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A última comunhão
Otimista quanto ao futuro dos conflitos religiosos, Paolo Portoghesi,
que fala no Rio na sexta-feira,
defende a integração das crenças por meio da arquitetura
DANIEL BUARQUE
DA REDAÇÃO
A
maioria dos conflitos entre religiões e
a visão preconceituosa que liga o islamismo ao terror estarão superados daqui a 20 ou
30 anos. Esse otimismo, fruto
do estudo da superação de conflitos na história, é assumido
pelo arquiteto e historiador italiano Paolo Portoghesi, 75, que
chega hoje ao Brasil para a exposição "O Espaço do Sagrado"
Autor de "Depois da Arquitetura Moderna" (Martins Fontes), Portoghesi costuma incluir em seus projetos elementos das religiões católica, islâmica e judaica. Católico que se
assume "cheio de dúvidas", ele
ressalta a importância de uma
antropologia das religiões para
uma compreensão da fenomenologia ao longo da história
-sem, por isso, deixar de lado a
própria fé ao ser compreensivo
com a crença do outro.
Em entrevista à Folha, por
telefone celular, enquanto estava em um trem voltando de
Roma para o pequeno vilarejo
de Cascata (a 40 km da capital
italiana), onde vive, ele defendeu que não se podem enfatizar apenas os problemas atuais
dos conflitos religiosos, que
mudam ao longo da história,
mas buscar permanentemente
um diálogo respeitoso entre as
diferenças, ressaltando os pontos em que há semelhança.
FOLHA - A arquitetura pode ser um
instrumento para ajudar a entender
as diferenças entre as religiões?
PAOLO PORTOGHESI - Sim, a identidade religiosa e suas ricas trocas com a cultura de cada época
e com religiões diferentes podem ser percebidas na arquitetura. Nela percebemos claramente quando, na história,
houve contato entre religiões
de forma tolerante. É um terreno em que se percebe a identidade de cada uma sem negação
da outra, mas com compreensão, de forma concêntrica.
FOLHA - Como a arquitetura pode
ajudar a dividir o espaço entre as religiões e mantê-las juntas sem a
criação de conflitos?
PORTOGHESI - Sem compreensão e diálogo não é possível. A
arquitetura é um instrumento
para a aproximação e o diálogo
e pode ajudar mesmo na compreensão, se entendermos os
pontos em comum a partir da
própria forma. A arquitetura
gótica, por exemplo, não é compreensível sem uma análise dos
exemplos islâmicos de estrutura arquitetônica, o que mostra a
proximidade entre as igrejas
católicas dessa arquitetura e as
bases do pensamento islâmico.
FOLHA - A arquitetura e os espaços
de diálogos entre as diferentes formas do sagrado constituem um modo de evitar os atuais conflitos entre
as religiões?
PORTOGHESI - É preciso que vejamos as coisas de um ponto de
vista mais amplo do que a atualidade imediata. Não devemos
paralisar a idéia de incentivar o
diálogo por conta das dificuldades atuais, pois o extremismo
islâmico é típico apenas do momento atual.
Quando eu era mais novo,
por exemplo, me lembro de ter
visto em Roma um atentado
terrorista contra a Embaixada
da Inglaterra, e o ataque havia
sido realizado por uma entidade terrorista israelense. Hoje a
situação mudou, e ninguém fala de terrorismo sem associá-lo
à religião islâmica; o terrorismo
israelense não existe mais.
Devemos aprender com a
história. Em 20 ou 30 anos a
lembrança do terrorismo islâmico será algo do passado, distante, superado. Devemos pensar a história dessa forma, sem
isolar o momento atual.
FOLHA - O senhor se considera um
otimista?
PORTOGHESI - Sim, certamente.
A história ensina a ser otimista,
a ver que os problemas que parecem insolúveis sempre são
resolvidos com o tempo.
FOLHA - Do ponto de vista atual, o
sr. acha que a globalização é um processo que ajudará a criar esse diálogo tolerante entre as religiões ou
apenas aumentar o contato hostil?
