São Paulo, domingo, 02 de julho de 2000


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+ sociedade
Marshall Berman denuncia a falta de uma cultura crítica nos EUA
Nostalgia dos 60

Marshall Berman
especial para "Dissent"

Levando em consideração o morticínio e a brutalidade ao estilo nazista que engolfaram boa parte do mundo nos anos 90, é preciso topete para um americano dizer que nossa vida coletiva não tem problema nenhum. Nossa economia prospera. Não faz tanto tempo assim que não havia nada lá fora para jovens vindos de colégios e faculdades; hoje os jovens têm emprego. Depois de anos de taxas crescentes de homicídio, as pessoas matam menos umas às outras. As pessoas ainda pegam Aids, mas um maior número delas sobrevive. A sociedade americana está mais aberta e receptiva do que nunca; não é só o que se vê no Madison Square Garden ou na MTV, embora isso por si só seja algo, são todas essas famílias inter-raciais e seus filhos de colorido maravilhoso fazendo compras num sábado à tarde, no shopping center da cidade. Devemos então pegar leve e desfrutar as boas novas, certo? Anseio, assim como meus colegas da revista "Dissent", pela alegria com tanto ardor quanto qualquer um. Mas não é fácil pegar leve. A maioria de nós está na ou perto da Idade Média, e nos preocupamos com o que haverá para os nossos filhos e os filhos de nossos filhos. Eis algo que nos atormenta: parece não haver nenhuma cultura crítica na América de hoje. Uma cultura crítica é a que luta ativamente a respeito de como os seres humanos devem viver e qual o significado de nossas vidas. A maioria de nós se lembra de ter vivido na cultura crítica dos anos 60, alguns poucos são até capazes de lembrar a cultura crítica dos anos 30, e podemos sentir a diferença. Quando uma cultura crítica sucumbe ou esmorece ou desanima, secam as fontes da alegria. Qual a causa disso? Por que foi acontecer bem agora? A perda é permanente? Ou existem vestígios, fragmentos, indícios de uma nova cultura crítica iminente? De onde é que ela viria? Como poderia formar-se? Existe algo que gente como nós possa fazer para ajudá-la a surgir? Um sintoma da falta de cultura crítica hoje é o nosso fetichismo da "ordem". Políticos da estirpe de Giuliani convenceram muita gente, incluindo aqueles que controlam a mídia de massa, não só de que eles pessoalmente baixaram o índice de homicídios, mas de que fizeram algo ainda mais profundo: "Restauraram a ordem". A idéia de ordem de Rudolph Giuliani, prefeito de Nova York, parece requerer livrar as ruas não só de mendigos e sem-teto, mas também de bancas de jornal, barraquinhas de comida e artistas itinerantes. Sua campanha de reeleição em 1997 deu ênfase a testemunhos carolas de pessoas ditas eternas democratas e liberais, que passaram a amá-lo porque, à maneira de Moisés partindo as águas, "o prefeito deu cabo da violência". Durante a campanha ele proclamou que, extinta a violência, a polícia ia começar a prender as pessoas por "jaywalking" (1). A essa altura, o grande Jules Feiffer publicou uma charge (nas páginas do "The New York Times") retratando um homem que espinafrava as prioridades do prefeito e seu sentido de vida cívica. No último quadrinho, um oficial da polícia o prende. "Por que motivo?", ele pergunta. "Por "jaytalking'". A imagem de Feiffer é lapidar, não só no tocante ao prefeito, mas à cultura dos anos 90 e sua espantosa falta de "jaytalking". A qualidade mais cativante dos anos 60 foi o modo de ele nos ensinar a "jaytalk": a responder, "talk back"; a falar contra a sinalização; a falar fora da faixas designadas; a falar como nossos grandes "blue jays", os gaios americanos (aqui estão eles no "Birds of America" de Audubon, número 282), pequenos pássaros que emitem gritos sonoros e penetrantes, impossíveis de ser ignorados.

