|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O DNA do terror
Acusado de associar a guerra santa a uma característica muçulmana em seu novo romance, o americano
John Updike
rebate dizendo que não quis desumanizar o islã
MEHAMMED MACK
Em "Terrorist" [Terrorista], romance cujo
título pode causar irritação ou enfado a alguns leitores, John
Updike tenta resolver um dos
mais difíceis enigmas já enfrentados por esse escritor da
Nova Inglaterra: penetrar na
mente de um muçulmano jovem, ressentido e irado.
Para enfrentar esse desafio
literário, Updike concebeu Ahmad, um coquetel molotov
adolescente que mistura raças
(mãe irlandesa, pai egípcio ausente); ódio e amor incipiente
pelos EUA; e lealdades tanto à
escola em que estuda quanto à
mesquita que freqüenta, na
sombria New Prospect, em Nova Jersey.
O menino sardento de fala
mansa não precisa de estímulo
para encontrar a fé, sem interferência de imãs enxeridos, e
abandona todos os seus amigos
e todos os traços de sua vida suburbana, optando pela companhia de Deus, "mais próximo
dele do que sua veia jugular",
expressão do Alcorão que Updike repete muitas vezes.
O narrador indica sem muita
sutileza que Alá talvez possa
ser a figura paterna que falta a
Ahmad, um sentimento que
atraiçoa o conceito de um Deus
sem forma tal como o entendem os muçulmanos.
Depois do segundo grau, Ahmad se acomoda, apesar da
considerável inteligência e vocabulário, a um trabalho como
motorista de caminhão, trabalhando para uma loja de mobília cujos proprietários são libaneses, naquilo que só pode indicar uma receita completamente árabe para o terror e o
desastre.
Citando versos do Alcorão
como "prova", Updike localiza
a possibilidade de "jihad" violenta como traço característico
do DNA muçulmano.
Mas o tratamento dado a Ahmad está longe de ser unilateral: Updike enfatiza que o adolescente chega ao terrorismo
de maneira passiva, sob o estímulo do xeque Rashid, um iemenita sorridente que prega na
mesquita e representa um discípulo do islã mais interessado
na poesia do que na mensagem
moral do Alcorão.
Em última análise, Updike
atribui boa parte da culpa pela
sedução de Ahmad à violência
ao desespero do ambiente que
o gerou -edifícios de apartamentos precários, tensões raciais e religiosas deprimentes e,
acima de tudo, a falta de qualquer pessoa ou coisa que ofereça um exemplo de integridade
ao qual ele possa se apegar.
O aspecto sombrio do livro
ocasionalmente se atenua
quando Ahmad percebe Deus
como o aspecto sagrado da vida
comum -seja no canto emotivo de uma cristã negra (Joryleen, talvez a única pessoa que
Ahmad encare com afeto), seja
quando o orientador vocacional de Ahmad, um judeu, consegue construir uma ponte laica até a consciência do rapaz.
Mas será difícil não encarar
vizinhos e amigos muçulmanos
com suspeita renovada depois
de ler o romance. "Terrorista"
se baseia na premissa de que o
11 de Setembro é um evento
muçulmano característico, e
não excepcional, como deixa
entrever na entrevista abaixo,
dada por telefone de sua casa,
em Massachusetts.
PERGUNTA - Dada a distância que o
separa do assunto de seu livro, a
pesquisa deve ter desempenhado
papel importante no processo de
criação. Quais foram as suas fontes?
JOHN UPDIKE - Shady Nasser, um
estudante de pós-graduação de
Harvard que trabalhou como
meu consultor para o idioma
árabe. Minhas pesquisas, que
evidentemente poderiam ter
sido mais profundas, envolveram ler duas traduções do Alcorão e até um livro chamado
"The Koran for Dummies" [O
Alcorão para Leigos].
O relatório da comissão do 11
de Setembro ajuda a estabelecer o aspecto emocional das
personalidades dos terroristas,
e li diversos livros sobre o islã. A
tradição dessa forma de ataque
tem um longo passado.
PERGUNTA - A história de Jonas é
mencionada muitas vezes nas discussões sobre terrorismo, e o sr. inclui um trecho dela como epígrafe
-"e agora, ó Senhor, por favor tire
minha vida, pois para mim morrer é
melhor que viver. E o Senhor disse:
"E você está certo em sua ira?'". Como veio a empregar essa citação?
UPDIKE - Eu a encontrei num
panfleto da Igreja Episcopal. A
outra epígrafe vem de Gabriel
García Márquez ["a descrença é
mais resistente que a fé porque
os sentidos a sustentam"].
Fiquei tão surpreso por ele
tê-lo dito de maneira tão crua, e
imaginei que as duas citações
ajudavam a emoldurar a questão da fé e também toda a raiva
que meu jovem herói, Ahmad,
sente quando seu pai o abandona e por tantas outras coisas,
incluindo a cidade que o cerca.
