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Um dos principais filósofos da atualidade,
o italiano
Gianni Vattimo
diz que as críticas do papa ao homossexualismo caem na simplificação filosófica
de quem se sente ameaçado
em sua base teórica
O amor fraco
GIANNI VATTIMO
Quando parecia que
o papa havia se
cansado de brandir suas armas
contra os "relativistas", eis que começa a campanha contra o amor "fraco".
Ao que parece, o amor não-reprodutivo é fraco porque não
frutifica em termos de novas
vidas trazidas ao mundo. Portanto é um amor "inútil".
Padres, freiras, religiosos que
fizeram voto de castidade estão
obviamente isentos dessa obrigação de ajudar a vida a prosseguir. Para não falar do próprio
Jesus, que não só nasceu de
uma virgem (aqui está o máximo de "força": reprodução sem
amor, nem sequer o amor forte
que o papa privilegia), mas
tampouco foi tocado pela idéia
de deixar uma descendência
(vade retro Dan Brown e "O
Código Da Vinci").
Sendo assim, de que páginas
das Escrituras, de onde advém
essa frenética vontade de superpovoar a pobre Terra, que
está em processo de exaustão
desde que não sejam encontradas novas fontes de energia e
novos "espaços vitais"?
Se há um sinal de decadência
na Igreja Católica, ele está nesta pregação repetitiva do valor
da vida, qualquer que ela seja,
contanto que possa vegetar e
dar continuidade à reprodução.
Como se a criação divina do
homem e da mulher fosse principalmente um modo de não
deixar inabitada esta parte do
universo, uma questão utilitarista. Impossível não pensar
em Cesare Pavese [1908-50] e
numa página do seu diário:
"Encontrou um propósito ideal
em seus filhos. E estes? Em
seus próprios filhos... Mas de
que serve essa trepação geral?".
Salvaremos a civilização cristã assegurando-nos a superioridade numérica sobre os pérfidos muçulmanos e os abomináveis ateus? Quer dizer que
também para a igreja o número
é potência?
Imagem obsessiva
Por que então não deveríamos "fortificar" nossos amores
com o auxílio das máquinas,
com a clonagem, quem sabe supervisionada por comissões de
clérigos a fim de garantir a qualidade do (re)produto? O amor
dos papas (e dos ditadores) pelas crianças e o mito da família
numerosa não seriam o sinal de
uma senilidade que, tendo-se
privado das alegrias do sexo e
da família, fizeram delas uma
espécie de imagem obsessiva?
Quando o papa condena o
amor fraco e recomenda o forte
e "fecundo", não estará fazendo
algo semelhante ao Gustav von
Aschenbach, que (na novela
"Morte em Veneza", de Thomas Mann), moribundo, se maquia para assemelhar-se ao seu
Tadzio?
É freqüente o comentário de
que, após o pedido de perdão a
hereges, cismáticos, cientistas
outrora perseguidos e excomungados, a Igreja Católica
não tem mais inimigos senão os
homossexuais. O que certamente se explica pela necessidade de combater um vício (para eles) "interno" a seminários,
conventos, paróquias.
Mas tal explicação seria redutora e, portanto, insuficiente. Parece muito mais provável
que o culto da reprodução tenha um fundamento filosófico
e seja um sinal de envelhecimento, como um retirar-se naquilo que parece mais natural
quando já se perdeu toda a esperança na capacidade de sobreviver em nome de valores,
de um projeto de vida capaz de
fascinar e de suscitar adesão.
Biologismo naturalista
Aristóteles pensava que a reprodução era o modo pelo qual
a humanidade podia imitar a
eternidade dos céus. Como um
bom pagão, é claro. Mas o que o
Deus da Bíblia, sobretudo o do
Novo Testamento, tem a ver
com esse biologismo naturalista? Aqui não se trata
nem mesmo de defender a "natureza" das ameaças de destruição que a ciência e a técnica
modernas, como seu espírito
fáustico, representam para ela.
Querer salvar e preservar o
ambiente para que ele possa
continuar assegurando a vida
implica ainda, necessariamente, um projeto. No entanto,
quando justamente a reprodução humana, abençoada pelo
"pensamento forte", se transforma na maior ameaça ao ambiente planetário, a contradição se torna demasiado evidente para que possa passar despercebida.
Além disso, a oposição entre
"forte" e "fraco", com a preferência pelo primeiro termo,
não seria um indício (que o papa repense em Nietzsche) de
que se está abraçando um conjunto de valores "humanos, demasiado humanos"? Em que
consiste a novidade do cristianismo senão na subversão dessas hierarquias? O rosto de Jesus martirizado serve apenas
para as procissões da Sexta-Feira Santa? O Lutero que vai a
Roma e volta de lá escandalizado com o luxo e a luxúria reinantes no centro da cristandade já não faria história.