O nascimento de uma cultura
Como nasce uma cultura do "jaytalking"? Ela requer três coisas: 1) idéias poderosas e provocativas; 2) gente arguta e imaginativa trabalhando em vários setores da vida, que costumam passar totalmente despercebidos um do outro; e 3) "vizinhanças experimentais", lugares onde pessoas e idéias possam topar umas com as outras e onde jovens com pouca experiência e energia infinda, em parceria com gente de meia-idade desejosa de escapar de áreas residenciais, bairros autônomos ou subúrbios chiques possam se encontrar ou imaginar novos modos de unir idéias e pôr em prática suas novas sínteses.
A cultura crítica dos anos 60 provinha de diversas fontes. Havia nossas universidades, ampliadas e intelectualmente enriquecidas no boom da Guerra Fria. C. Wright Mills, Irving Howe, Herbert Marcuse, Noam Chomsky, David Riesman, Norman O. Brown foram todos típicos "radicais diplomados".
E eles desenvolveram suas arrojadas idéias dentro dos mais clássicos corredores acadêmicos (muitos dos criadores dos "Estudantes para uma Sociedade Democrática" foram seus alunos). Mike Harrington e Jane Jacobs trabalharam como jornalistas e editores. Grace Paley lecionou, secretariou, educou jovens e organizou passeatas (a princípio bem modestas) enquanto escrevia. William H. White, Norman Mailer, James Baldwin, Susan Sontag, Walt Kelly, Dr. Seuss, todos eles ficaram ricos com seus livros e usaram o dinheiro para dizer coisas que lhes trariam problemas (ou passariam despercebidas) se eles fossem pobres. Paul Goodman, a exemplo de vários grandes artistas da geração "New York School", foi mantido por sua mulher; Dwight Macdonald, um dos pouquíssimos radicais da autêntica classe dominante, pelos dividendos de seu patrimônio. Harold Rosenberg nos ensinou a desmascarar a mídia de massa, à qual deu uma espetacular contribuição: foi ele quem criou "Smokey the Bear". O teatro dos anos 50 gerou "A Morte de um Caixeiro-Viajante", uma das peças radicais permanentemente grandes, mas também os experimentos de vanguarda do Living Theatre e o Public Theatre, de Joseph Papp, que aliava dramaturgia vanguardista a marketing popular. E quanto às vizinhanças experimentais? Os anos 50 ofereceram várias delas. Como um saldo irônico da fuga de capitais das cidades americanas pós-Segunda Guerra, toda cidade ganhou vizinhanças de baixa renda, despojadas, capazes de incubar livrarias, estúdios de arte e grupos de dança modernos, teatros experimentais, espaços para jazz, música popular e performance -e também aqueles clubes, cafés, lojas de música e cabarés surrados que alimentaram Lenny Bruce, Nichols, May, Woody Allen e Bob Dylan. O Village de Nova York (primeiro o West, depois o East) continua tal e qual, mas havia vizinhanças como essas espalhadas pela América. No final dos anos 50, elas começaram a fervilhar de jovens vindos de todas as áreas metropolitanas, os quais podiam ler as revistas e as brochuras da Grover Press nas livrarias, bater perna nas ruas e tocar suas guitarras nos parques, ouvir sons de músicas de clubes cuja entrada não podiam pagar, encontrar pessoas instigantes feito eles com quem pudessem andar e conversar noite adentro e talvez amá-las. Essas pessoas transformavam ruas velhas, muitas vezes modorrentas, em vibrantes espaços públicos que nunca pareciam dormir. Novos tipos de espaço público foram incorporados em dois novos e importantes meios de comunicação de massas: semanários alternativos e rádios patrocinadas pelos ouvintes. Mais uma vez, a coisa se espalhou por toda parte. A América revelou-se repleta de pessoas prontas para ouvir cada minuto e ler cada linha nas mídias que considerassem suas próprias. Essas mídias ensinaram a seus leitores e ouvintes não somente como amadurecer, mas também como agir feito cidadãos, como sair às ruas e fazer barulho. Os primeiros combates foram para proteger suas próprias vizinhanças (em Nova York, a Washington Square). Mas, à medida que corriam os anos 60, a nova mídia deu saltos espirituais, expandiu seus horizontes e ascendeu à condição de genuína educadora moral. Ela ensinava seus leitores e ouvintes a pensar os negros, os pobres, os vietnamitas e as vítimas em geral como parte de suas vizinhanças. Onde é que nossa cultura encontrará de novo recursos como esses? Talvez não encontre, e os Bounderbies, Panglosses e megapiratas de toda sorte reinem para sempre. Ou talvez apenas o violento colapso econômico sacuda os americanos de sua narcolepsia. Isso poria a esquerda na horripilante posição (em que já esteve antes) de ansiar pela terrível catástrofe. Por outro lado, é bem possível, como 40 anos atrás, que a própria prosperidade do país nos confira o sossego para criar um espaço imaginativo em que as pessoas possam começar a pensar sobre uma vida melhor do que essa. Que formas assumirá o pensamento crítico? Algumas pessoas acham que não sobraram idéias críticas. No meu modo de ver, há uma superabundância de idéias críticas no ar, basta saber aspirá-las. O pensamento de Marx e Freud são tremendamente provocantes, capazes de infinitas sínteses novas, subprodutos, hibridizações. Ninguém tem autoridade de dizer em definitivo o que tais idéias significam. Nem mesmo aos fundadores é lícito fechar comportas que eles abriram (tentaram, em vão). Talvez as encarnações de amanhã sejam aprofundadas pelo feminismo ou pelo ambientalismo ou pela biologia ou pela cibernética ou pelas inúmeras coisas que os negros e as outras "pessoas de cor" terão a dizer -ou por outras formas de pensamento das quais nada sei. Seja como for, devemos reconhecer que, com Marx e Freud, todos vivemos no topo de minas de ouro radicais.

