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A ideologia do eu
Em estilo fluido e objetivo, "1776" narra a guerra de independência dos EUA
PAULO FAGUNDES VIZENTINI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Desde que os EUA se
tornaram uma "República Imperial"
no século 20, segundo a célebre expressão de Raymond Aron, eles
se envolveram mais e mais
num mundo sem fim, complexo e contraditório. Foram, então, se afastando do nicho em
que se formaram e desenvolveram bem como da simplicidade
dos princípios fundadores, perdendo parte de sua identidade
original. Em "1776", o historiador norte-americano David
McCullough parece buscar recuperar a luta de libertação que
deu origem à República e suas
motivações, por meio da ação
de homens simples.
O livro é, basicamente, um
relato historiográfico tradicional, embora fundamentado numa exaustiva pesquisa documental em arquivos ingleses e
norte-americanos. Direcionado ao público norte-americano, invariavelmente o indivíduo é o centro da trama, e sua
ação constitui o fio condutor de
uma narrativa que prende o leitor até a última página.
Um rico material iconográfico, com gravuras, documentos
fac-similados e mapas da época
dão à obra requinte editorial,
além da tradução de qualidade.
Sem uma introdução contextualizadora ou uma conclusão
que conduza explicitamente a
determinada teleologia, o livro
descreve o caráter dos personagens históricos e o choque
das ideologias, no cenário de
uma descrição perfeita da paisagem urbana e natural da
América do fim do século 18.
Temporalmente, a trama se
desenrola a partir do final do
ano de 1775, com o cerco e a
conquista de Boston pelo Exército continental, a Declaração
de Independência e a tomada
de Nova York pelos ingleses em
76, culminando com a contenção do avanço dos realistas na
batalha de Trenton, em 77.
Mais do que se concentrar
nos homens que lutaram "pela"
independência, o livro descreve os homens que lutaram "na"
guerra de independência, pois
o rei George 3º é desmistificado, e as atitudes do seu primeiro-ministro e de militares, como os irmãos Howe e de Cornwallis, que lutaram pela coroa,
também são analisados.
Mas a figura central é, sem
dúvida, George Washington,
comandante do Exército continental, além de Lee e outros
generais rebeldes. Por meio
desses personagens, o confronto entre a aristocracia e a "ralé", como os ingleses consideravam os sublevados, é explorado como a luta entre dois
mundos e duas épocas.
Ao mesmo tempo McCullough mostra que boa parte
dos colonos permaneceu, por
diferentes razões, ao lado da
coroa. Quase um quarto deles
emigraria para o Canadá, como
forma de permanecerem súditos de sua majestade. Afinal,
nenhuma revolução foi feita
com unanimidade.
Aliás, o que chama atenção é
a fragilidade do campo revolucionário, com soldados que
precisavam de pagamento adicional para permanecer nas fileiras do Exército continental,
rebatizado de "os Estados Unidos". Mesmo assim, a vontade
deles era maior que a dos ingleses, e a extensão territorial, a
dispersão humana e a debilidade da infra-estrutura faziam
com que a superioridade numérica britânica e a estratégia
militar européia fossem superadas pelas dos fazendeiros
norte-americanos.
A independência dos EUA
constituiu, nesse contexto,
uma "dupla revolução, mas incompleta". Dupla porque representava uma ruptura da dependência colonial e uma revolução burguesa democrático-liberal republicana, mas incompleta, na medida em que a escravidão seria mantida, como
forma de garantir a adesão dos
Estados do Sul.
Mas o lado inglês também tinha suas contradições, pois os
"tories" (conservadores) desejavam manter as 13 colônias à
força, enquanto os "whigs" (liberais) aceitavam como legítimas as aspirações dos colonos.
Na verdade, tratava-se do antagonismo entre a "green England", agrária e aristocrática, e
a "black England", burguesa e
urbana, a caminho da industrialização (afinal, no mesmo
ano de 1776 Adam Smith publicou "A Riqueza das Nações").
Finalmente, é interessante
um sutil debate existente entre
os personagens sobre o papel
do Exército e do Congresso da
Filadélfia, verdadeira proto-estrutura do nascente poder
americano. As virtudes da iniciativa e da abnegação e sofrimento apontam um certo caráter heróico e formador do
Exército e das milícias, enquanto o Congresso e seus deputados são mostrados como
relativamente ineptos e distanciados dos fatos -o que pode
ser questionável.
Assim, a "mensagem política" do livro fica ambígua, deixando ao leitor certa possibilidade de tirar suas próprias conclusões, no momento em que
os marines se encontram atolados no Iraque, longe de casa.
PAULO FAGUNDES VIZENTINI é professor titular de relações internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
1776
Autor: David McCullough
Tradução: Roberto Franco Valente
Editora: Jorge Zahar (tel. 0/xx/21/2240-0226)
Quanto: R$ 59 (456 págs.)
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