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Em "Tarifa de Embarque", Waly Salomão se põe ao lado de poetas que buscaram fugir das identidades estabilizadoras
Magma indiferenciado do caos
Manuel da Costa Pinto
especial para a Folha
O caminho do segredo dança ao calor", escreveu René Char num aforismo de "Feuillets d'Hypnos" que evoca
uma linhagem de poetas que procuraram restaurar uma relação primordial
entre o homem e o mundo que nos libertasse dos determinismos da linguagem,
da história e da metafísica. A idéia de um
caos primitivo que pulsa sob cada palavra abalando o sentido asfixiante e pacificador de toda nomeação encontraria
assim na linguagem poética a positividade ígnea, solar, de um enigma que recusa
as cristalizações e que sobrevive por força de uma negação generalizada de tudo
aquilo que escape ao segredo impronunciável da própria poesia. Como, porém,
fazer com que essa negação preserve seu
significado liberador? Como evitar que
esse niilismo trágico degenere em niilismo dogmático?
Essa pergunta pode parecer excêntrica
num país em que a poesia tem uma densidade filosófica tão rala, em que o lirismo entranhado e a pesquisa formal alcançaram alturas tão elevadas que acabaram deixando pouca margem para
uma reflexão que vá além do espaço literário. Felizmente, esse não é o caso de
Waly Salomão: em "Tarifa de Embarque" o escritor baiano mistura uma oralidade demoníaca com doses incandescentes de iluminações oraculares, fazendo de suas reminiscências e de suas obsessões pessoais o suporte sensível de
uma mirada do mundo dotada de um
admirável poder de meditação filosófica.
Infelizmente, quanto maior o vôo, maior
é a queda: o turbilhão poético com que
Waly Salomão procura erigir "uma fonte
e origem e lugar ao sol/ na moldura acanhada do mundo" pode bem ser uma
traição a esse projeto libertário de instaurar "um porto onde a gaia ciência jogue
suas âncoras".
Barroco e dionisíaco
Seria cômodo
fazer uma análise estritamente literária
do livro de Waly Salomão, apontando o
cruzamento da sensibilidade barroca
desse "embaralhador de registros e vozes" com sua releitura dionisíaca do modernismo, que transformou obras como
"Algaravias" (Editora 34) e "Lábia"
(Rocco) na fina flor da poética tropicalista. Entretanto restringir "Tarifa de Embarque" ao registro estetizante em que
patina boa parte da crítica literária brasileira significa perder aquilo que a poesia
de Waly Salomão tem de mais singular
para o bem e para o mal.
É o próprio Waly Salomão quem nos
dá o mapa das trilhas que percorrem
"Tarifa de Embarque". Por trás de um
autor consciente de nossa tradição de rigor e anti-retórica ("cafungo minha dose
diária de Murilo e Drummond") está um
poeta de ritmo dissoluto: "Eu não nasci
pra ser clássico de nascença:/ Assestar o
olímpico olhar sobre o mundo nítido,/
Filtrar os miasmas externos e os espasmos do ego,/ Sob a impassibilidade dos
céus tranquilos e claros.../ (...) Fiz tudo ao
contrário... Sou todo ao convulsivo...",
escreve ele em "Elipses Sertanejas".
Esse elogio do êxtase tem um sentido
claro. Waly Salomão procura se colocar
ao lado de poetas e pensadores que buscam fugir das identidades estáveis, normalizadoras, em benefício de um perpétuo devir. Ele nos diz isso explicitamente,
ao evocar Goethe ("Meta desejável:/ alcançar o/ ponto de ebulição.// Morro e
transformo-me.// Leitor, eu te reproponho/ a legenda de Goethe:/ Morre e devém"), ou de modo inexplícito, como no
caso da sombra de Nietzsche que se projeta no título e nos versos do poema "Nomadismos" ("Capacidade de aderência
absoluta ao instantâneo/ O gozo da fluidez do momento").
E o nomadismo de Waly Salomão reaparecerá mesmo naqueles poemas em
que ele surge mais rente a sua geografia
pessoal, transformando sua dupla herança de filho de pai sírio e de mãe sertaneja num desafio órfico à ordem do
mundo, como no poema que dá título ao
livro, transcrição de um fragmento do
poeta grego Meleagro de Gádara: "Sou
sírio. O que é que te assombra,/ estrangeiro, se o mundo é a pátria em/ que todos vivemos, paridos pelo caos?".
