destoava do
perfil intelectual dominante entre os sociólogos de seu
tempo. Antenado com a produção cultural em sentido
lato, fazia sociologia numa chave diversa daquela de
seus pares. Enquanto Florestan e seus assistentes dedicavam-se à investigação de fenômenos estruturais da
sociedade brasileira, Ruy se interessava pelas dimensões simbólicas da experiência social, pela literatura, cinema, artes e pela cultura em geral.
Reconhecido por sua erudição e competência como
professor, admirado por sua verve e tiradas de efeito,
Ruy não deixou discípulos na Universidade de São Paulo, ao contrário de Florestan e de seus melhores amigos
de "Clima". A meu ver, isso se explica pelo fato de que,
diferentemente de todos eles, Ruy não se dedicou ao estudo de temas nativos, num período em que isso fora
central na conformação da agenda intelectual da universidade brasileira. Hoje, diante da necessidade cada
vez mais urgente de deixarmos de ser "brazilianistas" e
de fazermos estudos comparativos -para quem sabe
um dia não sermos mais os "desterrados na própria terra"-, vale a pena conferir de novo os resultados da pesquisa de Ruy Coelho em Honduras.
Heloisa Pontes é professora de antropologia da Universidade Estadual de Campinas e autora de "Destinos Mistos - Os Críticos do Grupo
Clima em São Paulo" (Companhia das Letras).
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