São Paulo, domingo, 02 de novembro de 2008

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+Sociedade

Caindo na real


O economista Paul Singer explica como a crise financeira contamina o dia-a-dia do cidadão e propõe soluções para evitar seus efeitos

PAUL SINGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

É nos momentos de crise financeira que a opinião pública se volta a este tema: como se relacionam o mundo financeiro, com suas vicissitudes especulativas, e o mundo da economia real.
São dois mundos distintos: no primeiro circulam valores monetários que são créditos; no segundo circulam bens e serviços que satisfazem necessidades de seres humanos.
Estes últimos são mercadorias -produtos destinados à venda, sendo também valores monetários. A diferença entre ativos financeiros e mercadorias é que os primeiros são virtuais, só valem como promessas de ganhos futuros, enquanto os últimos são reais, prontos para serem utilizados ou consumidos.
As finanças prestam serviços à economia real: recebem em depósito a poupança de entidades (famílias, empresas e governos) e lhes oferecem empréstimos. Bancos, fundos e congêneres recolhem o dinheiro sobrante dessas entidades, que têm poupanças, e o emprestam a outras, que necessitam de dinheiro.
O que efetivamente importa é que os bancos podem emprestar mais dinheiro do que captaram do público ou de outros intermediários. Eles podem fazer isso porque gozam de crédito por parte do público, que aceita em pagamento transferências de depósitos bancários.
Cheques e cartões eletrônicos são ordens de pagamento que o cliente do banco emite para que as dívidas que ele faz em lojas, restaurantes etc. sejam pagas pelo seu banco.
A grande maioria das transações dos agentes da economia real é liqüidada por meios de pagamento bancários. Só transações de pouco valor são liqüidadas por meio da moeda oficial emitida pelo Banco Central ou pelo Tesouro do governo nacional.
O valor dos créditos concedidos por um banco durante um período não tem que equivaler ao valor novo depositado por clientes que poupam; pode ser maior, igual ou menor.
Quando é maior, o banco criou mais meios de pagamento do que absorveu.
Ao conceder um crédito a um cliente, o banco acrescenta o valor do crédito ao depósito do cliente. Este usa o cartão de crédito ou cheque para transferir o valor acrescentado ao seu saldo aos seus fornecedores de equipamentos, instalações, matérias-primas etc., que são os elementos materiais do seu investimento. Os fornecedores depositam imediatamente o dinheiro recebido em suas contas bancárias.
Quando todos os bancos, no afã de ganhar mais, ampliam os empréstimos a agentes da economia real, os depósitos em todos eles aumentam, na medida em que os créditos fluem das contas dos devedores às dos credores.

Euforia contagiante
O efeito importante é sobre a economia real, que se expande à medida que os investimentos crescem. A expansão se auto-alimenta, pois os desempregados que conseguem trabalho aumentam os gastos, o que suscita novos investimentos, a ampliação da produção e a criação de mais empregos.
Os bancos ganham dinheiro fazendo empréstimos, pelos quais cobram juros. Os serviços que prestam aos depositantes só lhes dão despesas. Os bancos precisam dos depósitos dos poupadores porque constituem o lastro dos empréstimos que fazem.
O Banco Central exige que os bancos mantenham certa proporção de seus depósitos à vista em moeda oficial, que serve para cobrir eventuais saques dos depositantes.
Além disso, os bancos são obrigados a deixar no Banco Central uma proporção maior dos seus depósitos, o que limita sua capacidade de conceder novos empréstimos.
Dessa forma, o Banco Central evita que o crescimento da economia real ultrapasse certo limiar, a partir do qual ele teme que pressões inflacionárias se intensifiquem.
A fase de alta do ciclo se origina mais freqüentemente na economia real do que no âmbito financeiro. Ela é desencadeada geralmente por inovações tecnológicas de grande impacto sobre a produção ou o consumo ou por políticas de transferência de rendimentos à população mais pobre.
Tanto a realização de inovações tecnológicas como o aumento dos gastos dos beneficiários da redistribuição exigem investimentos vultosos.
As empresas que investem aumentam a demanda por empréstimos, o que normalmente evoca resposta favorável dos bancos e fundos. A alta cíclica da economia real entusiasma os banqueiros, convictos de que os riscos de que os empréstimos deixem de ser pagos se tornaram insignificantes.
À medida que as expectativas otimistas se realizam, o entusiasmo cresce, até se tornar euforia, que é contagiante.

