São Paulo, domingo, 03 de fevereiro de 2002

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Passeio pelo museu de novidades

O ENSAÍSTA REFLETE SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE A CULTURA NA ATUALIDADE E TRÊS LANÇAMENTOS RECENTES NO BRASIL DE OBRAS DO SÉCULO 18 FRANCÊS

Divulgação
Geoffrey Rush e Kate Winslet em cena do filme "Contos Proibidos do Marquês de Sade", de Philip Kaufman


por Silviano Santiago

Na passagem de ano, o leitor brasileiro foi presenteado com obras do século 18 francês. Do marquês de Sade a Iluminuras publicou uma coletânea dos discursos contra Deus, para usar a expressão de Gilbert Lely, intitulada "Diálogo entre um Padre e um Moribundo e Outras Diatribes e Blasfêmias". A Estação Liberdade optou por apresentar Sade pela perspectiva da pós-modernidade. De Philippe Sollers, fundador da revista "Tel Quel", editou um ensaio elogioso sobre o romance libertino do divino marquês e franqueou ao público uma carta inédita dele, que na verdade é um pastiche. Título: "Sade contra o Ser Supremo". A Companhia das Letras negou a hegemonia de Sade no século 18, fazendo o resgate da época pelo viés classicizante do século anterior -o do teatro de Racine e do romance de madame de La Fayette. Como se diz no posfácio, "mesmo no auge de sua fúria, as personagens [de Racine e dos contos" conservam perfeito domínio sobre a linguagem que as exprime". Meu Deus! Temos três contos, ou novelas curtas, em que o tema do amor -da sublimação do desejo, como dizem os surrealistas- é a tônica. Título: "Na Alcova". Subtítulo: "Três Histórias Licenciosas". O adjetivo "licencioso" nada tem a ver com "libertino", assim como os recortes sutis que a Companhia das Letras opera em tela de Fragonard nada têm a ver com as gravuras pornográficas reproduzidas nos livros de Sade e Sollers. A não ser que não se distinga sadismo excrementicial de sadismo psicológico. Rubem Fonseca informa. Estamos diante de uma miscelânea, que diz muitas coisas sobre o novo milênio. Fala dos grandes temas de hoje: liberdade, desejo e gozo; revolução, religião e conhecimento; subjetividade, amor e adultério. Dos matizes da linguagem contemporânea: panfletária e orgiástica; anti-Terror e democrática; introspectiva e intransferível. E, finalmente, dos leitores atuais: incendiários e pró-talebans; republicanos e americanófilos; individualistas e pacifistas. A miscelânea proposta pelas três editoras paulistas traduz a mixórdia nossa de todos os dias. Ao traduzi-la, crisma os novos (velhos) tempos. Nada mais novo do que um acervo. Nada mais atual do que uma citação. Tudo se confirma, nada se transforma, eis a nova lei de Lavoisier, que também serve de chave-mestra para a fechadura do museu das novidades. Na presente versão deste, o século dos filósofos arremata o século dos analistas e abre as comportas. Para que desembeste qual enxurrada? Nenhuma, afinal. Um dos paradoxos da nossa época diz que, ao se deixar inebriar pela atualidade do tema que o atormenta, o intelectual é levado pela razão histórica ao anacronismo na discussão. Não enxerga o vácuo que o acontecimento em si abre no processo de transformação da realidade social. A leitura dos textos de Sade pode nos ser útil.

