São Paulo, domingo, 02 de julho de 2006

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A última comunhão

Otimista quanto ao futuro dos conflitos religiosos, Paolo Portoghesi, que fala no Rio na sexta-feira, defende a integração das crenças por meio da arquitetura

DANIEL BUARQUE
DA REDAÇÃO

A maioria dos conflitos entre religiões e a visão preconceituosa que liga o islamismo ao terror estarão superados daqui a 20 ou 30 anos. Esse otimismo, fruto do estudo da superação de conflitos na história, é assumido pelo arquiteto e historiador italiano Paolo Portoghesi, 75, que chega hoje ao Brasil para a exposição "O Espaço do Sagrado"
Autor de "Depois da Arquitetura Moderna" (Martins Fontes), Portoghesi costuma incluir em seus projetos elementos das religiões católica, islâmica e judaica. Católico que se assume "cheio de dúvidas", ele ressalta a importância de uma antropologia das religiões para uma compreensão da fenomenologia ao longo da história -sem, por isso, deixar de lado a própria fé ao ser compreensivo com a crença do outro.
Em entrevista à Folha, por telefone celular, enquanto estava em um trem voltando de Roma para o pequeno vilarejo de Cascata (a 40 km da capital italiana), onde vive, ele defendeu que não se podem enfatizar apenas os problemas atuais dos conflitos religiosos, que mudam ao longo da história, mas buscar permanentemente um diálogo respeitoso entre as diferenças, ressaltando os pontos em que há semelhança.

 

FOLHA - A arquitetura pode ser um instrumento para ajudar a entender as diferenças entre as religiões? PAOLO PORTOGHESI - Sim, a identidade religiosa e suas ricas trocas com a cultura de cada época e com religiões diferentes podem ser percebidas na arquitetura. Nela percebemos claramente quando, na história, houve contato entre religiões de forma tolerante. É um terreno em que se percebe a identidade de cada uma sem negação da outra, mas com compreensão, de forma concêntrica.

FOLHA - Como a arquitetura pode ajudar a dividir o espaço entre as religiões e mantê-las juntas sem a criação de conflitos?
PORTOGHESI -
Sem compreensão e diálogo não é possível. A arquitetura é um instrumento para a aproximação e o diálogo e pode ajudar mesmo na compreensão, se entendermos os pontos em comum a partir da própria forma. A arquitetura gótica, por exemplo, não é compreensível sem uma análise dos exemplos islâmicos de estrutura arquitetônica, o que mostra a proximidade entre as igrejas católicas dessa arquitetura e as bases do pensamento islâmico.

FOLHA - A arquitetura e os espaços de diálogos entre as diferentes formas do sagrado constituem um modo de evitar os atuais conflitos entre as religiões?
PORTOGHESI -
É preciso que vejamos as coisas de um ponto de vista mais amplo do que a atualidade imediata. Não devemos paralisar a idéia de incentivar o diálogo por conta das dificuldades atuais, pois o extremismo islâmico é típico apenas do momento atual. Quando eu era mais novo, por exemplo, me lembro de ter visto em Roma um atentado terrorista contra a Embaixada da Inglaterra, e o ataque havia sido realizado por uma entidade terrorista israelense. Hoje a situação mudou, e ninguém fala de terrorismo sem associá-lo à religião islâmica; o terrorismo israelense não existe mais. Devemos aprender com a história. Em 20 ou 30 anos a lembrança do terrorismo islâmico será algo do passado, distante, superado. Devemos pensar a história dessa forma, sem isolar o momento atual.

FOLHA - O senhor se considera um otimista?
PORTOGHESI -
Sim, certamente. A história ensina a ser otimista, a ver que os problemas que parecem insolúveis sempre são resolvidos com o tempo.