Essas "simbioses sonambúlicas com os
cenários cambiantes", esses "cios com os
caos e os cosmos invertidos" revelam,
enfim, uma confiança ilimitada e utópica
na capacidade de regeneração do mundo
pela poesia, de desafio solar aos limites
da sombria realidade objetiva. Ocorre,
porém, que, ao lançar tudo -mundo e
realidade objetiva- num mesmo magma indiferenciado de caos, Waly Salomão corre o risco de cair numa negação
ressentida daqueles mesmos valores
-poéticos e filosóficos- que ele pretendia consagrar.
Isso acontece de modo inequívoco no
poema "Novelha Cozinha Poética" (leia
na pág. ao lado), em que Waly Salomão
faz uma sinistra zombaria do filósofo
alemão Theodor W. Adorno, do poeta
Paul Celan e de teóricos que vêm estudando o que se convencionou chamar de "literatura de testemunho".
Adorno é o pensador judeu que afirmou que "escrever um poema após
Auschwitz é um ato bárbaro", denunciando assim a falácia da autonomia das esferas da cultura e da arte em
relação à materialidade da história. Celan é o poeta, também judeu, cujos versos espasmódicos, e muitas vezes herméticos, representam as descontinuidades
de uma voz interior que tenta em vão
reatar os fios de uma memória pessoal
dilacerada. E a "literatura de testemunho" é o gênero ou subgênero composto
por relatos dos sobreviventes dos campos de concentração nazista, cuja importância está em explicitar a
precariedade da linguagem diante da irrepresentabilidade do horror e não
apenas do horror vivido
pelas vítimas do Holocausto, mas de todos
aqueles que viveram uma
experiência traumática.
Que sentido há em insinuar que esses
teóricos apenas capitalizam um modismo acadêmico, que eles requentam um
prato ("fatia de Theodor Adorno",
"posta de Paul Celan") pretensamente
tornado insípido pelo tempo? Deixando de lado o desrespeito de Waly Salomão pela memória de quem viveu o
que ele não viveu, deixando de lado o
mau gosto e a irresponsabilidade ética e
histórica de um verso como "limpe antes os laivos de forno crematório", deixando de lado tudo isso, é preciso dizer
que viceja nesse poema um indesculpável antiintelectualismo que, como se sabe, é o fruto perverso da filosofia vitalista e irracionalista que os nazistas extraíram de Nietzsche, numa leitura equivocada que Waly Salomão deveria saber
neutralizar.
Efeito de choque
Disperso em
meio aos outros poemas de "Tarifa de
Embarque" (muitos deles magníficos,
como "Cântico dos Cânticos de Salomão" e "Estética da Recepção"), "Novelha Cozinha Poética" perde seu efeito
de choque. Mas, quando ele foi publicado pela primeira vez, no Mais! de 26/3,
com uma ilustração de Fernando Zarif
que reforçava as ironias cruéis do poema (arcadas dentárias em radiografias
que parodiavam os rostos cadavéricos
dos judeus dos campos de concentração), a indignidade desse poema tornou-se mais eloquente, por força da visibilidade proporcionada pela página
do jornal (que, ao encomendar um
poema ao escritor e uma ilustração ao
artista plástico, por certo não sabia o
que viria pela frente...).
Entretanto não houve reação pública
à publicação de "Novelha Cozinha Poética" -o que apenas confirma o veredicto de Adorno de que a alienação imposta pela indústria cultural nos faz
perder a noção da totalidade de um fenômeno, transformando-o em objeto
de consumo, em objeto estético, estetizando (e despolitizando) nossa relação
com o mundo.
Que fique claro: ninguém em sã consciência poderia atribuir a Waly Salomão intenções anti-semitas ou negacionistas. Por ironia do destino, são os
instrumentos conceituais da teoria literária que, apesar dos sarcasmos de
Waly Salomão, nos permitem distinguir lucidamente a intenção do autor e
os efeitos de sua obra. O fato, porém, é
que esse poeta libertário acabou inaugurando, com seu poema infeliz, um
gênero inédito: o "revisionismo tropicalista".
Tarifa de Embarque
72 págs., R$ 18,00
de Waly Salomão. Ed. Rocco (r.
Rodrigo Silva, 26, 5º andar, CEP
20011-040, RJ, tel. 0/xx/21/507-2000).
Manuel da Costa Pinto é jornalista, editor da
revista "Cult", doutorando em teoria literária na
USP e autor de "Albert Camus - Um Elogio do Ensaio" (Ateliê Editorial).
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