|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ sociedade
Marshall Berman denuncia a falta de uma cultura crítica nos EUA
Nostalgia dos 60
Marshall Berman
especial para "Dissent"
Levando em consideração o morticínio e a brutalidade ao estilo nazista
que engolfaram boa parte do mundo nos anos 90, é preciso topete para um americano dizer que nossa vida
coletiva não tem problema nenhum.
Nossa economia prospera. Não faz tanto
tempo assim que não havia nada lá fora
para jovens vindos de colégios e faculdades; hoje os jovens têm emprego. Depois
de anos de taxas crescentes de homicídio, as pessoas matam menos umas às
outras. As pessoas ainda pegam Aids,
mas um maior número delas sobrevive.
A sociedade americana está mais aberta
e receptiva do que nunca; não é só o que
se vê no Madison Square Garden ou na
MTV, embora isso por si só seja algo, são
todas essas famílias inter-raciais e seus filhos de colorido maravilhoso fazendo
compras num sábado à tarde, no shopping center da cidade. Devemos então
pegar leve e desfrutar as boas novas, certo?
Anseio, assim como meus colegas da
revista "Dissent", pela alegria com tanto
ardor quanto qualquer um. Mas não é fácil pegar leve. A maioria de nós está na ou
perto da Idade Média, e nos preocupamos com o que haverá para os nossos filhos e os filhos de nossos filhos. Eis algo
que nos atormenta: parece não haver nenhuma cultura crítica na América de hoje. Uma cultura crítica é a que luta ativamente a respeito de como os seres humanos devem viver e qual o significado de
nossas vidas. A maioria de nós se lembra
de ter vivido na cultura crítica dos anos
60, alguns poucos são até capazes de
lembrar a cultura crítica dos anos 30, e
podemos sentir a diferença. Quando
uma cultura crítica sucumbe ou esmorece ou desanima, secam as fontes da alegria. Qual a causa disso? Por que foi
acontecer bem agora? A perda é permanente? Ou existem vestígios, fragmentos,
indícios de uma nova cultura crítica iminente? De onde é que ela viria? Como poderia formar-se? Existe algo que gente
como nós possa fazer para ajudá-la a surgir?
Um sintoma da falta de cultura crítica
hoje é o nosso fetichismo da "ordem".
Políticos da estirpe de Giuliani convenceram muita gente, incluindo aqueles
que controlam a mídia de massa, não só
de que eles pessoalmente baixaram o índice de homicídios, mas de que fizeram
algo ainda mais profundo: "Restauraram
a ordem". A idéia de ordem de Rudolph
Giuliani, prefeito de Nova York, parece
requerer livrar as ruas não só de mendigos e sem-teto, mas também de bancas
de jornal, barraquinhas de comida e artistas itinerantes. Sua campanha de reeleição em 1997 deu ênfase a testemunhos
carolas de pessoas ditas eternas democratas e liberais, que passaram a amá-lo
porque, à maneira de Moisés partindo as
águas, "o prefeito deu cabo da violência".
Durante a campanha ele proclamou que,
extinta a violência, a polícia ia começar a
prender as pessoas por "jaywalking" (1).
A essa altura, o grande Jules Feiffer publicou uma charge (nas páginas do "The
New York Times") retratando um homem que espinafrava as prioridades do
prefeito e seu sentido de vida cívica. No
último quadrinho, um oficial da polícia o
prende. "Por que motivo?", ele pergunta.
"Por "jaytalking'". A imagem de Feiffer é
lapidar, não só no tocante ao prefeito,
mas à cultura dos anos 90 e sua espantosa falta de "jaytalking". A qualidade mais
cativante dos anos 60 foi o modo de ele
nos ensinar a "jaytalk": a responder,
"talk back"; a falar contra a sinalização; a
falar fora da faixas designadas; a falar como nossos grandes "blue jays", os gaios
americanos (aqui estão eles no "Birds of
America" de Audubon, número 282),
pequenos pássaros que emitem gritos
sonoros e penetrantes, impossíveis de
ser ignorados.
O nascimento de uma cultura
Como nasce uma cultura do "jaytalking"? Ela requer três coisas: 1) idéias poderosas e provocativas; 2) gente arguta e
imaginativa trabalhando em vários setores da vida, que costumam passar totalmente despercebidos um do outro; e 3)
"vizinhanças experimentais", lugares
onde pessoas e idéias possam topar
umas com as outras e onde jovens com
pouca experiência e energia infinda, em
parceria com gente de meia-idade desejosa de escapar de áreas residenciais,
bairros autônomos ou subúrbios chiques possam se encontrar ou imaginar
novos modos de unir idéias e pôr em
prática suas novas sínteses.
A cultura crítica dos anos 60 provinha
de diversas fontes. Havia nossas universidades, ampliadas e intelectualmente
enriquecidas no boom da Guerra Fria. C.
