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Terra de profanos
Religiosidade não terá
peso no futuro governo
dos EUA,
não importa
quem seja
eleito
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ROBERTO ROMANO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Sem precisar de George W. Bush, Barack
Obama ou John
McCain, os EUA viveram uma história iniciada com a Reforma, que alterou os nexos entre poder político e religioso.
Antes de Lutero o papado era
a única instituição superior às
nacionalidades e reinos. O sumo pontífice exigia a plenitude
dos poderes na "respublica
christiana", indivisa, em tese.
Semelhante utopia tem curta
vida, sua derrubada começa
nas lutas contra o papa conduzidas por Filipe, o Belo, e o inglês Henrique 2º. Em vão se
proclama o predomínio sacerdotal nas bulas "Clericis Laicos" (1296) e "Unam Sanctam"
(1302). Surge o abismo entre a
república cristã e as monarquias. O culto do soberano laico, em especial na era de Richelieu e Luís 14, sacraliza o monarca, posto acima das ordens
nobiliárquicas e do povo.
Para os apologistas do Estado, as Escrituras garantem que
os reis são divinos. Além de
Paulo apóstolo ("Romanos", 13,
1), sua base doutrinária vem do
salmo 82, 6, traduzido na Bíblia
do rei Tiago: "I have said, ye are
gods" [Eu tenho dito, vós sois
deuses].
O mesmo governante afirma:
"A monarquia é coisa suprema
na terra; porque os reis (...) são
denominados deuses pelo próprio Deus. (...) Deus tem o poder de criar ou destruir, fazer
ou desfazer segundo seu arbítrio, dar vida ou enviar a morte,
a todos julgar e não responder
diante de ninguém" ("Do Divino Direito dos Reis").
Imigrantes
É por temer tal doutrina que
os "pais peregrinos" seguem
para o continente americano.
Ali buscam políticas não hierocráticas, como a do catolicismo
romano, e que não divinizem os
ocupantes do poder, como as
absolutistas. Os imigrantes,
instauradores da vida pública
na América, são contemporâneos dos Levellers e Diggers
[grupos puritanos ingleses].
Para eles é preciosa a lição de
John Milton: "Se o rei ou o magistrado provam ser infiéis aos
seus compromissos, o povo é liberto de sua palavra" ("A Posse
dos Reis e Magistrados").
Dos pensadores que instauram a nova república, grande
parte é cristã, mas oposta à fusão entre fé e poder público,
por um motivo simples: se o governante usa a religião para se
impor e foge da racionalidade
jurídico-política, rapidamente
ele exigirá obediência à sua
pessoa, não às leis ou aos mandamentos celestes.
A tentação de Tiago 1º não
morreu com o rei e poderia ser
retomada por demagogos e
messias, incomodados pelos
princípios da "accountability",
que fingiriam ligações diretas
com a divindade.
O documento gerador do Estado em 1787 afirma o seu caráter: "Nenhum exame religioso
será exigido como qualificação
para qualquer ofício ou fé pública sob os Estados Unidos"
(art. 6º, cláusula 3).
"O Congresso não poderá fazer nenhuma lei sobre o estabelecimento de religião ou proibindo o seu livre exercício; ou
diminuindo a liberdade de palavra ou de imprensa; ou o direito do povo de se reunir pacificamente e enviar petições ao
governo para corrigir erros".
("Bill of Rights", conjunto de
emendas à Constituição, art. 1º)
Muitos líderes do novo Estado tinham sólidos vínculos com
as luzes francesas e seguiam as
bases do direito natural, mais
do que os mandamentos eclesiásticos.
No século 20, sobretudo durante a Guerra Fria, o mundo se
divide entre os EUA e a União
Soviética, potência atéia. Recrudesce entre muitos norte-americanos a cruzada contra os
"inimigos da fé cristã".
Conversa com o divino
Caída a União Soviética, a
Casa Branca, com aplausos de
líderes mundiais como o papa
João Paulo 2º, assume várias
doutrinas e práticas que negam
as bases históricas e jurídicas
da Constituição.
George W. Bush radicaliza tal
atitude e forja sua imagem como privilegiado interlocutor do
ser divino. Trata-se de um renascimento caricato de Tiago
1º. O governo Bush, não por
acaso, é refratário à "accountability" diante da opinião pública e demais poderes do Estado.
Bush exacerba o segredo de
Estado com base no "Patriot
Act", que esgarça os elementos
do "Bill of Rights" referidos acima. É certo que os seus opositores se calaram ou deram apoio
ao estupro dos direitos civis.
Fora da sacristia
Mas os sucessores de Bush
são alheios à teocracia e ao
messianismo cristão.
Obama e McCain já pagaram
um caríssimo "lip service"
[apoio verbal] aos radicais (como o reverendo Wright) ou
conservadores (a pesada vice
de McCain é significativa). Os
dois não se mostram dispostos
a mergulhar no oceano fundamentalista onde Bush se afoga.
Eles precisam atenuar uma
crise econômica cuja extensão
não é revelada pelos profetas.
Seja qual for o vitorioso, sua
tarefa é unir a sociedade num
projeto comum, conhecido
desde a Roma Antiga como "salus populi", tema para a razão
de Estado, e não conversa de
sacristias.
ROBERTO ROMANO é professor titular de ética
e filosofia política na Universidade Estadual de
Campinas (SP) e autor de, "Moral e Ciência - A
Monstruosidade no Século 18" (Senac SP).
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