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Ponto de fuga
Fluidez e opacidade
Jorge Coli
especial para a Folha
Mesmo hoje em dia, é possível imaginar uma mulher resistindo ao amor
violento que sente por outro homem. É
ainda admissível que, por honestidade,
essa mesma mulher confesse ao marido o amor interdito. Em seu filme "A
Carta", Manoel de Oliveira transpôs "A
Princesa de Clèves", história escrita por
Madame de La Fayette, dama da corte
de Luís 14. Poderia ter escolhido a reconstituição de época. Preferiu, porém,
trazê-la para os nossos dias.
O amado é um roqueiro de sapatos
extravagantes, a televisão representa
um certo papel e há um acidente de
trânsito. Mas o tempo de Manoel de
Oliveira, o decano de todos os cineastas, não é tão simples. Seu tempo está
além do tempo. Os diálogos emanam
de Madame de La Fayette, de sua escrita aristocrática, contida, fora de época,
fora da nossa época. Pelas palavras, a
narração flui e leva o espectador. Pelas
imagens, elas o aprisionam numa
transparência falsa e embaçada.
O anacronismo de Manoel de Oliveira é outro e mais profundo. Entre o rigor do comportamento e a tirania das
paixões, permanece a recusa da explicação, da "psicologia". Madame de La
Fayette toma o amor como "monstro
da natureza, peste do gênero humano,
perturbador da tranquilidade pública".
Seu instrumento analítico descreve
mecanismos, nunca razões ou causas,
sempre misteriosos. Manoel de Oliveira vai ainda além. No romance, a ética
individual vê-se confrontada às tentações de uma corte frívola. O filme faz-se
austero para centrá-la somente no descompasso entre escolha e afeto.
Forças - Há uma fatalidade humana,
em "A Carta", como já existia na "Princesse de Clèves", o primeiro dos romances modernos. Atualizada, ela assinala, pelo avesso, as pretensões ocas
das ilusórias ciências humanas, inventadas em clima de confiança positivista.
O português Manoel de Oliveira, que
atravessou o século, confere à sua arte a
missão de ir fundo, ali onde nada pode
ser nomeado. Seus atores -e sobretudo a incomparável Chiara Mastroianni- encontraram um tom "natural"
sem que a bela declamação se perca.
Clima - Por volta de 1970, na França,
enquanto a "Cooperative des Mal-Assis" (Cooperativa dos Mal-Sentados), a
"Figuration Narrative" e os "Nouveaux
Realistes" voltavam-se para imagens e
formas significantes, o grupo Support-Surfaces buscava uma relação entre
abstração e operações muito concretas,
manuais. Depunham em textos "teóricos" longos e obscuros, hoje mortos e
enterrados. As obras, porém, fizeram
mais do que resistir aos anos. Hoje, elas
podem ser vistas numa permanência
que escapa aos debates circunstanciais.
A atual retrospectiva, apresentada no
Museu de Arte Moderna (MAM-SP),
permite um balanço. Ocultada na abstração geométrica, no "hard edge" ou
no minimalismo americano, a matéria
de que as coisas são feitas é aqui recuperada. As práticas -deixar marcas de
dobras num encerado, jogar com texturas, com repetições nunca idênticas a
si mesmas, empregar madeiras não
desbastadas, tratar a tela como pano
solto- inserem-se na obediência a
princípios reguladores, muitas vezes
equilibrados pela geometria. Suspensa
entre a forma e o corpóreo, entre um
artesanato elementar e a concepção
mental, a mostra revela um classicismo
rarefeito, um sentido da harmonia entre contrários, entre o prazer do gesto
que engendra e a idéia que conduz.
Cordas - O quarteto Aureus gravou,
para o selo Paulus, os três quartetos de
Alberto Nepomuceno. O de número
dois aparece pela primeira vez em disco. São obras de juventude, compostas
na Europa, mas vão além do exercício
escolar. Possuem essa fluência tão característica de Nepomuceno, que, embora respeitando as estruturas, parece
fazer os sons correrem como água de
fonte. O compositor nunca decai: suas
obras trazem sempre uma respiração
elevada e ampla, às vezes nervosa, às
vezes merencória.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail:coli20@hotmail.com
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