São Paulo, domingo, 02 de outubro de 2005

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A crítica irônica aos poderes públicos ganhou forma na primeira metade do século em canções satíricas de duplas populares, como Alvarenga e Ranchinho, que ironizavam de Vargas a Eisenhower, sem censura

A política do deboche

CPDOC/FGV
O presidente Getúlio Vargas posa para o escultor Jo Davidson, enviado pelo presidente dos EUA, Franklin D. Roosevelt, pra esculpir seu busto, em 1939


BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

A sátira política tem uma longa tradição em nosso país, desde os tempos do Império. As formas impressas, ainda que muito modificadas, prolongaram-se ao longo do tempo. Outras surgiram pela via da televisão e outras mais praticamente desapareceram. É o caso da sátira musical, transmitida pelo rádio e gravada em disco, quase sempre paródia de uma música muito popular em certa época.
Uma dupla se destaca no gênero, formada por Alvarenga e Ranchinho, com a ressalva de que houve um único Alvarenga e mais de um Ranchinho. No caso, vou me ater ao mais significativo dos Ranchinhos. O nome completo de Alvarenga (1912-1978), mineiro de Itaúna, era Murilo Alvarenga. Ranchinho tinha um nome curioso -Diésis dos Anjos Gaia (1913-1991)- e era paulista de Jundiaí [algumas das indicações sobre a dupla foram extraídas do site www.revivendomusicas.com.br]. Ambos fizeram parte de uma época de ouro da música caipira, integrada por outras duplas famosas, como Jararaca e Ratinho, Tonico e Tinoco e nomes individuais, como o Capitão Furtado.


No curso da guerra, multiplica-ram-se as sátiras a personagens centrais do Eixo, ou seja, Hitler, Mussolini e Hiroito


Eles começaram a cultivar o gênero, com grande êxito, no Cassino da Urca, por volta de 1936, pouco antes da implantação do Estado Novo. Durante a ditadura, passaram a ter problemas com a censura, resolvidos, aparentemente, por meio de uma acomodação bem típica de nosso padrão cultural. A mediadora do arranjo foi Alzira Vargas do Amaral Peixoto, filha de Getúlio Vargas, que, apesar de sua intensa admiração pelo pai, procurava amenizar, quando possível, arbitrariedades do regime. Apreciadora da dupla caipira, Alzira convidou os dois a tocar para seu pai, no Palácio das Laranjeiras. Depois de ouvir várias composições, Getúlio resolveu dar ordens para que eles não fossem mais incomodados pela censura, mandando liberar suas músicas em todo o território nacional. Naturalmente, como contrapartida, Alvarenga e Ranchinho trataram de se conter.
Creio que a fase mais brilhante das sátiras compostas ou interpretadas pela dupla concentrou-se no período que vai da Segunda Guerra Mundial aos primeiros anos posteriores à deposição de Vargas, em 1945. Graças a uma iniciativa do Instituto Moreira Salles, que pôs à disposição do público [pelo site www.ims.com.br] as grandes coleções de música popular brasileira de Humberto Frateschi e José Ramos Tinhorão, temos um acesso fácil a algumas gravações daquela época.
Elas são um indicador de como a entrada do Brasil no conflito mundial fez com que o público mais informado voltasse os olhos para uma cena ampla, em que se decidiam os destinos de um mundo dividido entre a barbárie e certo grau de civilização. A gente do povo teve uma experiência bem concreta do conflito, quando se lembra o recorte social das tropas brasileiras que foram lutar na Itália.
No curso da guerra, multiplicaram-se as sátiras tendo por objeto os personagens centrais do Eixo, ou seja, Hitler, Mussolini e o imperador Hiroito. É bem verdade que Alvarenga e Ranchinho não foram os únicos a se utilizar do tema.

Função crítica
Como mostra Roney Cytrynowicz, em seu belo livro "Guerra sem Guerra" (Edusp), muitos filmes e músicas do período tiveram esse objetivo. Não chego, porém, a concordar com a tese de Cytrynowicz, ligando o deboche, associado à inexistência de versões dramáticas, a uma certa sensação de irrealidade da guerra, cujos combates ocorriam na distante Europa. Embora o deboche possa ter contribuído para esvaziar o conteúdo dramático do conflito, e até ter sido instrumentado, em alguns casos, pela propaganda do Estado Novo, penso que ele teve também uma função crítica, na trilha de um gênero tradicional -a representação humorística- tratado, de forma pioneira, no livro de Elias Thomé Saliba, "Raízes do Riso" (Companhia das Letras).
Deixando de lado a controvérsia, um bom exemplo do gênero é a paródia de uma valsa que foi extremamente popular -"Manolita"- de autoria do "falso russo" Léo Daniderff, na verdade um cançonetista francês chamado Julien Niquet. A valsa teve uma versão em português e várias interpretações, nas vozes de Francisco Alves e Vicente Celestino, entre outras. A paródia da dupla, gravada em 1943, parte dessa versão, transformando, de saída, "era uma tarde em Sevilha" em "era uma tarde em Berlim".
A partir daí, surge a figura masculina de Hitler, que, no fim, acaba se dando mal, e as peripécias de seus amores com Mussolini e Hiroito, travestidos em "Benita" e "Hiroita". O enredo, entre várias peripécias, inclui uma traição, perpetrada por Laval -numa referência ao colaboracionista Pierre Laval, chefe do governo de Vichy durante a ocupação da França pela Alemanha. Mais ainda, para além dos personagens, aparece um estereótipo da época: a covardia das tropas italianas, fugindo desabaladamente das batalhas.
No âmbito da política interna, destaco duas sátiras referentes aos primeiros tempos que se seguiram à deposição de Getúlio. Uma delas diz respeito à conduta do ex-ditador, na expectativa de retornar ao poder pela via democrática, sucedendo o general Dutra. O comportamento de Getúlio é sintetizado num trecho inicial, onde se diz: "Quem não conhece esse baixinho tão gordinho/Que agora está quietinho/ Governou lá no Catete 15 anos/ Agora está "urubuservando"...".
O outro episódio refere-se a um gesto controvertido do deputado da UDN Otavio Mangabeira por ocasião da recepção ao general Dwight Eisenhower, no Congresso Nacional. Eisenhower veio ao Brasil laureado por sua liderança na guerra, como comandante dos exércitos que desembarcaram na França, em 1944. Mangabeira saudou-o e, para arrematar o discurso, beijou-lhe a mão, gesto interpretado por uns como de justificada gratidão, mas, por outros, como de insuportável subserviência.
Alvarenga e Ranchinho não gostaram, ou viram aí uma oportunidade de deboche, cantando, com seu sotaque caipira: "Mangabeira baiano, paisano, fiel/ Beija a mão do Eisenhower/ Que lindo papel".
A disputa entre nacionalistas e "entreguistas", simbolizada no gesto, ganhou amplitude, no plano dos fatos. A dupla seguiu seu caminho, ao longo dos anos, mirando personagens políticos da mais variada procedência.

Boris Fausto é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 1930" (Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.


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