Ainda que não costume perder a calma com freqüência, ele
sente a espécie de raiva fria que
se enquadra perfeitamente na
forma de sacrifício que está disposto a empreender.
PERGUNTA - Em algumas ocasiões
o sr. deixou de fora detalhes cruciais,
que poderiam humanizar o islã e
torná-lo mais pluralista. O sr. se incomoda com a opinião que os muçulmanos possam vir a ter sobre o
seu trabalho?
UPDIKE - Creio que não é algo
sobre o qual eu tenha pensado
demais. O livro, por natureza
do ambiente em que transcorre, é bastante étnico, de modo
que nele existe alguma coisa
para ofender a quase todos
-para ofender judeus, para incomodar irlandeses e, com certeza, para causar desagrado aos
norte-americanos de ascendência árabe.
Jamais me senti crítico em
relação a Ahmad; ele é jovem e,
como acontece freqüentemente com jovens, vive de modo absoluto o seu ardor, o ardor das
ações que pretende praticar.
PERGUNTA - Ao se preparar para escrever o seu livro, o sr. leu outros escritores que tenham tratado de temas ditos terroristas?
UPDIKE - Li [o escritor britânico] Martin Amis.
Todo mundo em meu romance está tentando fazer o
melhor. Explodir coisas, do
ponto de vista da sociedade
mais ampla, não é um ato de
bondade; do ponto de vista
de quem o faz, é um ato de
guerra, uma necessidade.
PERGUNTA - Há neutralidade
moral em "Terrorista"?
UPDIKE - Creio que o autor
esteja basicamente entre as
pessoas que desaprovam
que coisas sejam explodidas. Creio que prefiro a ordem que existe a qualquer
ordem hipotética que poderia existir se a ordem atual
fosse desmantelada.
Acredito, em termos gerais, que mudanças sejam
realmente necessárias nas
sociedades, mas prefiro que
ela seja realizada por meios
graduais, nada espetaculares e nada mortíferos.
PERGUNTA - O sr. usa um ponto
de vista onisciente e faz alguns
pronunciamentos bastante extremos. Nem sempre sabemos
quando esses pensamentos provêm do narrador ou de Ahmad,
o que cria uma ambigüidade
tensa, ocasionalmente, como se
bombas fossem detonadas e
ninguém assumisse a responsabilidade. Essa técnica foi adotada de maneira consciente?
UPDIKE - Os pensamentos
dele... Alguns são hostis, ele
é muito hostil, na realidade.
Sente que o mundo ocidental, o materialismo, a sexualidade, o consumismo, todas essas coisas que o Ocidente tem -basicamente, a
face apresentada nos filmes
e nas canções-, crê que tudo isso seja antagônico à sua
fé, ao seu Deus.
Portanto, quanto a isso,
sim, ele é uma espécie de extremista. Existe um modo
pelo qual compartilho da
possibilidade de me sentir
assim. Existe um egoísmo,
uma podridão se espalhando pela sociedade, e isso
oferece pouca orientação,
pouca esperança, a espécie
de esperança que a religião
costumava oferecer, e ainda
o faz, para muitas, mas de
modo nenhum para todas
as pessoas.
PERGUNTA - A mensagem que
perdura ao final do seu livro é
bastante pessimista. O sr. se
considera como o Michel Houellebecq dos EUA?
UPDIKE - (Risos.) Eu me vejo
como uma pessoa razoavelmente amistosa, patriótica,
feliz, mas, quando escrevo,
bem, algo mais interfere,
vem à tona. Havia certo prazer em tentar enfatizar o caminho rumo à destrutividade, aqui, rumo ao pensamento do terror.
PERGUNTA - O senhor ainda
acredita em humanismo e entendimento universal?
UPDIKE - Oh, com certeza!
Como meta, sim, é algo que
devemos almejar. Tendo a
ser ridiculamente esperançoso com relação a conflitos
e maneiras de evitá-los, mas
acredito que estejamos
muito longe do mundo feliz
que estava supostamente
raiando quando a Guerra
Fria acabou. O mundo provou ser muito mais problemático, confuso e perigoso
do que qualquer um poderia
ter antecipado.
Esta entrevista saiu no "L.A. Weekly".
Tradução de Paulo Migliacci.
"Terrorist", de John Updike,
editora Alfred A. Knopf, 310 páginas, US$ 25 (R$ 55)
ONDE ENCOMENDAR - Livros
em inglês podem ser encomendados na livraria Cultura (tel.
0/ xx/11/ 3170-4033) ou no site www.amazon.com
Texto Anterior: "Pensamento fraco" de Vattimo enterrou a metafísica Próximo Texto: A última comunhão Índice
|