Uma escultura de Giacometti
Abro um parêntese. Uma das primeiras e mais belas esculturas de Giacometti se chama "O Objeto Invisível" (1934) e leva por subtítulo: "Mãos Agarrando o Vácuo". Nela um homem, não tão longilíneo quanto serão os personagens das suas esculturas futuras, está sentado em posição hierática. As mãos se lançam para frente e os pés estão soldados no chão, como se fossem puxados pelo sarcófago que pisam. Os braços se lançam para que as mãos espalmadas agarrem alguma coisa -o objeto invisível, o vácuo. André Breton trouxe para si a escultura ao fazer dela uma primeira leitura. Ali estaria representada "a emanação do desejo de amar e ser amado na busca do seu objeto humano, na sua dolorida ignorância".
Retenho da leitura de Breton apenas a cláusula inicial e a final. Os discursos contra Deus de Sade "emanam do desejo", na "dolorida ignorância" por que atravessa o homem diante do vácuo criado pela derrocada do despotismo e pela negação da existência de Deus. Nessa leitura, a dolorida ignorância, pela sua dupla rotação revolucionária, se aproxima do "se Deus está morto, tudo é permitido", levantado por Fiodor Dostoiévski e retomado pelos surrealistas e por Jean-Paul Sartre. Abre-se ela para a reflexão ética. Em Sade, a dolorida ignorância lhe advém no momento em que a razão entrega ao cidadão, ao novo homem, as armas retóricas que lhe permitem o pleno exercício do conhecimento pela liberdade criadora, exigindo-lhe em troca que encete sem temor a marcha venturosa pelos "caminhos da liberdade". Questionar a religião pela razão significa questionar o comportamento do homem pela liberdade.
A experiência proporcionada pela liberdade é esse vácuo que as mãos espalmadas do personagem de Giacometti tentam apreender. Têm de apreendê-lo com mãos de oleiro, com mãos de artista e filósofo. Têm de moldá-lo à imagem e semelhança do homem.


O criador pode tudo elucidar, menos as desgraças por que passa a sua criatura; a falácia do criador está no fato de que, ao proclamar a própria onipotência, tem de afirmar que tudo sabe


