São Paulo, domingo, 03 de fevereiro de 2002

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A vida entre os antros

O ANTROPÓLOGO DISCUTE O LIVRO "TREVAS NO ELDORADO", QUE DENUNCIA PRÁTICAS INCORRETAS EM PESQUISAS COM OS ÍNDIOS IANOMAMIS E SERÁ LANÇADO NESTE MÊS PELA EDIOURO

por Clifford Geertz

Estamos ingressando, nos dizem, numa era sem peso, sem atritos, na velocidade da luz, na qual todos nós nada mais seremos senão nós de endereços num fluxo infinito de pacotes de informação, mensageiros sempre correndo e constantemente assediados por todos os lados. No que diz respeito à vida acadêmica, ainda há mais falação do que realidade; deixando de lado as promessas (ou ameaças) dos e-books, das teses de doutorado descarregáveis pela rede e das caixas de entrada de mensagens transbordando até o limite, a comunicação ainda se dá num ritmo mais (ou menos) humano, de maneira mais (ou menos) política. Porém, a julgar pela enxurrada de acusações e contra-acusações on line que saudou a simples notícia não confirmada das acusações contundentes feitas por Patrick Tierney contra a prática antropológica na Amazônia venezuelana, no seu livro "Trevas no Eldorado", é possível que as coisas não continuem assim por muito tempo. Usos acadêmicos consolidados pelo tempo, tais como dar uma passada de olhos em livros antes de escrever suas resenhas, editar rascunhos antes de publicá-los e formular até mesmo polêmicas em termos de argumentos consecutivos podem muito bem estar com os dias contados, não passando de runas e relíquias de uma era em que se vivia com menos pressa. No ciberespaço é a velocidade que importa. Velocidade e volume.
A primeira notícia de que a torrente de acusações de Patrick Tierney estava a caminho chegou sob a forma de um e-mail ofegante, de seis páginas em espaço um, enviado "ao presidente e ao presidente eleito" da Associação Americana de Antropologia (AAA), duas semanas antes do lançamento previsto do livro (e alguns meses antes de seu lançamento de fato), por dois conhecidos especialistas na Amazônia e ativistas dos direitos humanos, Terence Turner, professor de antropologia em Cornell, e Leslie Sponsel, professor de antropologia na Universidade do Havaí em Manoa.


Chagnon teria encenado "guerras" artificiais entre aldeias para fins documentários, falsos combates que se convertiam em batalhas reais


