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+ sociedade
Para o historiador Michel Despland, é com o Estado moderno que surge a consciência de "religiões", no plural
O futuro do sagrado
CAIO LIUDVIK
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Professor da Universidade de
Concórdia, Montréal, Michel
Despland é um dos pesquisadores de destaque no campo
da história das religiões na atualidade. Ele esteve no Brasil em agosto,
por ocasião do lançamento no país
de um clássico das ciências sociais,
"Sobre o Sacrifício", livro do antropólogo Marcel Mauss, co-assinado
por Henri Hubert (ed. Cosacnaify).
Despland considera o legado de
Mauss fundamental na medida em
que, não só em "Sobre o Sacrifício",
mas sobretudo no "Ensaio sobre a
Dádiva", o sobrinho de Durkheim
estabelece uma maneira fecunda de
elucidar o aspecto simbólico -e
não meramente utilitário- das
transações econômicas e das relações sociais em geral.
A demogra-fia do cristianis-mo mudou radical-mente. Enquanto líderes teológicos do Norte falam de ecumenis-mo, as vozes hegemô-nicas na África e Ásia têm ideais mais conserva-dores
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A "dádiva" é um regime de trocas
que, operante desde os grupos arcaicos -e supostamente em crise nas
modernas sociedades de mercado-
, implica a obrigatoriedade do dar,
receber e retribuir; ela se fundaria
numa lógica simbólica sintetizada
por Mauss na seguinte fórmula: "Le
lien importe plus que le bien" (ou seja, a relação, o trocar importa mais
que o bem trocado).
Segundo Despland, Mauss ensina
a ver que o simbolismo das ações e
interações concretas seria, para o estudo das religiões, uma chave de leitura mais pertinente do que a noção
de "sagrado", estabelecida por nomes como Durkheim e Mircea Eliade. Na entrevista a seguir, ele fala da
obra de Mauss e das perspectivas
que se põem para o estudo das religiões neste início de milênio. Canadense de origem suíça, ele é autor,
entre outros livros, de "La Religion
en Occident" [A Religião no Ocidente] e "Les Hiérarchies Sont Ébranlées - Politiques et Théologies au 19
Siècle" [As Hierarquias Estão Abaladas - Política e Teologia no Século
19].
Folha - Quais são hoje, a seu ver, as
tendências e temas em voga no campo da história das religiões?
Michel Despland - Tem havido
grande interesse pelos novos movimentos religiosos e pelos rituais (sua
gênese, mudanças e morte). Isso leva os pesquisadores a darem uma
maior atenção para o que fazem as
mulheres -em muitas religiões,
elas sempre foram experts em rituais
domésticos, mas o mundo acadêmico prestava pouca ou nenhuma
atenção a isso.
Folha - Uma de suas grandes contribuições foi uma abordagem sistemática das transformações do conceito
de religião no Ocidente ao longo dos
tempos. O sr. poderia sintetizar o seu
modo de recontar esse processo histórico?
Despland - Para os romanos, a religião era uma virtude. Eles não pensavam ter uma religião. Os cristãos
medievais -e judeus e muçulmanos- também não. Eles tinham um
Deus. Quando observadores olharam esses três grupos, disseram que
eles tinham "leges", isto é, leis.
Foi no século 16 que viajantes começaram a se indagar sobre os novos povos que eles encontraram e a
discussão se iniciou. Era comumente aceito que havia alguma religião,
ou "religião", entre eles, como um
instinto. A noção de que havia no
mundo uma variedade de religiões,
no plural, se tornou comum no século 17.
Inevitavelmente, os autores que falam sobre "as religiões" tomam certa
distância de sua própria, pois a vêem
como uma entre muitas (embora
sempre achassem maneiras de afirmar que as suas eram as melhores).
Eu relaciono essa nova mentalidade
com a ascensão do Estado e com a
esperança de que ele viesse a ser um
árbitro entre católicos e protestantes
e assim garantisse a paz na Europa.
Folha - Quanto a este início de milênio, a noção de religião precisa ser redefinida?
Despland - Sim, não temos mais
confiança em fronteiras da religião,
onde ela acaba e onde começa o que
é não-religioso. A diferenciação entre sagrado e profano não parece
mais ser de muita utilidade. A noção
de sagrado está em questão, a despeito da sobrevida que Mircea Eliade garantiu para ela. Espaços sagrados são menos duráveis. Muitos
grupos prestam pouca atenção a isso. Ação e interação simbólicas se
tornam um conceito básico alternativo. Daí a importância de Marcel
Mauss. A interação é importante,
pois nela aparecem os fenômenos de
dominação e resistência.
Folha - O senhor deu, aliás, durante
sua recente visita ao Brasil, uma palestra a respeito da obra de Mauss.
Qual é a importância e atualidade
desse autor para os estudos em história da religião?
Despland - Eu acho que o legado de
Mauss está se tornando mais profundo do que o de Durkheim, por
conta da trilha que ele abriu para a
compreensão da função simbólica
[na vida social]. Mauss é especialmente importante quando você entra em questões de segunda ordem,
ou questões epistemológicas.
Folha - Como o senhor avalia as
perspectivas da Igreja Católica na
atualidade?
Despland - Não sou um vaticanista,
mas posso apontar o dado de que,
em todas as denominações cristãs,
os adeptos são em menor número, e
mais desanimados (se não integrantes apenas nominalmente), no caso
do hemisfério Norte, e em maior número, e mais fervorosos, no hemisfério Sul. A demografia do cristianismo mudou radicalmente no século
20 e podemos notar agora que, enquanto líderes teológicos do Norte
falam de ecumenismo e justiça social, as vozes hegemônicas na África
e Ásia têm ideais mais conservadores. A composição do Colégio de
Cardeais está pendendo para o Sul.
Folha - Um dos alvos constantes das
pregações do papa Bento 16 tem sido
a tendência, mesmo entre pessoas
que se dizem católicas, a estarem
abertas a "combinações" subjetivas
de diferentes doutrinas, valores, mitos. Esse tipo de "pluralismo religioso
interior" pode ser refreado pela igreja? Representa para ela uma ameaça
real?
Despland - Abertura a combinações subjetivas: um bom argumento.
A igreja, ao longo de sua história, lidou com isso de modo muito eficaz.
Quando, no século 4º, cristãos perfeccionistas foram para o deserto para levar uma vida ascética, a igreja
organizou monastérios para domá-los, cooptá-los. Quando no século 13
são Francisco e são Domingos falaram da pobreza, eles também foram
trazidos para ordens religiosas.
Essa tática não funcionou com os
protestantes do século 16, então o
papado adotou táticas mais defensivas. O que funcionou até o fim do século 20.
Os protestantes normalmente permitiram liberdade de pensamento
para os teólogos e pluralismo em
suas igrejas. Mas as denominações
que fizeram isso estão agora em declínio. Aquelas que prosperam são
as que pregam a unanimidade. A
igreja poderá refrear essa tendência?
A sua bola de cristal é tão boa quanto
a minha.
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