Wright Mills, Irving Howe, Herbert Marcuse, Noam Chomsky, David Riesman,
Norman O. Brown foram todos típicos
"radicais diplomados".
E eles desenvolveram suas arrojadas
idéias dentro dos mais clássicos corredores acadêmicos (muitos dos criadores
dos "Estudantes para uma Sociedade
Democrática" foram seus alunos).
Mike Harrington e Jane Jacobs trabalharam como jornalistas e editores. Grace Paley lecionou, secretariou, educou
jovens e organizou passeatas (a princípio
bem modestas) enquanto escrevia. William H. White, Norman Mailer, James
Baldwin, Susan Sontag, Walt Kelly, Dr.
Seuss, todos eles ficaram ricos com seus
livros e usaram o dinheiro para dizer coisas que lhes trariam problemas (ou passariam despercebidas) se eles fossem pobres. Paul Goodman, a exemplo de vários grandes artistas da geração "New
York School", foi mantido por sua mulher; Dwight Macdonald, um dos pouquíssimos radicais da autêntica classe
dominante, pelos dividendos de seu patrimônio. Harold Rosenberg nos ensinou a desmascarar a mídia de massa, à
qual deu uma espetacular contribuição:
foi ele quem criou "Smokey the Bear". O
teatro dos anos 50 gerou "A Morte de um
Caixeiro-Viajante", uma das peças radicais permanentemente grandes, mas
também os experimentos de vanguarda
do Living Theatre e o Public Theatre, de
Joseph Papp, que aliava dramaturgia
vanguardista a marketing popular.
E quanto às vizinhanças experimentais? Os anos 50 ofereceram várias delas.
Como um saldo irônico da fuga de capitais das cidades americanas pós-Segunda Guerra, toda cidade ganhou vizinhanças de baixa renda, despojadas, capazes
de incubar livrarias, estúdios de arte e
grupos de dança modernos, teatros experimentais, espaços para jazz, música
popular e performance -e também
aqueles clubes, cafés, lojas de música e
cabarés surrados que alimentaram
Lenny Bruce, Nichols, May, Woody
Allen e Bob Dylan. O Village de Nova
York (primeiro o West, depois o East)
continua tal e qual, mas havia vizinhanças como essas espalhadas pela América.
No final dos anos 50, elas começaram a
fervilhar de jovens vindos de todas as
áreas metropolitanas, os quais podiam
ler as revistas e as brochuras da Grover
Press nas livrarias, bater perna nas ruas e
tocar suas guitarras nos parques, ouvir
sons de músicas de clubes cuja entrada
não podiam pagar, encontrar pessoas
instigantes feito eles com quem pudessem andar e conversar noite adentro e
talvez amá-las. Essas pessoas transformavam ruas velhas, muitas vezes modorrentas, em vibrantes espaços públicos que nunca pareciam dormir.
Novos tipos de espaço público foram
incorporados em dois novos e importantes meios de comunicação de massas: semanários alternativos e rádios patrocinadas pelos ouvintes. Mais uma vez, a
coisa se espalhou por toda parte. A América revelou-se repleta de pessoas prontas para ouvir cada minuto e ler cada linha nas mídias que considerassem suas
próprias. Essas mídias ensinaram a seus
leitores e ouvintes não somente como
amadurecer, mas também como agir feito cidadãos, como sair às ruas e fazer barulho. Os primeiros combates foram para proteger suas próprias vizinhanças
(em Nova York, a Washington Square).
Mas, à medida que corriam os anos 60, a
nova mídia deu saltos espirituais, expandiu seus horizontes e ascendeu à condição de genuína educadora moral. Ela ensinava seus leitores e ouvintes a pensar
os negros, os pobres, os vietnamitas e as
vítimas em geral como parte de suas vizinhanças.
Onde é que nossa cultura encontrará
de novo recursos como esses? Talvez
não encontre, e os Bounderbies, Panglosses e megapiratas de toda sorte reinem para sempre. Ou talvez apenas o
violento colapso econômico sacuda os
americanos de sua narcolepsia. Isso poria a esquerda na horripilante posição
(em que já esteve antes) de ansiar pela
terrível catástrofe. Por outro lado, é bem
possível, como 40 anos atrás, que a própria prosperidade do país nos confira o
sossego para criar um espaço imaginativo em que as pessoas possam começar a
pensar sobre uma vida melhor do que
essa.
Que formas assumirá o pensamento
crítico? Algumas pessoas acham que não
sobraram idéias críticas. No meu modo
de ver, há uma superabundância de
idéias críticas no ar, basta saber aspirá-las. O pensamento de Marx e Freud são
tremendamente provocantes, capazes
de infinitas sínteses novas, subprodutos,
hibridizações. Ninguém tem autoridade
de dizer em definitivo o que tais idéias
significam. Nem mesmo aos fundadores
é lícito fechar comportas que eles abriram (tentaram, em vão). Talvez as encarnações de amanhã sejam aprofundadas pelo feminismo ou pelo ambientalismo ou pela biologia ou pela cibernética
ou pelas inúmeras coisas que os negros e
as outras "pessoas de cor" terão a dizer
-ou por outras formas de pensamento
das quais nada sei. Seja como for, devemos reconhecer que, com Marx e Freud,
todos vivemos no topo de minas de ouro
radicais.