"Escrevemos", disseram, "para lhes informar de um escândalo iminente que vai afetar a profissão antropológica americana como um todo aos olhos do público e suscitar intensa indignação e chamados por ação entre os membros da Associação". Eles tinham obtido de "um jornalista investigativo" provas a granel do livro, descrevendo "as ações de antropólogos e pesquisadores científicos associados (...) entre os ianomamis da Venezuela ao longo dos últimos 35 anos" -ações que, "por sua escala, suas ramificações e caráter desbragadamente corrupto e criminoso não têm paralelos na história da antropologia". Como a AAA, que iria se reunir dentro de 60 dias para seu encontro anual, "vai ser chamada pela mídia geral e por seus próprios membros a assumir posições coletivas sobre as questões levantadas (pelo livro), além de ações compensatórias apropriadas (...), quanto antes vocês (os presidentes da Associação) souberem da notícia que está prestes a estourar, mais poderão preparar-se para lidar com ela".
"O alvo central do escândalo" exposto pelo livro, prosseguiram, é o projeto de estudo de longo prazo dos ianomamis patrocinado pela Comissão de Energia Atômica como parte de seus esforços pós-Hiroshima para determinar os efeitos da radiação sobre sujeitos humanos, organizado em meados dos anos 1960 "pelo geneticista humano James Neel e do qual tomaram parte Napoleon Chagnon, Timothy Asch e diversos outros antropólogos". Tierney "apresenta evidências convincentes" de que Neel (que dirigiu os estudos da radiação no Japão, no pós-guerra) e Chagnon (provavelmente o mais conhecido e com certeza o mais polêmico estudioso dos ianomamis) "exacerbaram gravemente, e provavelmente originaram, a epidemia de sarampo que matou "centenas, possivelmente milhares" (...) de ianomamis" em 1968, ao inoculá-los com uma vacina de vírus ativo, superada e "contra-indicada", e, em seguida , "se recusaram a fornecer qualquer assistência médica aos ianomamis doentes e moribundos, sob ordens explícitas de Neel", que, interessado em testar suas "teorias eugênicas extremas" numa sociedade humana "natural" e "intocada", "insistiu com seus colegas em que eles estavam ali apenas para observar e registrar a epidemia, não para fornecer assistência médica".
Ademais, Chagnon, com Asch -cineasta etnográfico que trabalhou com ele por cerca de dez anos, até os dois terem um desentendimento amargo e repleto de recriminações-, teria encenado "guerras" artificiais entre aldeias para fins documentários, falsos combates que frequentemente se convertiam em batalhas reais, acompanhadas de derramamento de sangue. Juntamente com Neel, Chagnon trabalhou em conluio com "políticos venezuelanos sinistros interessados em obter o controle das terras dos ianomamis para a garimpagem ilegal de ouro".
E, por conta própria, ele teria alterado e mexido em seus dados, boa parte deles, na realidade, tão inventados quanto seus filmes, para que fundamentassem sua visão "neo-hobbesiana", sociobiológica, da vida dos ianomamis como sendo brutal, violenta e congenialmente assassina: "Essa história digna de pesadelo -um verdadeiro coração das trevas antropológico, superando até mesmo o que poderia imaginar um Josef (sic) Conrad (mas não, quem sabe, um Josef Mengele) (...) Este livro deve abalar a antropologia até suas próprias bases (...) Ele será visto (com razão, em nossa opinião) pelo público e pela maioria dos antropólogos como algo que submete a disciplina toda a julgamento e deve levar o campo a compreender de que modo os protagonistas corruptos e depravados puderam espalhar seu veneno por tanto tempo, ao mesmo tempo em que eram tratados com grande respeito em todo o mundo ocidental e que gerações de estudantes universitários enxergavam suas mentiras como a substância introdutória da antropologia".

E caso tudo isso não fosse o bastante para fazer os presidentes concentrarem sua atenção: "A título de indicativo e também de vetor de seu impacto público, fomos informados de que a revista "The New Yorker" planeja publicar um trecho extenso da obra, em data escolhida para coincidir com o lançamento do livro -1º de outubro de 2000 ou por volta dessa data".

