São Paulo, domingo, 02 de julho de 2000


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Ponto de fuga

Fluidez e opacidade

Jorge Coli
especial para a Folha

Mesmo hoje em dia, é possível imaginar uma mulher resistindo ao amor violento que sente por outro homem. É ainda admissível que, por honestidade, essa mesma mulher confesse ao marido o amor interdito. Em seu filme "A Carta", Manoel de Oliveira transpôs "A Princesa de Clèves", história escrita por Madame de La Fayette, dama da corte de Luís 14. Poderia ter escolhido a reconstituição de época. Preferiu, porém, trazê-la para os nossos dias.
O amado é um roqueiro de sapatos extravagantes, a televisão representa um certo papel e há um acidente de trânsito. Mas o tempo de Manoel de Oliveira, o decano de todos os cineastas, não é tão simples. Seu tempo está além do tempo. Os diálogos emanam de Madame de La Fayette, de sua escrita aristocrática, contida, fora de época, fora da nossa época. Pelas palavras, a narração flui e leva o espectador. Pelas imagens, elas o aprisionam numa transparência falsa e embaçada.
O anacronismo de Manoel de Oliveira é outro e mais profundo. Entre o rigor do comportamento e a tirania das paixões, permanece a recusa da explicação, da "psicologia". Madame de La Fayette toma o amor como "monstro da natureza, peste do gênero humano, perturbador da tranquilidade pública". Seu instrumento analítico descreve mecanismos, nunca razões ou causas, sempre misteriosos. Manoel de Oliveira vai ainda além. No romance, a ética individual vê-se confrontada às tentações de uma corte frívola. O filme faz-se austero para centrá-la somente no descompasso entre escolha e afeto.

Forças - Há uma fatalidade humana, em "A Carta", como já existia na "Princesse de Clèves", o primeiro dos romances modernos. Atualizada, ela assinala, pelo avesso, as pretensões ocas das ilusórias ciências humanas, inventadas em clima de confiança positivista. O português Manoel de Oliveira, que atravessou o século, confere à sua arte a missão de ir fundo, ali onde nada pode ser nomeado. Seus atores -e sobretudo a incomparável Chiara Mastroianni- encontraram um tom "natural" sem que a bela declamação se perca.

Clima - Por volta de 1970, na França, enquanto a "Cooperative des Mal-Assis" (Cooperativa dos Mal-Sentados), a "Figuration Narrative" e os "Nouveaux Realistes" voltavam-se para imagens e formas significantes, o grupo Support-Surfaces buscava uma relação entre abstração e operações muito concretas, manuais. Depunham em textos "teóricos" longos e obscuros, hoje mortos e enterrados. As obras, porém, fizeram mais do que resistir aos anos. Hoje, elas podem ser vistas numa permanência que escapa aos debates circunstanciais.
A atual retrospectiva, apresentada no Museu de Arte Moderna (MAM-SP), permite um balanço. Ocultada na abstração geométrica, no "hard edge" ou no minimalismo americano, a matéria de que as coisas são feitas é aqui recuperada. As práticas -deixar marcas de dobras num encerado, jogar com texturas, com repetições nunca idênticas a si mesmas, empregar madeiras não desbastadas, tratar a tela como pano solto- inserem-se na obediência a princípios reguladores, muitas vezes equilibrados pela geometria. Suspensa entre a forma e o corpóreo, entre um artesanato elementar e a concepção mental, a mostra revela um classicismo rarefeito, um sentido da harmonia entre contrários, entre o prazer do gesto que engendra e a idéia que conduz.

Cordas - O quarteto Aureus gravou, para o selo Paulus, os três quartetos de Alberto Nepomuceno. O de número dois aparece pela primeira vez em disco. São obras de juventude, compostas na Europa, mas vão além do exercício escolar. Possuem essa fluência tão característica de Nepomuceno, que, embora respeitando as estruturas, parece fazer os sons correrem como água de fonte. O compositor nunca decai: suas obras trazem sempre uma respiração elevada e ampla, às vezes nervosa, às vezes merencória.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail:coli20@hotmail.com


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