Sade e os personagens de Sartre sabem que têm de usar as mãos para recompor o mundo, ainda que seja para sujá-las com armas de criminoso. Escreve o libertino: "Os povos mais livres são aqueles que mais acolhem o assassinato. Havia um povo mais amigo do assassinato do que os judeus? É o que se vê de todas as formas, em todas as páginas de sua história". No século das Luzes, o pior cego não é o assassino do rei e de Deus, mas aquele que, graças aos seres quiméricos que o medo inventou, supostamente o ajudam a enxergar o objeto invisível, negando poder aos olhos livres para moldar um futuro promissor -a utopia do desejo. O pior cego é o que, tendo assassinado o rei, não consegue se emancipar das amarras morais pregadas por Deus. O pior cego é o que não sente a alegria de poder agarrar e trabalhar o vácuo do acontecimento. É o que fecha as mãos em prece, depois do primeiro assassinato.
Quem subjuga inaugura o reino do Terror. E nada ensina. Tudo elucida e nada ensina. A onipotência do criador pode tudo elucidar. Empresta clarividência ao observador humano, esmagando-o no entanto pela sua presença. O criador pode tudo elucidar, menos as desgraças por que passa a sua criatura. Não lhe ensina como sair da miséria. A falácia do criador está no fato de que, ao proclamar a própria onipotência, tem de afirmar que tudo sabe. Ao se confundir com a onisciência, a onipotência divina derrapa, deduz Sade. Em seguida constata: "Se a maior porção do gênero humano está destinada a ser eternamente infeliz, um Deus que tudo sabe devia sabê-lo".
Depois de constatar a onisciência malandra do criador e a infelicidade inalterável da criatura, lança-se a um jogo de perguntas e respostas: "Por que o monstro nos criou? Foi por obrigação? Logo, não é mais livre. Foi de propósito? Logo, é um bárbaro". Criou-se o homem para que fosse infeliz, "a propagação de nossa espécie se torna o maior dos crimes e nada será mais desejável que a extinção total do gênero humano". Ou tudo, ou nada. Nenhum compromisso com Deus, a não ser o retórico, como veremos.
Leiamos o extraordinário "Diálogo entre um Padre e um Moribundo". Nós, leitores de hoje, ainda somos o "padre" e a razão ainda é o "moribundo". É este que se dirige àquele para caracterizar o verdadeiro cego no século das Luzes: "Tu edificas, inventas, multiplicas; eu destruo, simplifico. Tu acumulas erros sobre erros: eu combato todos. Qual de nós é o cego?". A simplicidade combatente e destrutiva -eis em três palavras o Sade visionário e polemista.
Em "Da Imortalidade da Alma", retorna à questão da verdadeira cegueira: "Ousar sustentar que podemos ter idéias sem os sentidos seria tão absurdo como dizer que um cego de nascença pode ter uma idéia sobre as cores". Enxergamos a nós e ao mundo pelos sentidos. Por eles conhecemos. Peça nobre na discussão sobre o vácuo do acontecimento, os sentidos passam a orquestrar a vida humana pela materialidade: "O que vem a ser pensar, gozar, sofrer, senão sentir?".
Não há como duvidar do caráter panfletário da escrita sadiana. O narrador sempre se dirige a um interlocutor para ganhá-lo. Um dos traços mais interessantes do seu texto vem a ser as contradições entre a estabilidade racional da escrita panfletária e os ziguezagues do humor negro, propostos pela razão sob a forma de jogos dialéticos (no sentido socrático do termo). Sade tem de convencer a si, pelo desvio do interlocutor, que a razão está do nosso lado. Do lado humano. Neutraliza pela certeza absoluta os jogos dialéticos da Ilustração. Vale-se de qualquer arma retórica para destruir a quimera que tem de ser destruída pela simplicidade.
As metáforas para Deus são abundantes: "fantasma", "quimera", "ser quimérico". No entanto, a fantasia religiosa, depois de desprovida de corpo pela contundência da razão, readquire matéria pela escrita panfletária. Enuncio teu nome para te ver. Justifica Sade pela voz da narradora: "Vejo-me obrigada a admitir, por um momento, esse ser quimérico conhecido pelo nome de Deus". Melhor te vejo, melhor te combato. O fantasma religioso (meramente retórico no caso) entra na cena da escrita para receber a estocada mortal. Como no caso de "A Peste", de Albert Camus, a presença de um padre à beira do leito de morte é a exigência maior da argumentação atéia. Nunca Deus é tão invocado quanto nos discursos que são escritos contra ele.