Memorando confidencial
Embora Turner e Sponsel tenham alegado, mais tarde e sem convencer a quase ninguém, que sua carta tinha sido um memorando confidencial e que a intenção não era que fosse amplamente circulada, o fato de ela ter sido eletronicamente divulgada a colocou instantaneamente à disposição de praticamente qualquer pessoa que estivesse ao alcance do comando de "encaminhar" de qualquer outra pessoa, de modo que a gritaria de protesto, ultraje, regozijo e "Schadenfreude" foi tremenda e virtualmente instantânea. Ela ecoou pela mídia atrás de manchetes berrantes: "Antropologia macha" ("Salon"), "Antropologia ingressa na era do canibalismo" ("The New York Times"), "Antropólogos agem como cães raivosos" ("The Nation"), "As consequências da incorreção antropológica" ("The National Review"), "Antropologia é sinônimo de maldade?" ("Slate"), "Ianomamis: o que fizemos a eles?" ("Time"), ""Cientista" matou índios da Amazônia para testar teoria racial" ("The Guardian"). "The Chronicle of Higher Education", "Science", "US News", "USA Today", UPI, Associated Press, "The Los Angeles Times Magazine" e Reuters publicaram matérias assinadas sobre o assunto, algumas das quais on line, assim como a "Forbes", essa "ferramenta capitalista", que estendeu seu olhar para além da antropologia -"uma mentalidade sedenta de causas ativistas"- para abranger também a sociologia e a psicologia: "As pessoas se tornam sociólogas porque odeiam a sociedade e se tornam psicólogas porque se odeiam". Além da mídia, diversas instituições interessadas, vários comentaristas e sociedades diferentes enviaram saraivadas de críticas em uma direção ou outra. A Universidade de Michigan, onde Neel lecionara por quase 50 anos (ele morreu em fevereiro de 2000, aos 84 anos, laureado com praticamente todos os prêmios possíveis, exceto, inexplicavelmente, o Nobel), colocou on line uma "investigação" de 24 páginas, acusando Tierney de se ocupar com "uma agenda anticiências'". Uma equipe de "psicólogos da evolução" (ou seja, sociobiólogos) da Universidade da Califórnia, em Santa Barbara, da qual Chagnon se aposentara pouco tempo antes, divulgou na rede um relatório "preliminar" de 70 páginas intitulado "The Big Lie" (A Grande Mentira), tachando as alegações de ignorantes, risíveis, feitas de má-fé e "intencionalmente falsas". Bruce Alberts, presidente da Academia Nacional de Ciências e amigo de longa data de Neel, contribuiu com um comunicado em que atacou Tierney por fazer "um grave desserviço a um grande cientista e à própria ciência". O dr. Samuel Katz, co-criador da vacina contra sarampo usada por Neel, divulgou uma mensagem aberta de e-mail para ser exposta "em qualquer lugar ou de qualquer maneira que (...) possa ajudar a combater o assassinato póstumo de Jim Neel", dizendo que a vacina não era "virulenta", não poderia provocar sarampo e nunca o fizera, em milhões de aplicações. (Terence Turner, dizendo que agora encontrara tempo para consultar um especialista de sua escolha e, também, possivelmente, de recobrar o fôlego, retirou a parte de sua acusação que falava em "exacerbaram gravemente, e provavelmente originaram, a epidemia de sarampo" e pediu desculpas a Katz -"agora que tive uma chance de pesquisar o assunto eu mesmo, concordo inteiramente com você".) Os colegas cineastas de Asch correram para negar que ele alguma vez tenha encenado alguma coisa, na Amazônia ou em qualquer outro lugar (também ele já tinha morrido -em 1994, de câncer-, sugerindo, quando estava perto do fim da vida, que seus filmes sobre os ianomamis induziam o espectador ao erro e deveriam ser retirados de circulação).