Foi apenas um homem de
pouca fé, que não resistiu ao escândalo, ao passo que essa é
precisamente a prova que um
bom fiel deve saber superar.
E mais: pode até ser verdade
que os gays que se sentem maltratados pela oposição da igreja
sejam quatro gatos pingados,
que mais cedo ou mais tarde serão apaziguados. Mas a questão
homossexual, que o próprio papa insiste em recolocar no centro de sua pregação, tem um
sentido bem mais essencial.
Não por acaso, ela implica a discussão de toda a política machista e sexofóbica que dominou a Igreja Católica, especialmente na modernidade.
Originariamente, machismo
e sexofobia não são traços cristãos; mas eles se incrustaram
em seu corpo como a doação de
Constantino. O escândalo, inclusive aquele que despertou
Lutero, é a autêntica "secularização" do Evangelho: a assimilação e a consagração de um
mundo que Cristo viera transformar.
O mundo "em ordem"
A questão homossexual, pois,
é tão dramática para a igreja
porque -e nisso os papas e bispos têm razão- ameaça as próprias bases do ensinamento católico, de sua metafísica inerente, que ele não quer pôr em
discussão. Porém cada vez mais
essa metafísica (Deus cria o
mundo assegurando a cada coisa uma essência que deve ser
reconhecida teoricamente e
"observada" na prática: a teoria
aristotélica dos "lugares naturais") se apresenta como uma
manifesta duplicação ideológica das coisas "como elas são"
(ou se acredita ou se quer que
sejam).
Há uma guerra? É preciso
engajar-se, seja homem, seja
um bom italiano. Mas por que
devo ser tudo isso? Porque sim.
E, na base de tudo isso, está a
idéia (típica de quem comanda,
dos vencedores: recorde-se
Walter Benjamin) de que o
mundo como é está "em ordem" (Deus observa a sua criação e vê que as coisas são "valde
bona") e deve ser respeitado e
conservado assim como é.
Daí a desenvoltura hermenêutica que o papa aplica à história da criação do homem e da
mulher. Foram feitos para ser
uma só carne (mas por que o
amor homossexual não "prevê"
também isso? Platão já o sabia...), e, assim sendo, só o seu
amor é legítimo. Como demonstra o fato de que dá origem a uma nova vida; e, é o caso
de acrescentar, como tantas
formas de putrefação de que
nascem aqueles vermes, que,
desenvolvendo-se, povoarão a
Terra após o desastre atômico.
Mas não continuemos nessa
linha, que considero "pseudobiológica". A outra, a explicitada nas prédicas papais, desenvolve-se assim: o amor forte do
matrimônio é também o que
garante aos filhos a possibilidade de crescer numa família, onde não pode faltar um pai porque é ele quem assegura a educação à autoridade e perpetua o
mecanismo edípico (lembram-se da "fábrica da loucura", nos
escritos de Foucault e Deleuze?
Não será a hora de relê-los?).
Para exercer o seu papel, a família precisa ser indissolúvel,
ainda que pouco a pouco a própria igreja tenha se habituado
ao divórcio, contanto que os
dois que se separam sejam rigorosamente macho e fêmea e casados na paróquia.
E o pobre Platão, que imaginara que os filhos pudessem
crescer confiados à comunidade, desenvolvendo, quem sabe,
outras neuroses, mas não as do
"sujo e pequeno segredo" de
que falava Deleuze?
"Natural" repugnância
É verdade que os cristãos primitivos tinham tudo em comum e, naquele âmbito, podiam até imaginar famílias menos fechadas e "proprietárias".
Mas, "como é natural" (é mais
ou menos assim que o vê a encíclica "Deus Caritas Est" [Deus
É Amor]), as formas do comunismo primitivo desapareceram rapidamente.
Natural? Sim, como tudo o
que a igreja encontrou e encontra na ordem terrena e que consagra e abençoa sem pestanejar
(das guerras justas à pena de
morte às ditaduras...), contanto
que estejam assegurados "os
meios para a sua missão".
Parece um quadro bastante
complicado para explicar a "natural" repugnância das hierarquias eclesiásticas em relação à
(aceitação teórica da) homossexualidade. Os gays talvez tenham exagerado ao considerar
a própria condição como uma
vocação profética, sentindo-se
uma minoria capaz de suscitar
(com tantos outros excluídos e
excluídas) uma transformação.
Mas, com a ajuda providencial dessas hierarquias, não se
pode esperar que se repita, de
modo invertido, o milagre de
Sodoma, isto é: que a pedrinha
da ignóbil minoria gay se torne
uma avalanche capaz de arrastar, ao menos em grande parte,
a "sacrílega instituição"?
A íntegra deste texto saiu no "L"Espresso".
Tradução de Maurício Santana Dias .
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