São Paulo, domingo, 02 de julho de 2000


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Em "Tarifa de Embarque", Waly Salomão se põe ao lado de poetas que buscaram fugir das identidades estabilizadoras
Magma indiferenciado do caos

Manuel da Costa Pinto
especial para a Folha

O caminho do segredo dança ao calor", escreveu René Char num aforismo de "Feuillets d'Hypnos" que evoca uma linhagem de poetas que procuraram restaurar uma relação primordial entre o homem e o mundo que nos libertasse dos determinismos da linguagem, da história e da metafísica. A idéia de um caos primitivo que pulsa sob cada palavra abalando o sentido asfixiante e pacificador de toda nomeação encontraria assim na linguagem poética a positividade ígnea, solar, de um enigma que recusa as cristalizações e que sobrevive por força de uma negação generalizada de tudo aquilo que escape ao segredo impronunciável da própria poesia. Como, porém, fazer com que essa negação preserve seu significado liberador? Como evitar que esse niilismo trágico degenere em niilismo dogmático? Essa pergunta pode parecer excêntrica num país em que a poesia tem uma densidade filosófica tão rala, em que o lirismo entranhado e a pesquisa formal alcançaram alturas tão elevadas que acabaram deixando pouca margem para uma reflexão que vá além do espaço literário. Felizmente, esse não é o caso de Waly Salomão: em "Tarifa de Embarque" o escritor baiano mistura uma oralidade demoníaca com doses incandescentes de iluminações oraculares, fazendo de suas reminiscências e de suas obsessões pessoais o suporte sensível de uma mirada do mundo dotada de um admirável poder de meditação filosófica. Infelizmente, quanto maior o vôo, maior é a queda: o turbilhão poético com que Waly Salomão procura erigir "uma fonte e origem e lugar ao sol/ na moldura acanhada do mundo" pode bem ser uma traição a esse projeto libertário de instaurar "um porto onde a gaia ciência jogue suas âncoras".

Barroco e dionisíaco
Seria cômodo fazer uma análise estritamente literária do livro de Waly Salomão, apontando o cruzamento da sensibilidade barroca desse "embaralhador de registros e vozes" com sua releitura dionisíaca do modernismo, que transformou obras como "Algaravias" (Editora 34) e "Lábia" (Rocco) na fina flor da poética tropicalista. Entretanto restringir "Tarifa de Embarque" ao registro estetizante em que patina boa parte da crítica literária brasileira significa perder aquilo que a poesia de Waly Salomão tem de mais singular para o bem e para o mal.
É o próprio Waly Salomão quem nos dá o mapa das trilhas que percorrem "Tarifa de Embarque". Por trás de um autor consciente de nossa tradição de rigor e anti-retórica ("cafungo minha dose diária de Murilo e Drummond") está um poeta de ritmo dissoluto: "Eu não nasci pra ser clássico de nascença:/ Assestar o olímpico olhar sobre o mundo nítido,/ Filtrar os miasmas externos e os espasmos do ego,/ Sob a impassibilidade dos céus tranquilos e claros.../ (...) Fiz tudo ao contrário... Sou todo ao convulsivo...", escreve ele em "Elipses Sertanejas".
Esse elogio do êxtase tem um sentido claro. Waly Salomão procura se colocar ao lado de poetas e pensadores que buscam fugir das identidades estáveis, normalizadoras, em benefício de um perpétuo devir. Ele nos diz isso explicitamente, ao evocar Goethe ("Meta desejável:/ alcançar o/ ponto de ebulição.// Morro e transformo-me.// Leitor, eu te reproponho/ a legenda de Goethe:/ Morre e devém"), ou de modo inexplícito, como no caso da sombra de Nietzsche que se projeta no título e nos versos do poema "Nomadismos" ("Capacidade de aderência absoluta ao instantâneo/ O gozo da fluidez do momento").
E o nomadismo de Waly Salomão reaparecerá mesmo naqueles poemas em que ele surge mais rente a sua geografia pessoal, transformando sua dupla herança de filho de pai sírio e de mãe sertaneja num desafio órfico à ordem do mundo, como no poema que dá título ao livro, transcrição de um fragmento do poeta grego Meleagro de Gádara: "Sou sírio. O que é que te assombra,/ estrangeiro, se o mundo é a pátria em/ que todos vivemos, paridos pelo caos?".
Essas "simbioses sonambúlicas com os cenários cambiantes", esses "cios com os caos e os cosmos invertidos" revelam, enfim, uma confiança ilimitada e utópica na capacidade de regeneração do mundo pela poesia, de desafio solar aos limites da sombria realidade objetiva. Ocorre, porém, que, ao lançar tudo -mundo e realidade objetiva- num mesmo magma indiferenciado de caos, Waly Salomão corre o risco de cair numa negação ressentida daqueles mesmos valores -poéticos e filosóficos- que ele pretendia consagrar.
Isso acontece de modo inequívoco no poema "Novelha Cozinha Poética" (leia na pág. ao lado), em que Waly Salomão faz uma sinistra zombaria do filósofo alemão Theodor W. Adorno, do poeta Paul Celan e de teóricos que vêm estudando o que se convencionou chamar de "literatura de testemunho". Adorno é o pensador judeu que afirmou que "escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro", denunciando assim a falácia da autonomia das esferas da cultura e da arte em relação à materialidade da história. Celan é o poeta, também judeu, cujos versos espasmódicos, e muitas vezes herméticos, representam as descontinuidades de uma voz interior que tenta em vão reatar os fios de uma memória pessoal dilacerada. E a "literatura de testemunho" é o gênero ou subgênero composto por relatos dos sobreviventes dos campos de concentração nazista, cuja importância está em explicitar a precariedade da linguagem diante da irrepresentabilidade do horror e não apenas do horror vivido pelas vítimas do Holocausto, mas de todos aqueles que viveram uma experiência traumática.

