São Paulo, domingo, 02 de julho de 2006

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+ arte

O grau zero das culturas

Criado para retratar as civilizações não-européias, novo museu de Paris faz elogio do pensamento único

HENRI-PIERRE JEUDY
Uma estátua da ilha de Páscoa na praça da Concorde, uma luva da cultura chinu na praça Vendôme [ambas em Paris]: são esses os outdoors que apresentam a missão da qual foi encarregado o museu do Quai Branly: as culturas são feitas para dialogar. De hoje em diante, vivemos sob o reinado da virgindade de uma estética universal. Todos os objetos das civilizações passam a ser assimilados a obras de arte. É a melhor maneira de conservar sua aura para o presente e o futuro. Desde a idealização desse museu, surgiu um conflito entre uma concepção etnográfica do objeto e o poder abusivo atribuído a seu aspecto estético. Por meio do reconhecimento de sua singularidade artística, o objeto seria destinado a transcender sua origem cultural. Sua dimensão sagrada deixaria de vir de sua função religiosa -ela não seria negada, mas seria incluída no poder, tido como sobrenatural, da própria cultura. Assim, a estética passa a ser a origem e a finalidade de toda cultura. Essa evocação da pureza cultural possui uma vantagem inegável: a resolução de toda e qualquer denotação colonial. Os objetos são lavados dessa impureza que por tanto tempo marcou as próprias características de sua aquisição. O museu das artes primeiras seria o lugar sagrado das emoções primeiras. Para oferecer esse contato com a origem das origens, o museu do Quai Branly deve ser descoberto pelo visitante após a travessia de um universo vegetal, quase escondido, como uma caverna. O simbolismo da vida selvagem é revisitado, por assim dizer -ele é servido ao nosso olhar como a quintessência da origem das culturas.
Mística da exploração
Explorar os tempos primordiais da natureza seria a finalidade implícita de um espaço que quer ser, em primeiro lugar, o território de uma aventura do homem e da natureza. Essa mística da exploração deveria mostrar que o templo da etnologia é consagrado também à evolução dos ecossistemas. A etnologia contemporânea encontra seu destino, então, numa ecologia liberta das pressões ideológicas. Uma ecologia que redescobre a natureza primitiva. É a primeira vez na história das ciências em que é erigido um templo suntuoso à memória viva de uma grande aventura do conhecimento humano. Ao propor-se a conjugar a apresentação simbólica da origem das civilizações com o retrospecto das iniciativas conceituais da etnologia, o museu quer propor as condições ideais para uma abordagem histórica e etnográfica das sociedades. Um lugar onde a comunhão entre as culturas finalmente se mostra possível, o museu assim concebido é um posicionamento espelhado de todas as culturas (exceto as da Europa, que não estarão presentes), das quais a pureza dos reflexos faria da própria complexidade uma ecologia do espírito. A pacificação que ele representa desarma as paixões políticas, fazendo da própria diversidade cultural o puro produto de uma inteligibilidade universal e atemporal. É exatamente no momento em que a morte das culturas se vê transcendida pela soberania da forma arquitetônica contemporânea que se torna possível evocar a pureza das origens.
Novo moralismo
Não se trata mais da questão superada de uma autenticidade original, que tanto agitou o espírito dos conservadores, mas de um retorno definitivo à consagração da origem por ela mesma, em seu absoluto, como símbolo último de uma transcendência da morte. Esse santuário do grau zero das culturas se torna a garantia futura de um novo moralismo estético para aquilo a que se dá o nome de multiculturalismo. Todas as culturas podem se remeter ao espelho delas próprias, dentro da constelação in vitro de suas singularidades. Não seria esse o modelo do pensamento único?


HENRI-PIERRE JEUDY é sociólogo francês, autor de "O Corpo como Objeto de Arte" (Est. Liberdade). Este texto saiu no "Libération".
Tradução de Clara Allain.


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