São Paulo, domingo, 3 de janeiro de 1999

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O escritor inglês Anthony Burgess escreve sobre "Ulisses", de James Joyce
Caminhos para o labirinto

ANTHONY BURGESS

A odisséia de "Ulisses" é uma leitura bastante penosa. Depois de sete anos de trabalho escrevendo o livro -pobreza, doença do olho, a eclosão de uma guerra européia-, veio o inferno de tentar publicá-lo. (Mesmo, aliás, de tentar datilografá-lo: boa parte do episódio da "Circe" foi queimado pelo revoltado marido de uma datilógrafa voluntária.) Quando -impresso enfim na França e publicado por uma livraria de Paris, depois de recusado por todos os canais habituais da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos- saiu com as simpáticas cores da bandeira grega e repleto de erros tipográficos (no dia do aniversário de Joyce, em 1922), "Ulisses" começou uma inacreditável carreira de repressão, aviltamento, adulação, pirataria, queimas públicas e privadas, contrabando. (Quando colegial, consegui levar clandestinamente para a Inglaterra os dois volumes da edição das Odyssey Press, separados em seções e distribuídos por meu corpo.) Enquanto, em 1933, o juiz Woolsey determinava, em um tribunal distrital dos Estados Unidos, que "Ulisses" não era obsceno e poderia ser comprado e vendido legalmente na América do Norte, a Inglaterra ainda teria de esperar três anos por sua própria edição. Demorou muito tempo, demasiado tempo, para o reconhecimento legal de uma obra-prima. Hoje estamos longe de nos chocar com "Ulisses". Podemos tirá-lo tranquilamente das estantes da biblioteca pública ou da escola e nos maravilharmos com outras coisas que não palavras sujas e descrições de funções fisiológicas. Há um monte de coisas nele para admirarmos, mas, antes, um monte de perguntas a fazer. Muitas delas estão implícitas numa pergunta fundamental: por que afinal Joyce escreveu o livro?
"Ulisses" é um livro volumoso (933 páginas na edição da Bodley Head, de 1960), e sua extensão é uma resposta. Todo romancista quer provar para si mesmo e para os outros que é capaz de dar conta de um amplo painel. Os grandes romances do passado -"Dom Quixote", "Tom Jones", "Guerra e Paz", por exemplo- são todos bastante extensos, e é apenas numa grande extensão que os romancistas podem realizar o blasfemo desejo de rivalizar com Deus. Criar uns poucos seres humanos num contexto segmentário de vida é mais que suficiente para o artista menor, mas o artista maior quer um universo inteiro e uma humanidade inteira. Ele não pode de fato ter tudo isso -Joyce, como Blake, só foi capaz de alcançá-lo fazendo uma personagem desempenhar vários papéis-, mas pode ao menos criar uma grande comunidade humana, que é uma espécie de imagem reduzida do cosmo.
Começando com essa intenção vaga, geral e tradicional, Joyce em seguida (ou simultaneamente, ou antes) concebeu outra ambição: escrever um romance moderno não apenas para rivalizar com as obras clássicas, mas também para contê-las. O épico clássico era expansivo; o drama clássico era contrativo. Homero abrange céu, Terra, o mar e uma grande fatia de tempo; Sófocles se atém a um pequeno espaço e restringe a ação a um único dia. E assim Joyce se atém a Dublin no dia 16 de junho de 1904, mas também usa o delírio e a imaginação para conter grande parte da história humana e mesmo o Fim do Mundo. O épico e o drama gregos estão encerrados na estrutura de um romance burguês moderno.
Extensão épica e contrações da forma dramática podem ser reconciliadas não só por "conexões" imaginativas, mas também por um exame das ações das personagens e dos motivos mais detalhado do que os romancistas tradicionais acreditaram ser necessário ou decente. Bloom deve não apenas comer, mas defecar; Molly Bloom deve meditar não apenas sobre os amantes, mas também sobre como são os amantes na cama. Com painel tão amplo, nenhum detalhe humano pode ficar de fora. Mas as técnicas tradicionais para exprimir pensamentos não ditos estão destinadas a ser insuficientes. Daí o "fluxo de consciência" ou o "monólogo interior" -um interminável comentário das personagens principais sobre as informações que a vida lhes atira, mas não dito, com frequência caótico, às vezes chegando ao limiar da mente inconsciente. Esse recurso foi usado antes -por Dickens e Samuel Butler, até mesmo por aquela grande primitiva Jane Austen-, mas jamais na escala ou nos limites empregados por Joyce. Joyce, afinal, viveu na era psicanalítica: gostava de brincar com o fato de seu nome ter a mesma etimologia que o de Freud.


Trecho extraído de "Homem Comum Enfim" (Companhia das Letras).
Tradução de José Antônio Arantes.



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