FOLHA - Do ponto de vista atual, o sr. acha que a globalização é um processo que ajudará a criar esse diálogo tolerante entre as religiões ou apenas aumentar o contato hostil?
PORTOGHESI -
A globalização atual é basicamente um fenômeno econômico. Do ponto de vista cultural, ela já existe há 300 ou 400 anos, como encontro entre civilizações diferentes. Claro que a globalização como fenômeno econômico é um processo perigoso, mas que temos que aceitar como inevitável, procurando compreendê-lo e dominá-lo. A globalização cultural é um fenômeno positivo. Devemos apenas ajudar as diferentes tradições a estabelecerem o diálogo, preservando os elementos positivos da diferença. É importante evitar o desaparecimento das línguas naturais, da forma de pensar de cada cultura. Ao mesmo tempo, é importante evitar o conflito gerado pelas diferenças culturais.

FOLHA - A laicidade vai ser então instrumento do diálogo?
PORTOGHESI -
Ela deve ser introduzida na discussão sem que pensemos nela como uma contraposição racional ao fundamentalismo. Devemos entendê-la no desenvolvimento histórico como forma de enfatizar a tolerância, sem negar as crenças religiosas.

FOLHA - Incentivar dessa forma o diálogo e a laicidade não pode tornar as religiões mais frágeis?
PORTOGHESI -
Cada religião tende a se propor como única forma de entender a realidade. Não precisamos contradizer isso, mas é preciso entender o fenômeno religioso como um fenômeno histórico, vendo que existem outras crenças, que precisam ser respeitadas. É o homem que cria a divindade, mesmo que não nos oponhamos à idéia de revelação ou sagrado. Uma visão antropológica da religião ajuda a aceitar uma coexistência pacífica, sem diminuir a importância de cada culto individualmente. Mesmo as pessoas que têm fé precisam ter uma visão da complexidade antropológica do fenômeno religioso. Acho que é inevitável misturar o laico ao sagrado. Compreender o fenômeno religioso na história não precisa enfraquecer a fé.

FOLHA - A exposição de seus trabalhos é intitulada "O Espaço do Sagrado". Que espaço é esse?
PAOLO PORTOGHESI -
Meu trabalho tenta entender o problema da diferenciação do espaço de cada religião e fazer a comunicação entre as diferentes tradições, tomando como base o fato de que, apesar dos pontos diferentes entre elas, há fortes elementos comuns. Não devemos destruir essas diferenças, mas cultivar a unidade. Penso em espaços com as três orientações, que possam ser utilizados pelas diferentes tradições culturais e ser o local de diálogo entre elas. Seria um espaço sagrado comum.

FOLHA - O sr. leu "O Código Da Vinci", de Dan Brown? Assistiu ao filme? O que acha da polêmica em torno dessa obra?
PORTOGHESI -
Sim, li o romance e assisti ao filme. Acho que a igreja enfrentou, em sua existência, problemas culturais mais dramáticos que esse. Ele não traz nada de marcante. É um exemplo típico de nossa época, um livro que procura agradar a um público leitor interessado em escândalos. Segue uma pesquisa de mercado e satisfaz seu público. Por outro lado, o livro conquistou um momento de grande sucesso nos EUA na mesma época em que o papa João Paulo 2º havia se pronunciado contrário à invasão do Iraque pelos EUA, apontando para uma demonstração de levante contra a autoridade da Igreja Católica entre os americanos.

FOLHA - O brasileiro Paulo Mendes da Rocha foi o vencedor do Prêmio Pritzker deste ano. O sr. conhece o trabalho dele? O que tem visto da arquitetura brasileira?
PORTOGHESI -
Sim, conheço um pouco de seu trabalho e acho muito interessante. A premiação dele foi importante, pois dá uma orientação diferente ao prêmio, que normalmente era oferecido a arquitetos já consagrados mundialmente, e agora demonstra uma maior pesquisa de trabalhos de arquitetos "marginais" de grande qualidade -algo que é muito importante, pois foge do caráter publicitário do prêmio.


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