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Ponto de fuga
A origem dos mundos
A mostra Courbet é muito bela: beleza da matéria, dos tons graves e surdos, do silêncio meditativo sobre os mistérios telúricos, vegetais ou corpóreos
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
T
ermina em Paris uma retrospectiva do pintor
Gustave Courbet [1819-77]. Ela irá agora para o Metropolitan Museum de Nova York
[de 27/2 a 18/5].
Mostras monográficas importantes reúnem quadros dispersos nos museus do mundo
inteiro: é um grande prazer vê-los e compará-los. Têm ainda o
sentido de fazer um balanço, de
renovar a compreensão, a intuição, do papel que representam hoje esses grandes mestres.
As obras de arte possuem um
núcleo estável no qual se entrelaçam as pulsões criadoras. No
entanto, elas se modificam.
Primeiro, fisicamente: o material envelhece e o aspecto se altera com o tempo. Há também
deslocamentos que mudam a
percepção e afetam o olhar: caso evidente é o das obras religiosas transportadas para os
museus. São mutações que diminuem certas características
para ampliar outras.
As obras sofrem outras perturbações, originadas pela sucessão dos olhares que, de geração em geração, pousaram
sobre elas. Nunca são vistas
"nelas mesmas"; são sempre,
por assim dizer, traduzidas para a cultura de quem as contempla. Textos críticos, teóricos, históricos sintetizam as
sensibilidades de cada geração.
Trata-se de enfoques que aderem à obra. Mesmo quando negados ou contestados, continuam pressupostos, ativos e,
de um certo modo, passam a fazer parte da própria criação.
Seixo
A retrospectiva Courbet é
muito bela. Beleza da matéria,
dos tons graves e surdos, do silêncio meditativo sobre os mistérios telúricos, vegetais ou
corpóreos. Beleza da gravidade
pictural que vai além da idéia,
do conceito, da formulação lógica.
Courbet escreveu uma vez:
"Faço as pedras pensarem".
Nem ele nem o espectador pensam sobre a pedra, é a pedra
que pensa, exatamente como
no poema de João Cabral de
Melo Neto: "Uma educação pela pedra: por lições;/ Para
aprender da pedra, freqüentá-la;/ Captar sua voz inenfática,
impessoal (...) Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,/ Uma pedra de nascença, entranha a alma".
Inflexões
Os quadros se sucedem nas
salas. São paisagens, marinhas,
naturezas-mortas, nus femininos, cenas de caça. São as telas
que representam a nascente do
rio Loue, que atravessa a Franche-Comté, região em que
Courbet nasceu, se criou, e à
qual permaneceu sempre ligado. Tudo admirável. Porém, se
esse aspecto mais fundamente
metafísico vem sublinhado, o
outro Courbet, o Courbet político, militante socialista, é reduzido a quase nada nesta retrospectiva.
Muitos quadros relevantes,
com traços sociais ou de interpretação problemática, estão
ausentes: "As Peneiradoras de
Trigo", "O Incêndio", "Os Lutadores", "O Mendigo", a singular
remadora, em maiô contemporâneo, sem falar dos "Quebradores de Pedra" e do "Retorno
da Conferência", obras destruídas, mas que causaram grande
impacto quando expostas pela
primeira vez e que subsistem
em esboços e gravuras. Talvez
os curadores busquem evitar as
interpretações políticas que, de
Proudhon a estudiosos atuais,
marxistas e feministas, ingleses
ou americanos, têm, em grande
parte, dominado as análises sobre o pintor.
Fresta
Em 1977, comemorando o
centenário da morte de Courbet, houve outra exposição importante. Contra a vontade dos
curadores, ordens poderosas
proibiram, por obscenidade, a
apresentação do quadro "A Origem do Mundo", que figura um
sexo feminino em close. Hoje, é
o ponto mais alto da mostra. À
volta dele, na sala, gravitam as
mais belas mulheres nuas que o
artista nos deixou.
jorgecoli@uol.com.br
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