Que sentido há em insinuar que esses teóricos apenas capitalizam um modismo acadêmico, que eles requentam um prato ("fatia de Theodor Adorno", "posta de Paul Celan") pretensamente tornado insípido pelo tempo? Deixando de lado o desrespeito de Waly Salomão pela memória de quem viveu o que ele não viveu, deixando de lado o mau gosto e a irresponsabilidade ética e histórica de um verso como "limpe antes os laivos de forno crematório", deixando de lado tudo isso, é preciso dizer que viceja nesse poema um indesculpável antiintelectualismo que, como se sabe, é o fruto perverso da filosofia vitalista e irracionalista que os nazistas extraíram de Nietzsche, numa leitura equivocada que Waly Salomão deveria saber neutralizar.

Efeito de choque
Disperso em meio aos outros poemas de "Tarifa de Embarque" (muitos deles magníficos, como "Cântico dos Cânticos de Salomão" e "Estética da Recepção"), "Novelha Cozinha Poética" perde seu efeito de choque. Mas, quando ele foi publicado pela primeira vez, no Mais! de 26/3, com uma ilustração de Fernando Zarif que reforçava as ironias cruéis do poema (arcadas dentárias em radiografias que parodiavam os rostos cadavéricos dos judeus dos campos de concentração), a indignidade desse poema tornou-se mais eloquente, por força da visibilidade proporcionada pela página do jornal (que, ao encomendar um poema ao escritor e uma ilustração ao artista plástico, por certo não sabia o que viria pela frente...).
Entretanto não houve reação pública à publicação de "Novelha Cozinha Poética" -o que apenas confirma o veredicto de Adorno de que a alienação imposta pela indústria cultural nos faz perder a noção da totalidade de um fenômeno, transformando-o em objeto de consumo, em objeto estético, estetizando (e despolitizando) nossa relação com o mundo.
Que fique claro: ninguém em sã consciência poderia atribuir a Waly Salomão intenções anti-semitas ou negacionistas. Por ironia do destino, são os instrumentos conceituais da teoria literária que, apesar dos sarcasmos de Waly Salomão, nos permitem distinguir lucidamente a intenção do autor e os efeitos de sua obra. O fato, porém, é que esse poeta libertário acabou inaugurando, com seu poema infeliz, um gênero inédito: o "revisionismo tropicalista".



Tarifa de Embarque
72 págs., R$ 18,00 de Waly Salomão. Ed. Rocco (r. Rodrigo Silva, 26, 5º andar, CEP 20011-040, RJ, tel. 0/xx/21/507-2000).



Manuel da Costa Pinto é jornalista, editor da revista "Cult", doutorando em teoria literária na USP e autor de "Albert Camus - Um Elogio do Ensaio" (Ateliê Editorial).


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