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+ arte
O grau zero das culturas
Criado para retratar
as civilizações não-européias, novo museu
de Paris
faz elogio
do pensamento único
HENRI-PIERRE JEUDY
Uma estátua da ilha
de Páscoa na praça
da Concorde, uma
luva da cultura chinu na praça Vendôme [ambas em Paris]: são esses os outdoors que apresentam a missão da qual foi encarregado o museu do Quai
Branly: as culturas são feitas
para dialogar. De hoje em diante, vivemos sob o reinado da
virgindade de uma estética universal. Todos os objetos das civilizações passam a ser assimilados a obras de arte. É a melhor maneira de conservar sua
aura para o presente e o futuro.
Desde a idealização desse
museu, surgiu um conflito entre uma concepção etnográfica
do objeto e o poder abusivo
atribuído a seu aspecto estético. Por meio do reconhecimento de sua singularidade artística, o objeto seria destinado a
transcender sua origem cultural. Sua dimensão sagrada deixaria de vir de sua função religiosa -ela não seria negada,
mas seria incluída no poder, tido como sobrenatural, da própria cultura. Assim, a estética
passa a ser a origem e a finalidade de toda cultura.
Essa evocação da pureza cultural possui uma vantagem
inegável: a resolução de toda e
qualquer denotação colonial.
Os objetos são lavados dessa
impureza que por tanto tempo
marcou as próprias características de sua aquisição.
O museu das artes primeiras
seria o lugar sagrado das emoções primeiras. Para oferecer
esse contato com a origem das
origens, o museu do Quai
Branly deve ser descoberto pelo visitante após a travessia de
um universo vegetal, quase escondido, como uma caverna. O
simbolismo da vida selvagem é
revisitado, por assim dizer
-ele é servido ao nosso olhar
como a quintessência da origem das culturas.
Mística da exploração
Explorar os tempos primordiais da natureza seria a finalidade implícita de um espaço
que quer ser, em primeiro lugar, o território de uma aventura do homem e da natureza.
Essa mística da exploração
deveria mostrar que o templo
da etnologia é consagrado também à evolução dos ecossistemas. A etnologia contemporânea encontra seu destino, então, numa ecologia liberta das
pressões ideológicas. Uma ecologia que redescobre a natureza
primitiva.
É a primeira vez na história
das ciências em que é erigido
um templo suntuoso à memória viva de uma grande aventura do conhecimento humano.
Ao propor-se a conjugar a apresentação simbólica da origem
das civilizações com o retrospecto das iniciativas conceituais da etnologia, o museu
quer propor as condições ideais
para uma abordagem histórica
e etnográfica das sociedades.
Um lugar onde a comunhão
entre as culturas finalmente se
mostra possível, o museu assim
concebido é um posicionamento espelhado de todas as culturas (exceto as da Europa, que
não estarão presentes), das
quais a pureza dos reflexos faria da própria complexidade
uma ecologia do espírito.
A pacificação que ele representa desarma as paixões políticas, fazendo da própria diversidade cultural o puro produto
de uma inteligibilidade universal e atemporal. É exatamente
no momento em que a morte
das culturas se vê transcendida
pela soberania da forma arquitetônica contemporânea que se
torna possível evocar a pureza
das origens.
Novo moralismo
Não se trata mais da questão
superada de uma autenticidade
original, que tanto agitou o espírito dos conservadores, mas
de um retorno definitivo à consagração da origem por ela
mesma, em seu absoluto, como
símbolo último de uma transcendência da morte.
Esse santuário do grau zero
das culturas se torna a garantia
futura de um novo moralismo
estético para aquilo a que se dá
o nome de multiculturalismo.
Todas as culturas podem se remeter ao espelho delas próprias, dentro da constelação in
vitro de suas singularidades.
Não seria esse o modelo do
pensamento único?
HENRI-PIERRE JEUDY é sociólogo francês, autor de "O Corpo como Objeto de Arte" (Est. Liberdade). Este texto saiu no "Libération".
Tradução de Clara Allain.
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