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Veredas dos Sertões
CONTEXTO HISTÓRICO AJUDOU
A FAZER DE "OS SERTÕES"
UM LIVRO-SÍMBOLO DO PAÍS; OBRA
FOI EXALTADA POR GRUPO
EMERGENTE NA REPÚBLICA VELHA
E APROPRIADA IDEOLOGICAMENTE
PELO ESTADO NOVO
A unanimidade em torno do livro foi tão grande que o autor conheceu uma glorificação meteórica
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REGINA ABREU
ESPECIAL PARA A FOLHA
Quando o livro "Os
Sertões" foi lançado em 1902, na sede da editora
Laemmert à rua
dos Inválidos, no centro do Rio
de Janeiro, ninguém supunha,
nem mesmo seu autor, o sucesso de vendas e de crítica que
adviria nos anos seguintes.
A surpresa foi tão grande que
Sílvio Romero, um dos mais
importantes críticos do período, assim se referiu à consagração súbita da obra e de seu autor: "De Euclydes da Cunha pode-se dizer que se deitou obscuro e acordou célebre com a
publicação de "Os Sertões"."
De 1902 a 1909, ano da trágica morte de Euclydes, o país
conheceu três edições do livro,
chegando a atingir 10 mil
exemplares de venda. Num
país onde se registrava 85% de
taxa de analfabetismo, esse sucesso de vendas expressava
efetivamente um best-seller.
É preciso ter claro que o autor debutava nas letras. "Os
Sertões" era seu primeiro livro
e ele se via muito mais como
engenheiro do que como escritor. A consagração súbita do livro teve pois um efeito no próprio autor, que, em carta a Araripe Jr., outro importante crítico do período, chegou a confessar que, após o êxito de sua primeira obra literária, ele, "que
até então era um engenheiro
letrado, com o defeito insanável de emparceirar às parcelas
dos orçamentos as idealizações
da arte", tinha subitamente se
transformado "num escritor
apenas transitoriamente desgarrado na engenharia".
Ou seja, a consagração de "Os
Sertões" serviu também para
dar à luz o escritor Euclydes da
Cunha. A unanimidade em torno da relevância do livro foi tão
grande que ele conheceu uma
glorificação meteórica nos seus
pouco mais de seis anos de vida
posteriores ao lançamento.
Um dos coroamentos do sucesso veio em maio de 1903,
com a nomeação para o cargo
de sócio correspondente do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, instituição das
mais renomadas na ocasião.
Ainda no mesmo ano, foi eleito
para a Academia Brasileira de
Letras, na cadeira que tinha
Castro Alves como patrono.
O livro atravessou esses cem
anos aureolado por crescente
prestígio. Diversas enquetes
realizadas em diferentes épocas com intelectuais têm apontado "Os Sertões" como uma
das obras mais representativas
da cultura brasileira, uma espécie de "livro número 1" indispensável para quem quer conhecer o Brasil.
Chegou a ser chamado de
"Bíblia da nacionalidade", obra
que expressa o dilema nacional, ou seja, que procura sinalizar características capazes de
distinguir o país enquanto civilização nacional autêntica.
Leituras diversas
Independentemente das razões que cercam a unanimidade da crítica e do público em
torno da obra-prima de Euclydes da Cunha, o interessante é
perceber que estamos diante de
um livro que foi adquirindo
uma força simbólica capaz de
desempenhar funções sociais
que vão muito além de suas
qualidades literárias ou científicas. O livro foi sendo investido
de uma espécie de valor sagrado, tornando-se citação obrigatória da mais vasta gama de intelectuais brasileiros.
É interessante também
acompanhar como, ao longo
destes mais de cem anos, o livro
foi servindo a diferentes leituras em função das mudanças de
interesses no campo da literatura, da política e, sobretudo,
da construção do Estado-nação. Podemos destacar alguns
desses momentos.
Primeiro, o momento da
consagração do livro no início
do século 20. Os três críticos literários que guindaram o livro
ao mais alto escalão, Araripe
Jr., José Veríssimo e Sílvio Romero, tinham alguns pontos
em comum: a origem provinciana e as crenças no valor da
ciência e em uma sociedade regida pelos princípios do talento
e do mérito.
A "trindade crítica do realismo" mantinha vínculos importantes com os principais focos
de renovação intelectual e política, compostos de intelectuais
com pequeno capital social, na
grande maioria vindos das diversas províncias espalhadas
pelo território, que tomaram
contato com o ideário científico em instituições como a Faculdade de Direito do Recife ou
a Escola Militar no Rio.
Esses críticos, além de apontarem as qualidades literárias
do livro, apropriaram-se de
seus aspectos mais contundentes, sublinhando a preeminência da natureza na formação da
identidade nacional, sobretudo
no sertanejismo.
Como "escritores sertanejos", ou seja, como escritores
que vinham do interior do país
e que afirmavam na capital federal um olhar diferenciado e
singular em oposição aos princípios da sociedade de corte
que ainda vigoravam no país,
esses críticos utilizam "Os Sertões" como bandeira de uma
cruzada pelo valor da ciência
articulado com a aspiração de
uma nova postura ética, o valor
do talento e do mérito como
princípios sociais reguladores.