Batalha declarada
Com a publicação do "trecho ampliado" na "The New Yorker" e de um ataque febril a ele e à revista por divulgá-lo, publicada na "Slate" por John Tooby, principal autor do relatório "A Grande Mentira", acrescidos de uma resposta instigante dos editores da "The New Yorker", também reproduzida na "Slate", a batalha foi declarada abertamente.


O problema era que os "antros" concebiam o objeto de seus estudos não como um povo, mas como população; os ianomamis eram um grupo de controle de uma pesquisa centrada em outro lugar


Faltava apenas a Associação Americana de Antropologia se expressar de alguma maneira, e sua resposta foi dada, com extrema falta de clareza e muita discussão carregada entre diferentes partes, em seu encontro que teve lugar em San Francisco, em meados de novembro de 2000. Duas sessões plenárias foram realizadas em noites sucessivas, ambas repletas de centenas de antropólogos, jornalistas, acadêmicos visitantes e, já que se estava na Califórnia, agitadores de passagem. A primeira consistiu em um comitê de sete especialistas -um epidemiologista, um imunologista, um especialista em ética médica, um ex-estudante do laboratório de Neel e atual "pesquisador científico" no Brasil, a diretora do Departamento de Assuntos Indígenas da Venezuela, ela mesma de etnia indígena waru, um defensor designado de Chagnon (o próprio Chagnon, isolado no norte do Michigan, analisando suas opções de ação, se negou a participar) e, perto do fim da mesa, com aparência distraída e desligada ou, quem sabe, confusa, ao longo de quase três horas de ataques ininterruptos, Patrick Tierney. Cada um dos outros participantes exceto a indígena, que chamou a atenção para a ausência de vozes indígenas na discussão e pediu a participação ianomami em qualquer inquérito futuro, pronunciou que as acusações formuladas por Tierney sobre uma epidemia induzida pela vacinação eram falsas e caluniosas e que sua "abordagem era anticientífica", uma ameaça aos programas de assistência médica em todo o mundo. Tierney respondeu calmamente que não era contra nem a vacinação nem a ciência, que compreendia ter escrito um livro "que abala" e que muitas pessoas teriam dificuldade em aceitar e que esperava que o pessoal de Santa Barbara e Michigan analisasse a obra de Chagnon tão minuciosamente quanto vasculhara a sua. Possivelmente por perceber que estava em minoria, ele mais ou menos parou por aí. A sessão da noite seguinte, na qual cerca de 30 pessoas -incluindo Turner e Sponsel, mas não Tierney, que já partira para o circuito de entrevistas de Berkeley a Boston- falaram por cinco minutos cada uma, não chegou a ser mais esclarecedora, já que ninguém havia lido o livro, que fora lançado, finalmente, apenas naquele mesmo dia. No final, o presidente e o presidente eleito fizeram o que pessoas como eles geralmente fazem sob essas circunstâncias: pediram a um presidente passado que solicitasse uma comissão que estudaria a validade de ser formado um comitê oficial de inquérito.

