São Paulo, domingo, 02 de julho de 2006

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A ideologia do eu

Em estilo fluido e objetivo, "1776" narra a guerra de independência dos EUA

PAULO FAGUNDES VIZENTINI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Desde que os EUA se tornaram uma "República Imperial" no século 20, segundo a célebre expressão de Raymond Aron, eles se envolveram mais e mais num mundo sem fim, complexo e contraditório. Foram, então, se afastando do nicho em que se formaram e desenvolveram bem como da simplicidade dos princípios fundadores, perdendo parte de sua identidade original. Em "1776", o historiador norte-americano David McCullough parece buscar recuperar a luta de libertação que deu origem à República e suas motivações, por meio da ação de homens simples.
O livro é, basicamente, um relato historiográfico tradicional, embora fundamentado numa exaustiva pesquisa documental em arquivos ingleses e norte-americanos. Direcionado ao público norte-americano, invariavelmente o indivíduo é o centro da trama, e sua ação constitui o fio condutor de uma narrativa que prende o leitor até a última página. Um rico material iconográfico, com gravuras, documentos fac-similados e mapas da época dão à obra requinte editorial, além da tradução de qualidade.
Sem uma introdução contextualizadora ou uma conclusão que conduza explicitamente a determinada teleologia, o livro descreve o caráter dos personagens históricos e o choque das ideologias, no cenário de uma descrição perfeita da paisagem urbana e natural da América do fim do século 18.
Temporalmente, a trama se desenrola a partir do final do ano de 1775, com o cerco e a conquista de Boston pelo Exército continental, a Declaração de Independência e a tomada de Nova York pelos ingleses em 76, culminando com a contenção do avanço dos realistas na batalha de Trenton, em 77.
Mais do que se concentrar nos homens que lutaram "pela" independência, o livro descreve os homens que lutaram "na" guerra de independência, pois o rei George 3º é desmistificado, e as atitudes do seu primeiro-ministro e de militares, como os irmãos Howe e de Cornwallis, que lutaram pela coroa, também são analisados.
Mas a figura central é, sem dúvida, George Washington, comandante do Exército continental, além de Lee e outros generais rebeldes. Por meio desses personagens, o confronto entre a aristocracia e a "ralé", como os ingleses consideravam os sublevados, é explorado como a luta entre dois mundos e duas épocas.
Ao mesmo tempo McCullough mostra que boa parte dos colonos permaneceu, por diferentes razões, ao lado da coroa. Quase um quarto deles emigraria para o Canadá, como forma de permanecerem súditos de sua majestade. Afinal, nenhuma revolução foi feita com unanimidade.
Aliás, o que chama atenção é a fragilidade do campo revolucionário, com soldados que precisavam de pagamento adicional para permanecer nas fileiras do Exército continental, rebatizado de "os Estados Unidos". Mesmo assim, a vontade deles era maior que a dos ingleses, e a extensão territorial, a dispersão humana e a debilidade da infra-estrutura faziam com que a superioridade numérica britânica e a estratégia militar européia fossem superadas pelas dos fazendeiros norte-americanos.
A independência dos EUA constituiu, nesse contexto, uma "dupla revolução, mas incompleta". Dupla porque representava uma ruptura da dependência colonial e uma revolução burguesa democrático-liberal republicana, mas incompleta, na medida em que a escravidão seria mantida, como forma de garantir a adesão dos Estados do Sul.
Mas o lado inglês também tinha suas contradições, pois os "tories" (conservadores) desejavam manter as 13 colônias à força, enquanto os "whigs" (liberais) aceitavam como legítimas as aspirações dos colonos. Na verdade, tratava-se do antagonismo entre a "green England", agrária e aristocrática, e a "black England", burguesa e urbana, a caminho da industrialização (afinal, no mesmo ano de 1776 Adam Smith publicou "A Riqueza das Nações").
Finalmente, é interessante um sutil debate existente entre os personagens sobre o papel do Exército e do Congresso da Filadélfia, verdadeira proto-estrutura do nascente poder americano. As virtudes da iniciativa e da abnegação e sofrimento apontam um certo caráter heróico e formador do Exército e das milícias, enquanto o Congresso e seus deputados são mostrados como relativamente ineptos e distanciados dos fatos -o que pode ser questionável. Assim, a "mensagem política" do livro fica ambígua, deixando ao leitor certa possibilidade de tirar suas próprias conclusões, no momento em que os marines se encontram atolados no Iraque, longe de casa.


PAULO FAGUNDES VIZENTINI é professor titular de relações internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

1776
Autor:
David McCullough
Tradução: Roberto Franco Valente
Editora: Jorge Zahar (tel. 0/xx/21/2240-0226)
Quanto: R$ 59 (456 págs.)


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