Daí o caráter educativo (e não elucidativo, repitamos) do ideário sadiano. O panfletário ambiciona a palavra definitiva e final de um legislador. Escreve Sade tentando agarrar o vácuo e moldá-lo: "Fundemos excelentes leis sobre as vitórias conquistadas; nossos primeiros legisladores, ainda escravos do déspota que enfim abatemos, só nos tinham dado leis dignas desse tirano que eles ainda incensavam". Mais adiante afirma: "Façamos poucas leis, mas que sejam boas". Como evitar que o legislador se transforme no tirano que institui o reino do Terror? As novas leis têm de ser brandas: "Que nossas leis sejam brandas como o povo que devem reger". Como pregava o rebelde latino-americano: "Hay que endurecerse sin perder la ternura".
Desse conjunto de constatações advém um movimento importante no texto sadiano. Ele deseja ser o correspondente e sucessor ateu das Sagradas Escrituras. Divino marquês. Como desmontar a transcendência pregada pelo livro supostamente santo? O desmonte se dá pelo questionamento da autoria, da origem da escrita. Se Deus não existe, como pode ter escrito a Bíblia? Os textos sagrados são "obra de homens fracos e ignorantes e que, nessa perspectiva, não merecem senão desconfiança e desprezo". Esclarece: "Licurgo, Numa, Moisés, Jesus Cristo, Mohammad, todos esses grandes canalhas...". Homens por homens, continua Sade, sejamos nós, os republicanos, e não os canalhas, os autores do "livro sagrado", tendo em vista a nova sociedade que jorra da Revolução Francesa. Sade escreve: "Refaçamos sua [de Deus" obra, pensando que é para os republicanos e para os filósofos que vamos trabalhar".
Os discursos contra Deus de Sade, intolerantes e absolutos, acabam por se transformar em propostas sucessivas de novas regras comportamentais para o homem, cujos melhores exemplos continuam sendo os ensaios intitulados "Franceses, Mais um Esforço Se Quereis Ser Republicanos" e "A Sociedade dos Amigos do Crime -Mandamentos". No seu microcosmo, a sociedade ali prescrita reproduziria o macrocosmo que deveria ser a sociedade futura. Parodiando Lúcio Costa, ali está o plano-piloto da utopia sadiana, simulacro da ágora grega. É modelo e é exemplo, embora não seja exportável para o resto do mundo: "Seria um absurdo palpável prescrever leis universais". Firme e brando.
Mesmo diante desse arrazoado esquemático, constata-se que o pastiche dos discursos contra Deus -proposto por Philippe Sollers sob a forma de carta inédita em "Sade contra o Ser Supremo"- deixa muito a desejar. Sollers coagula Sade no período do Terror (da queda do girondinos em 31 de maio de 1793 à queda de Robespierre em 27 de julho de 1794), transformando-o tão-só em crítico da guilhotina. O ideário da Revolução Francesa estaria sendo desvirtuado pela Convenção.
A epígrafe da carta esclarece o intento do pastiche: "Minha detenção nacional, com a guilhotina à vista, me causou cem vezes mais danos do que jamais me fariam todas as bastilhas imagináveis". A carta-pastiche traz data precisa: 7 de dezembro de 1793. Naquele dia a senhora du Barry estava sendo supliciada e no dia seguinte o próprio marquês seria preso. Era o início de uma série de prisões sob o Terror: Madelonettes, Carmes, Saint-Lazare, Picpus. Eis o clima da carta.
O pastiche de Sollers é produto tardio das comemorações do bicentenário da Revolução Francesa. Pode ser aproximado com proveito de "Danton" (1982), filme de Andrzej Wajda. Ao jogar Robespierre para o recanto dos déspotas, Wajda entroniza Danton como o verdadeiro defensor dos ideais revolucionários. Robespierre é frio, calculista e abstêmio. Danton é jovial, guloso e destemperado. Tão destemperado quanto humano. Interpreta-o Gérard Depardieu.
Tanto no pastiche de Sollers quanto no filme de Wajda se nota como pano de fundo a crítica aos regimes tirânicos ou totalitários, que foram personificados no século 20 por Hitler e Stálin, por Pinochet e demais generais latino-americanos.