Euclydes da Cunha não tinha
padrinhos, não fazia parte da
roda de literatos da rua do Ouvidor. Euclydes representava
um novo modelo de intelectual
que apenas se esboçava. Foi isso que os críticos pressentiram.
Martírio
Um outro momento importante ocorre após a morte trágica do autor. A ocasião foi propícia para a construção do mito
do mártir da nacionalidade, representação que se agregou ao
escritor e que só foi ampliada
nos anos que se seguiram.
Características marcantes de
"Os Sertões" eram associadas a
aspectos da personalidade e da
trajetória do escritor. Euclydes
da Cunha passou a simbolizar a
conciliação de vertentes de
pensamento até então tidas como inconciliáveis.
A figura do engenheiro que se
mesclava com a do escritor,
construindo uma ponte metálica em São José do Rio Pardo, no
interior de São Paulo, de acordo
com as tecnologias mais avançadas da técnica e da ciência, ao
mesmo tempo em que escrevia
um livro sobre as qualidades
dos habitantes de uma região
inóspita do interior do Brasil,
passava a ser uma metáfora para aqueles que se dedicariam a
pensar o Brasil daí em diante.
Euclydes da Cunha era apropriado como o escritor que sabia como nenhum outro conciliar os contrastes. Assim como
o escritor, o Brasil era visto como terra de contrastes, país
que era no mínimo dois e procurava a conciliação consigo
mesmo, com suas metades,
com suas múltiplas faces.
A polifonia do livro permitiu
aproximações plurais, mas o
que é mais significativo é a associação de "Os Sertões" com a
representação do próprio país.
A ideia de uma obra aberta,
uma Bíblia onde diferentes aspectos da nação podiam ser encontrados, inspira pensadores
e políticos em todo o decorrer
do século 20.
Um deles foi o pesquisador
Edgar Roquette Pinto (1884-1954), que, entre suas muitas
realizações, criou, na qualidade
de diretor do Museu Nacional,
uma sala em homenagem a
Euclydes da Cunha ao lado da
sala Humboldt. No dia da inauguração, Afrânio Peixoto estabeleceu uma analogia entre
Euclydes da Cunha e os bandeirantes e tratou o livro "Os Sertões" como instrumento para
descobrir o Brasil.
Euclydes era apresentado como "o novo bandeirante de
uma nova entrada para a alma
da nacionalidade brasileira".
Mas o livro foi também apropriado para justificar políticas
de Estado. Durante o Estado
Novo, o governo federal tinha
entre suas principais metas a
virada para o interior, visando
colonizar regiões ainda pouco
exploradas. Essa meta foi explicitada por Cassiano Ricardo,
um dos ideólogos do Estado
Novo, num livro intitulado "A
Marcha para o Oeste".
Letras agrestes
Euclydes da Cunha foi tomado como símbolo da "tradição
de bandeirar", e "Os Sertões",
como roteiro para os "bandeirantes modernos" do Estado
Novo. A bandeira era tomada
em sentido mítico. Existiria, assim, um "bandeirante anônimo
caminhando no sangue de cada
um de nós". Cassiano Ricardo
visava legitimar o projeto de
colonização do interior instituído por Getúlio Vargas, que
tomou a mesma denominação
de seu livro.
Além de constituírem a primeira democracia nascida da
terra e o primeiro governo independente de Portugal, as
bandeiras teriam criado nossa
geografia, unindo todas as raças
e povoando nosso território.
Euclydes teria sido um bandeirante pioneiro. E isso por
vários motivos: a insubmissão
republicana; o estilo agreste e
retorcido (escreve como um cipó); o físico (ele era um caipira,
um mameluco, com cerdas de
bororo); o modo como escreveu
"Os Sertões" (no rancho); a atitude de acompanhar o batalhão
paulista a Canudos, como correspondente de guerra.
Mas é importante chamar a
atenção para outras leituras de
Euclydes da Cunha e de "Os
Sertões" que não se tornaram
tão emblemáticas. No ensaio
"Engenheiro Físico Alongado
em Social e Humano", Gilberto
Freyre não trabalha com a oposição sertão versus litoral.
Freyre parte da visão conciliatória, chegando mesmo a
desconsiderar a importância de
confrontar o sertão e o litoral.
Do seu ponto de vista, tratava-se de "unir-se o sertão com o litoral para a salvação do Brasil",
fazer "caminhos entre as cidades e os sertões", criar comunicações entre o "deserto brasileiro" e o "litoral agrário".
Para Freyre, a questão que se
deduzia a partir da leitura de
Euclydes era muito mais a necessidade de maior circulação
entre as regiões do que a ideia
de uma "marcha para oeste" ou
para dentro.
Se "Os Sertões" vem representando uma unanimidade
nacional em termos da importância conferida ao livro no
contexto do pensamento social
brasileiro, essa unanimidade é
complexa, polissêmica e aberta
a múltiplas e variadas interpretações. Talvez seja exatamente
essa polifonia que faz de "Os
Sertões" e de seu autor elementos permanentes no imaginário
nacional.
REGINA ABREU é antropóloga, professora da
UniRio (Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro) e autora de "O Enigma de "Os Sertões'" (ed. Rocco).
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