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A dupla tragédia da arte de tourear
LEIA ABAIXO TRECHO DO LIVRO "ESPELHO
DA TAUROMAQUIA", DE 1938, DO ANTROPÓLOGO MICHEL LEIRIS, A SER LANÇADO PELA COSAC & NAIFY NESTE MÊS
por Michel Leiris
E para começar, que é a "tauromaquia"? Em que
sentido a "corrida" espanhola se mostra detentora de uma dignidade a que não poderia aspirar
nenhuma das outras formas de jogos taurinos
-a tourada portuguesa, a provençal ou a de Landes-,
que apresentam, para os homens que as praticam, riscos sensivelmente equivalentes, mas que não terminam
em sacrifício? Como, em suma, a tauromaquia vem a
ser outra coisa -maior- que um esporte? Se, por um
lado, o atrativo da "corrida" estivesse inteiramente ligado ao fato de se verem homens -e mais especificamente aquele a quem cabe a missão de matar: o matador-
efetuando à sombra de uma regra definida certas evoluções perigosas, não haveria como entender por que ela
desperta em nós ressonâncias mais profundas que um
esporte ou um exercício perigoso qualquer, como as
proezas de um acrobata ou a disparada espantosa do
bólido automóvel sobre a rigidez de uma pista de cimento. Basta entretanto ouvir o "olé!" -ampliando-se
em rumor visceral- de uma multidão espanhola para
se persuadir de que, em cada "corrida", reina uma gravidade da qual nenhuma outra tentativa ousada de enganar a morte poderia fornecer equivalente, por grandiosa que seja em si mesma e nos detalhes de sua execução. Podemos então estar certos de que, em comparação a qualquer outra espécie de proeza física realizada
segundo regras e sob ameaça de um acidente sério, o
que confere esse valor singular ao desempenho do "torero" é seu lado essencialmente trágico: todas as ações
executadas são preparativos técnicos ou cerimoniais
para a morte pública do herói, que não é outro senão esse semideus bestial, o touro.
Mas se, por outro lado, o prestígio da "corrida" repousasse exclusivamente sobre o fato de que aí ocorre um
sacrifício (dos cavalos pelos touros e dos touros pelos
homens) e que esse sacrifício se dá à luz do dia, não haveria como entender em que ela se diferencia de um ato
sádico qualquer, conduzido segundo tal ritual ou tal encenação, em presença de terceiros agindo como voyeurs e fazendo as vezes do público. É entretanto evidente que, numa "corrida", a quantidade de sangue
derramado ou a soma de sofrimento suportado pelos
animais não dão a medida do prazer experimentado
pelos espectadores.
Deve-se então pensar que, por mais que a tauromaquia não seja simples jogo ou exercício corporal, um
certo esforço do homem (habilidade que ele deve demonstrar, coragem da qual deve dar provas) é contudo
necessário, e que a corrida contém uma grande dose de
esporte. Que restaria dela, uma vez privada de suas dificuldades, além das sevícias sanguinolentas infligidas a
uma vítima dócil ou adequadamente entorpecida?
Somos levados a admitir que a tauromaquia comporta certo elemento esportivo, e igualmente que é algo
mais que um esporte, em vista desse caráter trágico que
lhe é inerente -duplamente trágico, pois que há sacrifício, e sacrifício com risco imediato para a vida do oficiante.
Na medida em que se pode dizer que, ao menos simbolicamente, qualquer atividade estética legítima traz
consigo, refletida ou não na obra, sua porção trágica
(obrigação, para o verdadeiro artista, de ser autêntico,
de participar por inteiro daquilo que criou, a par da
idéia de que para ele há necessidade vital de ir até o fim,
sem que intervenha nenhuma trapaça -como o matador que dá o golpe no lugar certo, estocando até o fim e
projetando-se entre os chifres), a tauromaquia poderia
ser vista como um esporte acrescido de uma arte em
que o trágico, de algum modo explicitado, seria particularmente empolgante. O estilo adotado há já alguns
anos pelos profissionais da tauromaquia -aquele que
os puristas qualificam de "decadente", caracterizado
pela abundância de floreios, posições plásticas, gestos
de efeito, despidos de eficácia técnica, meios puramente
espetaculares de provocar esse arrepio "sui generis"
que os especialistas denominam "emoción"- contribui para tornar plausível a noção de uma tauromaquia
na qual prevaleceria o elemento estritamente estético.
Rios de tinta correram, aliás, sobre o "toreo estético";
certos relatos de "corridas" vão tão longe nessa direção
que se poderia crer, à sua leitura, que os autores se propuseram a tarefa de narrar exibições coreográficas. Mas
o fato é que, se é diversa de um espetáculo esportivo, a
"corrida" é igualmente diversa de um balé, mesmo
quando apresentado em condições perigosas (sobre
um vulcão), e que na base da beleza que lhe é própria
devemos encontrar algo que a diferencia absolutamente da pobre exibição de mesuras que esgota a maioria de
nossas danças desde que perderam toda significação religiosa.
Tradução de Samuel Titan Jr..
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