O livro, além das polêmicas
Seja ele o que for, o livro de Tierney -em três partes, 18 capítulos, 398 fontes e 1.599 notas de rodapé-, que deve ser o único a já ter sido indicado para um prêmio literário importante (o National Book Award, categoria não-ficção) -enquanto seu autor, tendo retirado as provas a granel de circulação, ainda o estava revendo para combater ataques já publicados-, é repleto de valores de produção. Composto de uma série de peças frouxamente interligadas -"Selvagens, Cães de Guerra", "Assassinar e Multiplicar"-, conta sua história (excetuando algumas excursões pela estatística e algumas pequenas discussões médicas) em grande medida por meio do ambiente, dos personagens e de encontros dramáticos como "Epidemia", "Índios Atômicos", "As Guerras Napoleônicas" e "Incidente no Jardim da Fome".
Um aventureiro político, ambientalista e garimpeiro (sem falar em inventor daquela "faca de exploração e sobrevivência") venezuelano desce na selva de pára-quedas para separar dois antropólogos franceses que, por alguma razão, querem matar um ao outro. A amante do presidente da Venezuela, "vestida de branco" e usando "botas enormes e um imenso chapéu branco", passeia de helicóptero pela terra indígena, levando jornalistas americanos, agentes de viagens e outras celebridades à procura de "aldeias virgens" e "primitivos autênticos". Vestindo apenas cuecas, enfeitado com penas, cantando, dançando e totalmente drogado com alucinógenos locais, Chagnon quebra flechas em cima da cabeça enquanto "mata" ritualmente um menino apavorado. Há haréns homossexuais, massacres em garimpos, histórias de cativeiro, xamãs que devoram a alma de suas vítimas, invasões guerrilheiras, quatro tipos de missionários e a agonia de morte de uma índia e seu filho recém-nascido, tranquilamente filmada por uma equipe de televisão britânica. E tudo é acompanhado por comentários furiosos do autor -oraculares, condenatórios, compreensivos e implacáveis.
"No final, os ianomamis concluíram que Chagnon simplesmente queria se aproveitar deles. Queria controle total dos filmes, do sangue e do orçamento e pretendia lhes dar apenas migalhas de sua rica mesa. O homem que, no passado, chegara a incorporar os temíveis espíritos do urubu agora fazia seu helicóptero descer no meio de aldeias indígenas, na companhia do maior garimpeiro da Venezuela."
"Infelizmente (Neel) levou suas crenças e seus experimentos com ele para a floresta. Ele e seus discípulos eugênicos imbuíram a natureza impessoal da evolução de um animus pessoal: a seleção natural virou egoísta, assassina, cruel e traiçoeira. Médicos treinados pela Comissão de Energia Atômica ministravam aos ianomamis um rastreador radioativo e uma vacina que era potencialmente fatal para pessoas com imunidade comprometida. Os cientistas continuavam a filmar e a coletar sangue, em meio às epidemias."
"A tentativa (de Chagnon) de retratar os ianomamis como arquétipos de ferocidade seria patética, não fossem suas consequências políticas -as distorções fabulosas que esse mito perpetrou no campo da biologia, da antropologia e da cultura popular. (...) Assim como as idéias de Margaret Mead sobre liberdade sexual e educação infantil abriram caminho até as discussões de políticas públicas, os ianomamis ferozes descritos por Chagnon acabaram sendo vistos, por alguns cientistas sociais, como provas de que a competição implacável e a seleção sexual não podem ser eliminadas por leis criadas por idealistas que visam a fazer o bem. Os ianomamis seriam os guerreiros frios que nunca chegaram a sair do frio.
Acusações duras exigem provas contundentes ou, na ausência delas, pelo menos provas em grande volume. A abordagem adotada por Tierney para compilar essa massa de evidências -projeto que, segundo ele, levou 11 anos, boa parte dos quais in loco, mapeando itinerários, entrevistando índios e lendo relatórios dos postos de missões- consistiu em rastrear implacavelmente os complicados e obscuros feitos de seus principais suspeitos, Neel e Chagnon, entre 1966 (quando Neel primeiro chegou à região do rio Orinoco, com seu projeto nas mãos) e 1995, quando Chagnon finalmente deixou a região, depois de ter sido declarado persona non grata definitivamente (ele já tinha sido expulso em pelo menos duas ocasiões anteriores).
O resultado é desigual, em muitas partes vago ou pouco substancial e em outras, conforme alguns críticos, pura e simplesmente injusto. Mas, à medida que as instâncias se acumulam e suas implicações começam a ser compreendidas, a coisa toda começa a fazer sentido, de algumas maneiras estranhas. Seja o que for que causou a epidemia de sarampo (e vale notar que essa questão tem um papel muito menor no livro do que nas discussões sobre o livro), é apresentado um argumento segundo o qual alguma coisa deu seriamente errado na relação entre esses resolutos e confiantes "cientistas", com suas máquinas fotográficas, seus frascos, suas seringas e seus cadernos, e os "nativos" acossados, perplexos e perseguidos, de quem eles tentavam tirar informações. Alguma coisa nesse encontro foi objeto de uma percepção profunda e mutuamente equivocada.
"Por que esses "antros" querem tanto nos estudar?", indagou um índio que os observara trabalhando durante 30 anos e se recordava de ter corrido para se esconder na floresta, gritando, quando eles primeiro chegaram, e quase desejava ter permanecido assim. "Eles têm cérebro, os ianomamis têm cérebro. Eles têm dois olhos, os ianomamis têm dois olhos. Eles têm cinco dedos, os ianomamis têm cinco dedos. Por que se interessam tanto em nos estudar?"
O problema não eram apenas os milhares de amostras de sangue e urina, os misteriosos rastreadores de iodo radioativo ou os medicamentos e inoculações mal explicados, que pareciam mais se fazer acompanhar de doenças do que curá-las. Nem tampouco era a prática dos visitantes de registrar histórias reprodutivas que exigiam a revelação de nomes pessoais, uma questão tão profundamente tabu e emocionalmente perturbadora para os índios que, em dado momento, quase levou Chagnon, que era impiedoso nesse ponto, a ser morto. Também não era a cuidadosa tabulação de assassinatos, assassinos e vítimas, o colocar de famílias rivais ou chefes de aldeias concorrentes uns contra os outros com a finalidade de fazer vídeos, ou o subornar de membros da tribo com facões e machados de aço, de vez em quando até mesmo com espingardas -todas elas intervenções profundamente desestabilizadoras numa cultura de aldeias que ainda operavam com madeira e barro.