Roupagem nova
Há apenas um dado imprevisível e novo no pastiche de Sollers, que o torna atual. Tudo indicava, na época em que foi publicado (1996), que o totalitarismo voltaria sob a roupagem do fundamentalismo islâmico. Todos se lembram do "affair" Salmon Rushdie com os "Versos Satânicos". Sollers elege um cardeal como correspondente de Sade e como antagonista o Ser Supremo, criação da Convenção em oposição aos que queriam descristianizar a França no século 18. As primeiras palavras do pastiche não deixam dúvida sobre a alegoria: "Uma grande desgraça paira sobre nós, meu caro cardeal, estou aturdido. Parece que o tirano e seus asseclas se preparam para restabelecer a quimera deífica". Por aí releríamos o pastiche hoje, tendo como pano de fundo os imprevisíveis acontecimentos de 11 de setembro.
(Deveria a editora passar ao leitor brasileiro, naturalmente menos familiarizado que o francês com as circunstâncias da vida e a materialidade dos escritos de Sade, alguma dica sobre o fato de a carta não ser um inédito, mas um pastiche? Fica a pergunta.)
O ensaio que precede a carta-pastiche, intitulado "Sade no Tempo", apresenta pouco ou nenhum interesse. Nele Sollers pretende convencer, sem conseguir, que Sade "se revela pouco a pouco como um dos maiores romancistas de todos os tempos". Talvez isso seja verdade, mas não o será pelos argumentos expostos. Tiradas de efeito acabam simplesmente por demonstrar que Sollers é mais e mais o grande bufão da crítica francesa. Exemplo? "A verdadeira filosofia é um romance que não é um romance, continuando a ser um romance...". Passemos por cima que nem uma jamanta para reencontrar franceses mais sutis.
De personagens sem paisagem interior, como os de Sade, passamos a "personagens com paisagem interior", como os que se encontram nos três contos reunidos em "Na Alcova". A expressão que estamos glosando foi cunhada por André Gide e bem pode representar a retomada de uma escrita romanesca psicológica, classicizante, pela modernidade. Se os surrealistas, com Guillaume Appolinaire de abre-alas, foram os herdeiros de Sade no século 20, os prosadores oriundos ou descendentes da "Nouvelle Revue Française" (o citado Gide, Jean Schlumberger, Marcel Jouhandeau, Jean Cocteau, Raymond Radiguet e tantos outros) foram os "filhos de "La Princesse de Clèves'" (1678), para nos valer da expressão de Claude Edmonde-Magny. Entre nós, são filhos daquele romance grandes prosadores contemporâneos, como Cornélio Pena, Otavio de Faria e Lúcio Cardoso, para não mencionar certa Clarice Lispector.
Com o romance "La Princesse de Clèves", madame de La Fayette inaugura um tipo de escrita romanesca de caráter psicológico, que se opõe à escrita romanesca de fatura realista, proposta pelos contemporâneos ingleses (Daniel Defoe, Samuel Richardson etc.) e tão bem estudada por Ian Watt, em "The Rise of the Novel" ("A Ascensão do Romance"). Importa para ela, como dissemos, a paisagem interior. Não os sentidos à flor da pele, como em Sade, mas os sentimentos recônditos que são escarafunchados pela escrita literária. Na prosa ficcional introspectiva, pululam substantivos abstratos e abundantes adjetivos. Ela se propõe à análise das emoções. Narrativas em primeira pessoa: tom intimista, aristocrático, frufru de sedas, estalar de leques, punhetas líricas, espinhas de adolescente.
O primeiro conto de "Na Alcova", "Cartas Portuguesas", hoje definitivamente dado como escrito pelo Visconde de Guilleragues, é um belo exemplo. Nada menos sadiano do que a pergunta feita pela remetente das cartas: "Não deveria ter previsto que meus prazeres teriam fim antes que meu amor?". Como o amor não tem fim, resta a escrita feminina da felicidade castrada pela ausência do macho. Cinco cartas escritas por uma religiosa portuguesa, enclausurada em um convento da Beja, em que confessa o apego aos infortúnios: "Destinei-te minha vida tão logo te vi, e sinto certo prazer em sacrificá-la a ti". Os desencontros e as frustrações, as contradições e os paradoxos, os saltos e as piruetas da idiossincrasia fluem com a graça de poemas sentimentais. Talvez nelas tenha bebericado o Fernando Pessoa lírico. Aquele que escreveu: "Onde pus a esperança, as rosas/ murcharam logo". Confessa a amante: "Não sei quem sou, nem o que faço, nem o que desejo: sou dilacerada por mil ímpetos contrários". Ecoa André Gide: "Sou um ser em diálogo: tudo em mim combate e se contradiz". Na quarta carta a constatação esperada: "Escrevo mais para mim do que para ti".
O último dos três contos é bem mais interessante do que o segundo e se intitula "Por uma Noite" (belo achado na tradução de "Point de Lendemain"). Menos masoquista do que a narradora/personagem das "Cartas Portuguesas", a mulher nesse conto tece manhas e artimanhas ao elaborar estratégias para fascinar o jovem que fora seduzido pela sua melhor amiga. Dona da situação, caprichosa e volúvel, encantadora e mercantilista, quer destruir a rival com o estilete da maldade frívola. Referindo-se a ela, diz ao jovem: "A senhora de T*** sabe despertar todo tipo de sensação, e ela mesma não sente nada: é um mármore". Sabe que as relações amorosas, como a beleza da rosa, têm espaço limitado de vida. Ouvem-se ecos desse conto no belíssimo romance de Raymond Radiguet "Com o Diabo no Corpo", levado ao cinema por Autant-Lara, com Gérard Philippe no papel do adolescente.
No posfácio ao livro, Samuel Titan Jr. propõe uma boa interpretação de "Por uma Noite". Chama ele a atenção para uma das graças do conto: o bisonho jovem a ser seduzido, narrador do conto, não é o autor da trama de sedução, que é obra da senhora de T***. Essa inversão de perspectiva -o jovem seduzido não consegue acompanhar o retorcido dos processos de sedução imaginados pela mulher- torna fascinante o jogo entre a inocência que se vai e os malabarismos de Satã que a emaranha. Como se diz no posfácio: "A cada vez que ele [o jovem" julga divisar o rumo da história, sua companheira impõe uma nova guinada; quando se acredita autor de seus próprios atos, a parceira não tarda a torná-lo mero joguete".
Robert Darnton, o conhecido historiador do século 18, teria dito que trocaria toda a obra do marquês de Sade pelas poucas páginas dessa novela curta. Alguém sairia perdendo na troca. Quem? Cartas à redação.

Silviano Santiago é escritor, poeta e crítico de literatura, autor de "Stella Manhattan" (ed. Rocco) e "Nas Malhas da Letra" (Companhia das Letras), entre outros.


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