Batendo no teto
Enquanto o potencial das inovações tecnológicas ou das políticas redistributivas não estiver esgotado, a fase de alta do ciclo se eleva cada vez mais. Até que ela bate num teto.
Este pode ter por causa a expansão insuficiente da oferta de mercadorias, limitada por pontos de estrangulamento, de modo que a pressão da demanda resulta em aumentos de preços. O perigo de inflação pode levar o Banco Central a abortar a alta cíclica por meio da elevação dos juros.
Ou o teto em que bate a alta pode ser a superprodução de mercadorias diante da saturação da demanda.
Esse foi o caso da bolha imobiliária, cujo estouro originou a atual crise financeira. A demanda por habitação costuma ser grande, mas, quando finalmente se esgota, a quantidade de construções em andamento está no auge.
Interrompê-las pode ser extremamente custoso, mas levá-las a cabo implica em mais investimentos numa mercadoria que, quando pronta, provavelmente se tornará invendável, a não ser que seja liqüidada por preço muito abaixo do custo.
O estouro de uma bolha imobiliária atinge em cheio as finanças porque empréstimos hipotecários têm elevada garantia material -qual seja, os próprios imóveis.
Até a bolha atingir seu apogeu, esse setor atrai enorme quantidade de dinheiro, a ser emprestado às famílias que adquirem a casa própria. Quando a oferta de residências ultrapassa a demanda solvável, o preço tanto dos terrenos como das construções despenca, acarretando grandes prejuízos aos incorporadores e a quem os financia.
Nos EUA, durante a euforia, instituições financeiras fizeram empréstimos à população de baixa renda, tomando por base o valor crescente dos imóveis que estavam comprando.
Esses créditos foram em seguida vendidos ao público pelas instituições financiadoras, que os empacotaram com outros títulos, numa manobra conhecida como "diluição de riscos".
A operação foi um sucesso: títulos no valor de muitos bilhões de dólares foram adquiridos por numerosos bancos de investimento, não só dos EUA, mas também da Europa.
Quando a bolha estourou e os preços das residências sofreram forte queda, eles ficaram menores que as dívidas hipotecárias assumidas por milhões de famílias pobres. O prejuízo causado pelo estouro da bolha foi assim colocado sobre os ombros de quem menos podia suportá-lo.
Os devedores deixaram de honrar suas dívidas, arriscando-se a perder suas casas e apartamentos, cada vez mais desvalorizados. O prejuízo bilionário da crise imobiliária voltou então ao colo dos bancos, que também se mostraram incapazes de suportá-lo. Um grande banco norte-americano faliu e diversos outros foram provisoriamente estatizados, tanto na América do Norte como na Europa.
O que está ocorrendo ilustra bem como uma crise na construção de residências -portanto, na economia real- provoca uma crise que rapidamente atinge a maioria dos intermediários financeiros no mundo todo, com a conseqüente desaparição do crédito à economia real.
Uma crise setorial e nacional, ao contaminar as finanças mundiais, poderá, se não for debelada logo, lançar a economia real numa recessão global.
Neste momento, os Estados nacionais estão empenhados em evitar esse desenlace, mas, apesar dos bilhões que estão sendo injetados nos bancos, o pânico ainda não cedeu.
A globalização financeira, produto da liberdade total de circulação dos capitais sobre as fronteiras nacionais de numerosos países, corrói o poder do Estado nacional sobre as finanças do seu país.
O sistema financeiro impõe seus interesses, pois, se o governo os ferir, ele se retira do país, comprando dólares e euros com a moeda nacional, que por isso se desvaloriza.
Isso faz com que as importações encareçam e a produção e o emprego despenquem, pela falta de crédito.
Trata-se de circunscrever a crise financeira, para evitar que ela venha a paralisar a economia real, o que teria graves conseqüências sociais e políticas, pois ela começa por lançar no desemprego e, logo mais, na miséria uma parcela substancial da sociedade.
Uma crise da economia real é muito mais difícil de reverter por políticas de Estado, porque seria necessário criar novas atividades capazes de reinserir milhões de pessoas na economia mediante políticas de fomento e incentivo que somente poderão ser definidas por um processo prolongado de tentativa e erro.
A grande crise de 1929 levou uma década para ser superada e, mesmo assim, graças ao "auxílio" de uma guerra mundial.

Reformulação
A crise da economia real poderá ser prevenida desde que sejam adotadas políticas capazes de resolver em curto prazo a crise financeira e que lancem os fundamentos de uma nova estrutura institucional, capaz de evitar novas crises financeiras no futuro.
O Estado deveria se apossar dos bancos falidos e só então reabilitá-los com recursos do Tesouro. Se os bancos continuarem privados, é provável que o dinheiro público injetado neles seja entesourado, o que faria o pânico perdurar.
O primeiro passo deve ser a restauração da autoridade do governo nacional sobre o sistema financeiro, o que exige a revogação da liberdade dos capitais especulativos de curto prazo de entrar e sair de qualquer país, aproveitando as vicissitudes do jogo especulativo.
Além disso, é imperativo multiplicar o número e o poder dos bancos públicos, pois, não tendo a preocupação de revelar lucros elevados em cada balancete trimestral, eles podem devotar seus recursos ao interesse público, escapando do pânico que traz a recessão.
O governo federal conta apenas com os bancos públicos em sua luta para restaurar a oferta de crédito e preservar o ritmo de desenvolvimento do país.
Finalmente, o mercado de capitais teria de ser reformulado, tendo em vista não só coibir a especulação, mas também reconstruir os laços entre o investidor privado e o empreendimento em que ele é sócio.
Para viabilizar isso, seria necessário limitar o número de sócios de cada firma, para que cada um possa participar efetivamente da administração dela, pelo menos na condição de membro de uma assembléia de acionistas com influência real sobre a empresa.
Só assim a distribuição do excedente social entre os setores da economia deixaria de ser feita em alucinantes leilões diários de ações, em que todos procuram a valorização imediata de seu dinheiro, pois, como todos sabem, "time is money".


PAUL SINGER é professor titular da Faculdade de Economia e Administração da USP e secretário nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego.


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