O contato com antropólogos e seus críticos, por mais difícil que possa ter sido lidar com ambos, certamente é uma mudança histórica apenas pequena numa curva muito grande


Não era nem mesmo o plano grandioso (abortado, felizmente, quando o presidente da Venezuela foi derrubado e sua maravilhosa amante fugiu do país) de Neel, Chagnon e seus aliados garimpeiros e caçadores de turistas de "transformar a terra dos ianomamis na maior reserva privada do mundo", uma estação de pesquisas e "biosfera" de 6.000 milhas quadradas administrada por eles mesmos. O problema era que os "antros" (e os "médicos"), reducionistas até a alma, concebiam o objeto de seus estudos não como um povo, mas como uma população. Os ianomamis, que, de fato, possuíam os cérebros, olhos e dedos de praxe, eram um grupo de controle de uma pesquisa centrada em outro lugar.
Neel, que tinha dos índios uma espécie de idéia romântica -corajosos, viris, diretos, vivazes e não corrompidos pelos apetites civilizados- própria de pessoas que não tiveram muito contato com eles, exceto por vê-los representar, foi até os ianomamis com sua hipótese já pronta. Sendo o mais próximo que se poderia encontrar de uma comunidade humana "intocada", "não aculturada" e "natural" ainda existente, os últimos representantes de nossa condição ancestral, as forças fundamentais que movem a evolução humana deveriam ser mais facilmente discerníveis entre os ianomamis, pensava, do que entre as populações modernas. Em especial, pensava, deveria ser possível identificar "uma associação clara, pelo menos entre os homens, entre "habilidade" e desempenho reprodutivo, resultado da fertilidade maior dos líderes ou chefes de aldeia". Foi a esse programa, "a busca do gene da liderança", com o qual Chagnon, na época estudante universitário em busca de um tema para sua tese, decidiu associar-se e associar sua carreira. Neel escreveu:
"Para esses estudos, o antropólogo cultural indispensável passou a ser Napoleon Chagnon. Napoleon (...) me procurou em Ann Arbor (...) e já tinha ouvido falar em nosso programa em desenvolvimento. Em virtude dos contatos que eu já tinha feito, pude facilitar sua entrada no campo; ele, por sua vez, pôde reunir os elementos das aldeias que eram fundamentais para nosso trabalho. Passamos pela mesma doutrinação relativa às nuanças da genética... Quem está familiarizado com os escritos de Napoleon sobre os ianomamis sabe quão bem as aulas deitaram raízes."
Bem até demais. Foi a tentativa de comprovar a conjectura darwiniana de Neel (se queremos ou não chamá-la de "eugênica" depende das definições) de que a masculinidade, a violência, a dominação e a apropriação de mulheres são seletivamente ligadas na sociedade tribal por meio da fertilidade diferencial dos chefes de aldeia e, portanto, que a guerra e a desigualdade são forças motrizes na separação entre o Homo sapiens e outros primatas, que trouxe problemas a Chagnon, "o antropólogo indispensável". Ele passou um quarto de século, em campo e fora dele, tentando desesperadamente encontrar evidências que fundamentassem a conjectura de Neel, contando, medindo, fotografando e, possivelmente, estimulando a violência, às expensas de sua própria percepção mais nuançada, imediata, finamente detalhada e, sobretudo, pessoalmente observada daquilo que eram os ianomamis, um povo que não era tão feroz quanto dotado de grande poder de recuperação. O etnógrafo, o conhecedor das particularidades humanas, o celebrante do especial pouco a pouco desapareceu nas visões totalizadoras de Neel e, mais tarde, nas de E.O. Wilson. Como seu xará, Chagnon se tornou vítima de uma hipótese.
Existe um quê de patético em tudo isso. Podemos nos solidarizar com a difícil situação de Chagnon. Ou poderíamos, se ele não tivesse, com o passar do tempo e o aumento das críticas, se tornado cada vez mais extremo em seus pontos de vista, cada vez mais rígido, beligerante e autocelebratório. Todos que o questionavam, questionavam seu trabalho ou questionavam seu darwinismo social -e, hoje, eles já incluem quase todos seus colegas que trabalharam na Amazônia- foram tachados de "marxistas", "mentirosos", "antropólogos culturais da esquerda acadêmica", "aiatolás", "corações despedaçados politicamente corretos", "pacifistas", "antropólogos de pulso fraco e com medo de enfrentar a Igreja" e "moralizadores pós-modernos e anticientíficos" que advogam concepções do estilo "nobre selvagem" da vida primitiva. Ele se desentendeu com muitos de seus alunos, com Asch e no final, ao que parece, até mesmo com Neel. Ao final, ele se aposentou precocemente, aos 62 anos, retirando-se para sua Sta. Helena particular, no norte do Michigan, para sonhar com a reconquista e a vingança:
"Não se vê sua casa, da estrada, por causa das árvores; é um retiro ideal para quem quer privacidade. Mas Chagnon transformou o pequeno escritório ao lado da porta de frente numa sala de guerra. Sob um retrato de Bonaparte, o antropólogo combate para rechaçar as acusações de Tierney, revendo anotações antigas e organizando seu apoio entre antigos alunos e colegas solidários. E.O. Wilson lhe telefona dia sim, dia não. Richard Dawkins [do "gene egoísta'" e Steven Pinker [do "instinto da língua'" o apoiaram publicamente. A Universidade da Califórnia em Santa Barbara e a Universidade do Michigan mantêm sites divulgando refutações dos argumentos de Tierney, ponto por ponto. "Estou considerando a possibilidade de tomar medidas legais, diz Chagnon" ("National Review Online").
Durante a ocupação alemã da França, André Gide publicou -e foi autorizado a publicar pelo fato de ser André Gide- uma série de "entrevistas imaginárias" na imprensa pública, comentando, de forma oblíqua, esopiana, diversos aspectos do cenário literário, político e cultural. Em uma delas, ele discute a questão, na época candente, da suposta responsabilidade dos "intelectuais" pela queda da França e conclui com uma parábola marcante. Um barco a remo está amarrado à margem de um rio, já bastante fundo na água. Entram nele, sucessivamente (se me recordo bem), um político gordo, um general alto e recoberto de medalhas, uma senhora imensa e um capitalista inchado. A cada um que sobe no barco, este afunda um pouco mais, até que está com a água pela amurada. Finalmente entra um clérigo magro como um palito e o barco afunda. Todos os outros se viram e apontam para ele: "É ele o culpado! Foi ele quem causou o desastre!".
Em vista de tudo o que vem acontecendo aos ianomamis no último meio século, o contato com antropólogos e seus críticos, por mais difícil que possa ter sido lidar com ambos, de vez em quando, certamente é uma mudança histórica apenas pequena, um ponto muito pequeno numa curva muito grande. Esses 20 mil indígenas foram atirados no meio da maior e mais predatória corrida ao ouro da história. As florestas que os moldaram e sustentaram foram atacadas por madeireiras internacionais, levando fome e desnutrição a seus habitantes. Eles foram evangelizados intensivamente, são governados por dois Estados-nação energicamente hispanizadores, dos quais o melhor que podiam esperar era dó e falta de atenção, e se tornaram, ou estão a caminho de se tornarem, essa mais mera das meras locações: um destino turístico. E, nesse percurso, foram acometidos de bem mais do que sarampo, que, por mais grave que seja, é uma doença que só aflige cada pessoa uma vez, enquanto a malária, tuberculose e outras doenças respiratórias das quais sofrem hoje são crônicas, debilitantes e apenas gradualmente fatais. Os índices de morbidez são estimados em até 35%, os índices de mortalidade, em quase 10% ao ano, enquanto os índices de natalidade, em algumas áreas, se aproximam do zero.
No espaço de pouco mais de uma geração, o povo (ou a população) sobre o qual todos esses etnógrafos, geneticistas, sociobiólogos, ativistas dos direitos humanos e "jornalistas defensores de causas" vêm brigando tão furiosamente passou do status de "intocado" para o de "ameaçado", de "recém-contatado" para "à beira da destruição". Agora que seu valor como grupo de controle, uma "população geneticamente ancestral", supostamente "natural" -"a última grande tribo primitiva em qualquer parte do mundo"- diminuiu ou desapareceu e que as experiências feitas com eles pararam e os responsáveis por elas partiram, que espécie de presença os ianomamis devem ter em nossa mente? Que lugar um "ex-primitivo" ocupa no mundo?
É difícil dizer, e os precedentes não chegam a ser animadores. Tudo indica que a troca de acusações on line pode estar destinada a continuar por algum tempo, entretendo os participantes principais por anos ainda, mesmo que não desperte o interesse de mais ninguém. Aconteça o que acontecer com os ianomamis naquele que costumávamos chamar de o mundo real -"aculturação", "transformação em minoria", depauperização, migração para favelas ou o que E.O. Wilson, num "imprimatur" de um dos livros de Chagnon, qualifica alegremente como "uma adaptação tranquila e decente ao espaço situado entre o mundo deles e o nosso"-, o lugar deles no ciberespaço parece estar assegurado. Com a ajuda de um modem e um programa de busca, quem procurar por eles ainda poderá encontrá-los.


Clifford Geertz é antropólogo norte-americano, professor no Instituto de Estudos Avançados da Universidade Princeton e autor de, entre outros, "Nova Luz sobre a Antropologia" (Jorge Zahar). Este texto foi publicado originalmente no "The New York Review of Books".
Tradução de Clara Allain.


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