São Paulo, domingo, 02 de dezembro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ Polêmica

Paris em brasas

O teórico da literatura Antoine Compagnon rebate capa da revista "Time" desta semana que desqualifica a cultura francesa

ANTOINE COMPAGNON

A morte da cultura francesa": esse é o grande título na capa do novo número da versão européia da revista "Time" (3/12). A edição norte-americana não considerou necessário publicar o artigo: sua abstenção confirma que, do ponto de vista da Entertainment Industry (a Time Warner também é proprietária de AOL, HBO e CNN), a cultura francesa já está bem enterrada -decididamente nula e inexistente. É uma velha arenga. Há três anos, o "London Review of Books" publicou dois artigos tonitruantes do sociólogo marxista Perry Anderson sobre "A Queda da França" (em 2/9 e 23/9/ 2004).
Don Morrison, o responsável pela edição européia de "Time", houve por bem enumerar os sintomas do mal cultural francês: 727 novos romances nas livrarias no início de 2007, mas menos de uma dúzia traduzidos nos EUA por ano; cerca de 200 filmes produzidos por ano na França, mas quase 50% das receitas de bilheteria para o cinema americano; Paris abandonada pela criação musical e pelo mercado de arte. Tudo isso apesar de um orçamento para a cultura desproporcional (1,5% do PIB, contra 0,7% na Alemanha, 0,5% no Reino Unido, 0,3% nos EUA).
Em suma, uma cultura sob alimentação intravenosa, amplamente subvencionada pelo Estado, as regiões ou os municípios, mas sem ecos além das fronteiras. As causas desse isolamento são citadas: o francês é somente a 12ª língua falada no mundo; a cultura de Estado desencoraja as iniciativas privadas; os subsídios permitem que a criação sobreviva internamente, sem enfrentar o mercado mundial; o "nouveau roman" e a teoria literária esterilizaram a ficção, embora os franceses prefiram ler romances épicos americanos.
Sem dúvida poderíamos alegar que Paris é o destino preferido dos turistas de todos os países, dos americanos em particular, que o francês continua sendo a principal língua estrangeira ensinada nos EUA (pois o espanhol não é mais uma língua estrangeira) ou que "Suíte Francesa", de Irène Némirovsky, prêmio de tradução da Fundação Franco-Americana em 2006 (eu fiz parte do júri), está há várias semanas na lista de best-sellers do "New York Times".
Três dos principais acontecimentos musicais deste outono em Nova York nos foram oferecidos por Pierre Boulez, substituindo Claudio Abbado na direção da orquestra do Festival de Lucerna na "Terceira Sinfonia" de Mahler, no Carnegie Hall; pelo pianista Pierre-Laurent Aimard, em Haydn, Mozart e Beethoven com a orquestra de câmara Mahler; e por Natalie Dessay, durante sua estréia na Metropolitan Opera em "Lucia di Lammermoor". Mas a bela contrapartida de Irène Némirovsky não recompensa a literatura viva, e Boulez não é mais um jovem. Assim, seria irracional ignorar o veredicto de nossos amigos americanos sobre a pane da cultura francesa.

Olhar para si mesmo
Vistos de além-Atlântico, depois do existencialismo e do estruturalismo, depois de Malraux, Sartre e Camus, ou Barthes, Foucault e Derrida, os artigos de Paris não inspiram mais a vanguarda intelectual. Eu mesmo leio os últimos Philip Roth, Thomas Pynchon ou Don DeLillo com mais vontade que a última autoficção de Saint-Germain-des-Prés [bairro de Paris], farsa minimalista ou ditado pós-naturalista.
Segundo Douglas Kennedy, citado pela "Time", enquanto "a ficção norte-americana trata da condição americana, os romancistas franceses fazem coisas interessantes, mas o que eles não fazem é olhar para a França".
Como as regras do jornalismo norte-americano exigem sempre "tornar positivo", o editor europeu da "Time" pelo menos nos afaga a alma na conclusão. Afinal, não fazemos às vezes bons filmes, como "Taxi", de Luc Besson, ou "Amélie Poulain"? Acontece que eu os vi (é o tipo de filme aos quais a Air France expõe os prisioneiros de seus aviões), mas eles não me dão motivos especiais para ter esperanças.
Mais seriamente, tendo acabado com o colonialismo, a França se tornou "um bazar multiétnico de arte, música e escrita das periferias e de cantos díspares do mundo não-branco", o que a torna "um paraíso para os amantes das culturas estrangeiras". Que a cultura francesa pare, portanto, de choramingar sobre sua decadência para se realimentar em suas margens, que ela se abra sem ressentimentos à globalização -essa é a recomendação da "Time". Adotemos a receita multicultural e estaremos salvos.
Mas atenção! Como metrópole da diáspora pós-moderna, como capital do mundo do século 21, Paris não será rival de Nova York, não mais que na Bolsa ou nas salas de leilões.

Romance no prelo
A saída do declínio passa pela refundação da escola, a volta à moda da leitura, a reparação do hiato entre a literatura e o mundo, a introdução do ensino artístico na escola secundária, a concorrência das universidades ou a liberalização dos assuntos culturais, como prescrevem o presidente da República e seus ministros da Educação Nacional, do Ensino Superior e da Cultura?
Talvez, mas apostemos sobretudo, para desmentir todos os Perry Anderson e Don Morrison, que o romance da França contemporânea está no prelo.


ANTOINE COMPAGNON é professor nas universidades Columbia (EUA) e Paris 4 (França). A íntegra deste texto foi publicada no "Le Monde". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves .


Texto Anterior: + Autores: Hiato de uma vida
Próximo Texto: Construção do saber
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.