Minha culpa
Confesso (e isso não é difícil notar) que sou culpado de nostalgia pelos anos 60, dias de minha juventude. Muitos esquerdistas de minha geração desdenhavam a União Soviética, mas ainda assim tinham profunda (e muitas vezes desesperada) necessidade de se identificar com algum Outro idealizado como foco de seus anseios. Desde 1989, a necessidade de um Outro diminuiu ou pelo menos abrandou muito. É um grande avanço que hoje as pessoas consigam criticar e denunciar a vida no Ocidente sem ter de cair de joelhos diante de um Oriente mítico.
Um grande embaraço para qualquer cultura crítica do futuro é como serão transmitidas e compartilhadas suas idéias e preocupações. Não há meio de atingir multidões de pessoas, exceto por meio da comunicação de massa. Muita gente pensa que nossa mídia de massas distorce inevitavelmente qualquer idéia em slogan banal. A meu ver, embora a maioria dos conteúdos de nossa mídia seja banal, o maior problema talvez seja justamente o contrário: muitas idéias afluindo de muitos canais.
A nova mídia cumpriu um papel crucial ao criar e desenvolver a cultura crítica dos anos 60. Nos anos 90, além dos livros, jornais, revistas, filmes, teatro, música e radiodifusão existem tantas "novas mídias" -da TV a cabo, copidesque, vídeo, fanzines até o e-mail e a Internet-, que está mais difícil do que nunca não ser levado pela enxurrada. À medida que as tecnologias de comunicação entram em metástase, será mais difícil do que nunca não ser levado pela enxurrada de amanhã.
Algumas pessoas não se preocupam com isso porque não acham que nossa nova mídia tenha muito a dizer. Um epigrama da antiga cultura de computação era "Entra lixo, sai lixo". Uma década atrás, Bruce Springsteen tinha um sucesso, "57 Channels and Nothing On". Mas qualquer um hoje que tente ouvir e olhar à volta terá de admitir que há mais "on" na cultura popular americana do que a maioria de nós pensava. No verão, quando me acho mais livre para experimentar, minhas coleções incluíram: "Daria", na TV a cabo, a animada vida de uma adolescente intelectualizada e inconformista -a Franny de Salinger "geworfen" em "Orange County"; "Psychoanalysis (What Is It?)" e "Prince of Thieves"; álbuns do rapper e produtor Prince Paul; o fanzine "Processed World", uma encarnação ciberpunk da "Dissent". Todo esse material revela cérebros esplêndidos, além de sensibilidade e consciência crítica.
No cibermundo, idéias são canalizadas para salas de bate-papo, uma infinidade de espaços demograficamente pequenos, segmentados, focalizados em nichos de audiências restritos, mas intensos. A maioria dos bate-papos parece ser bem chata; ainda assim, pode acontecer de algumas pequenas salas nutrirem idéias e perspectivas capazes de fazer grande diferença. Se ao menos soubéssemos como franquear essas salas, poderíamos construir Greenwich Villages no ciberespaço.
Nessas vizinhanças experimentais, a cultura crítica de amanhã poderia vir à luz. Ou talvez não. Talvez tudo ocorra no papel, na "velha" mídia ou nas "velhas" Greenwich Villages, em velhas ruas, cafés e parques, em antiquados encontros cara a cara, entre pessoas que vivenciaram todas as novidades que os anos 80 e 90 ofereceram e que sentem necessidade de mais: de um "insight" para além da Web, da terra prometida para além da Net, onde cantam os "blue jays".



Nota do tradutor:
"Jaywalk" é atravessar as ruas de maneira imprudente, descuidada, desobedecendo a sinais e normas de trânsito (fora da faixa de pedestres, sem prestar atenção nos faróis, em diagonal, em ziguezague etc.). Mais adiante, o autor faz um jogo de palavras com "jaywalk", "jaytalk" ("talk" = falar) e "blue jay", o gaio do Leste norte-americano.

Marshall Berman é professor de teoria política e urbanismo na City University, de Nova York, autor de "Tudo Que É Sólido Desmancha no Ar" (Companhia das Letras).
Tradução de José Marcos Macedo.


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