PORTOGHESI - A globalização
atual é basicamente um fenômeno econômico. Do ponto de
vista cultural, ela já existe há
300 ou 400 anos, como encontro entre civilizações diferentes. Claro que a globalização como fenômeno econômico é um
processo perigoso, mas que temos que aceitar como inevitável, procurando compreendê-lo e dominá-lo.
A globalização cultural é um
fenômeno positivo. Devemos
apenas ajudar as diferentes tradições a estabelecerem o diálogo, preservando os elementos
positivos da diferença. É importante evitar o desaparecimento das línguas naturais, da
forma de pensar de cada cultura. Ao mesmo tempo, é importante evitar o conflito gerado
pelas diferenças culturais.
FOLHA - A laicidade vai ser então
instrumento do diálogo?
PORTOGHESI - Ela deve ser introduzida na discussão sem que
pensemos nela como uma contraposição racional ao fundamentalismo. Devemos entendê-la no desenvolvimento histórico como forma de enfatizar
a tolerância, sem negar as crenças religiosas.
FOLHA - Incentivar dessa forma o
diálogo e a laicidade não pode tornar as religiões mais frágeis?
PORTOGHESI - Cada religião tende a se propor como única forma de entender a realidade.
Não precisamos contradizer
isso, mas é preciso entender o
fenômeno religioso como um
fenômeno histórico, vendo que
existem outras crenças, que
precisam ser respeitadas.
É o homem que cria a divindade, mesmo que não nos oponhamos à idéia de revelação ou
sagrado. Uma visão antropológica da religião ajuda a aceitar
uma coexistência pacífica, sem
diminuir a importância de cada
culto individualmente.
Mesmo as pessoas que têm fé
precisam ter uma visão da complexidade antropológica do fenômeno religioso. Acho que é
inevitável misturar o laico ao
sagrado. Compreender o fenômeno religioso na história não
precisa enfraquecer a fé.
FOLHA - A exposição de seus trabalhos é intitulada "O Espaço do Sagrado". Que espaço é esse?
PAOLO PORTOGHESI - Meu trabalho tenta entender o problema
da diferenciação do espaço de
cada religião e fazer a comunicação entre as diferentes tradições, tomando como base o fato
de que, apesar dos pontos diferentes entre elas, há fortes elementos comuns. Não devemos
destruir essas diferenças, mas
cultivar a unidade.
Penso em espaços com as
três orientações, que possam
ser utilizados pelas diferentes
tradições culturais e ser o local
de diálogo entre elas. Seria um
espaço sagrado comum.
FOLHA - O sr. leu "O Código Da Vinci", de Dan Brown? Assistiu ao filme? O que acha da polêmica em torno dessa obra?
PORTOGHESI - Sim, li o romance
e assisti ao filme. Acho que a
igreja enfrentou, em sua existência, problemas culturais
mais dramáticos que esse. Ele
não traz nada de marcante. É
um exemplo típico de nossa
época, um livro que procura
agradar a um público leitor interessado em escândalos. Segue uma pesquisa de mercado e
satisfaz seu público.
Por outro lado, o livro conquistou um momento de grande sucesso nos EUA na mesma
época em que o papa João Paulo 2º havia se pronunciado contrário à invasão do Iraque pelos
EUA, apontando para uma demonstração de levante contra a
autoridade da Igreja Católica
entre os americanos.
FOLHA - O brasileiro Paulo Mendes
da Rocha foi o vencedor do Prêmio
Pritzker deste ano. O sr. conhece o
trabalho dele? O que tem visto da
arquitetura brasileira?
PORTOGHESI - Sim, conheço um
pouco de seu trabalho e acho
muito interessante. A premiação dele foi importante, pois dá
uma orientação diferente ao
prêmio, que normalmente era
oferecido a arquitetos já consagrados mundialmente, e agora
demonstra uma maior pesquisa de trabalhos de arquitetos
"marginais" de grande qualidade -algo que é muito importante, pois foge do caráter publicitário do prêmio.
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