Minha culpa
Confesso (e isso não é
difícil notar) que sou culpado de nostalgia pelos anos 60, dias de minha juventude. Muitos esquerdistas de minha geração desdenhavam a União Soviética, mas
ainda assim tinham profunda (e muitas
vezes desesperada) necessidade de se
identificar com algum Outro idealizado
como foco de seus anseios. Desde 1989, a
necessidade de um Outro diminuiu ou
pelo menos abrandou muito. É um grande avanço que hoje as pessoas consigam
criticar e denunciar a vida no Ocidente
sem ter de cair de joelhos diante de um
Oriente mítico.
Um grande embaraço para qualquer
cultura crítica do futuro é como serão
transmitidas e compartilhadas suas
idéias e preocupações. Não há meio de
atingir multidões de pessoas, exceto por
meio da comunicação de massa. Muita
gente pensa que nossa mídia de massas
distorce inevitavelmente qualquer idéia
em slogan banal. A meu ver, embora a
maioria dos conteúdos de nossa mídia
seja banal, o maior problema talvez seja
justamente o contrário: muitas idéias
afluindo de muitos canais.
A nova mídia cumpriu um papel crucial ao criar e desenvolver a cultura crítica dos anos 60. Nos anos 90, além dos livros, jornais, revistas, filmes, teatro, música e radiodifusão existem tantas "novas
mídias" -da TV a cabo, copidesque, vídeo, fanzines até o e-mail e a Internet-,
que está mais difícil do que nunca não
ser levado pela enxurrada. À medida que
as tecnologias de comunicação entram
em metástase, será mais difícil do que
nunca não ser levado pela enxurrada de
amanhã.
Algumas pessoas não se preocupam
com isso porque não acham que nossa
nova mídia tenha muito a dizer. Um epigrama da antiga cultura de computação
era "Entra lixo, sai lixo". Uma década
atrás, Bruce Springsteen tinha um sucesso, "57 Channels and Nothing On". Mas
qualquer um hoje que tente ouvir e olhar
à volta terá de admitir que há mais "on"
na cultura popular americana do que a
maioria de nós pensava. No verão, quando me acho mais livre para experimentar, minhas coleções incluíram: "Daria",
na TV a cabo, a animada vida de uma
adolescente intelectualizada e inconformista -a Franny de Salinger "geworfen" em "Orange County"; "Psychoanalysis (What Is It?)" e "Prince of Thieves"; álbuns do rapper e produtor Prince
Paul; o fanzine "Processed World", uma
encarnação ciberpunk da "Dissent". Todo esse material revela cérebros esplêndidos, além de sensibilidade e consciência crítica.
No cibermundo, idéias são canalizadas
para salas de bate-papo, uma infinidade
de espaços demograficamente pequenos, segmentados, focalizados em nichos de audiências restritos, mas intensos. A maioria dos bate-papos parece ser
bem chata; ainda assim, pode acontecer
de algumas pequenas salas nutrirem
idéias e perspectivas capazes de fazer
grande diferença. Se ao menos soubéssemos como franquear essas salas, poderíamos construir Greenwich Villages no
ciberespaço.
Nessas vizinhanças experimentais, a
cultura crítica de amanhã poderia vir à
luz. Ou talvez não. Talvez tudo ocorra no
papel, na "velha" mídia ou nas "velhas"
Greenwich Villages, em velhas ruas, cafés e parques, em antiquados encontros
cara a cara, entre pessoas que vivenciaram todas as novidades que os anos 80 e
90 ofereceram e que sentem necessidade
de mais: de um "insight" para além da
Web, da terra prometida para além da
Net, onde cantam os "blue jays".
Nota do tradutor:
"Jaywalk" é atravessar as ruas de maneira imprudente, descuidada, desobedecendo a sinais e normas de trânsito (fora da faixa de pedestres, sem
prestar atenção nos faróis, em diagonal, em ziguezague etc.). Mais adiante, o autor faz um jogo
de palavras com "jaywalk", "jaytalk" ("talk" = falar) e "blue jay", o gaio do Leste norte-americano.
Marshall Berman é professor de teoria política e
urbanismo na City University, de Nova York, autor
de "Tudo Que É Sólido Desmancha no Ar" (Companhia das Letras).
Tradução de José Marcos Macedo.
Texto Anterior: Rouanet fala na Folha Próximo Texto: + artes plásticas - David Lapoujade: Bispo ou o estandarte do mundo Índice
|