São Paulo, domingo, 03 de fevereiro de 2008

Texto Anterior | Índice

+ literatura

O soldado de Tocqueville

Escritor Michel Houellebecq discute democracia prevista pelo pensador francês, aborda a hegemonia cultural americana e faz uma defesa do futebol como antídoto ao "desejo de violência"

Jefferson Bernardes - 4.dez.2007/Folha Imagem
O escritor francês durante entrevista concedida no ano passado,
em Porto Alegre, durante o evento Fronteiras do Pensamento


DA REDAÇÃO

P rincipal escritor francês da atualidade, autor de best-sellers como "Plataforma" (Record) e "Partículas Elementares" (Sulina), Michel Houellebecq renovou a prosa de seu país com uma visão iconoclasta e desiludida da sociedade contemporânea, em romances fortemente temperados por sexo. O texto abaixo é composto de trechos de conferência que o escritor proferiu no último dia 4 de dezembro em Porto Alegre, dentro do seminário Fronteiras do Pensamento Copesul (que terá em sua edição 2008 nomes como a escritora de origem somali Ayaan Hirsi). Ao falar sobre a dominação cultural norte-americana, Houellebecq faz um elogio de "A Democracia na América", do francês Alexis de Tocqueville (1805-1859), dizendo que a arte é o remédio para as frustrações decorrentes do desenvolvimento previsto pelo pensador francês da sociedade.

 
MICHEL HOUELLEBECQ

Já que estou no Brasil, tenho o grande prazer de citar Auguste Comte [1798-1857], cujo pensamento teve um papel tão importante na formação deste país. Eu tentei diversas vezes reabilitar Comte, incitar a releitura de seus livros, e fracassei completamente. Há alguma coisa que o torna insuportável para o leitor francês de hoje. Há um ponto no qual Comte contrasta muito agradavelmente com a quase totalidade de seus contemporâneos: o desprezo constante com que trata Napoleão. Ele o qualifica tanto de ditador retrógrado quanto de fantoche militarista.
Para Comte, a epopéia napoleônica é algo sórdido, que constituiu pura e simplesmente uma perda de tempo, um retardamento da transição entre a era militar e a era industrial. Na era militar, o principal meio de que uma população dispunha para aumentar seu nível de vida era invadir o território de seus vizinhos. Na era industrial, a guerra, pensa Comte, deve normalmente tornar-se econômica.
Essa situação, supondo que esteja totalmente realizada, como é o caso na Europa há várias décadas, não pode deixar de causar frustrações. A concorrência econômica só pode ser suficientemente excitante para uma parte ínfima dos funcionários da empresa que realmente participa de suas apostas.
Enquanto que a guerra aumenta a taxa de adrenalina não somente dos generais, mas também dos simples soldados. Arriscar a vida é excitante. O homem ama o combate. O desejo de violência no homem, em particular seu desejo de violência coletiva, seu lado animal de rebanho, se satisfaz diante das revoluções e das guerras.
Se as revoluções e as guerras, como previa Comte, acabassem por desaparecer, dando lugar ao consenso liberal e a guerras limitadas ao campo econômico, seria necessário encontrar um canal de escoamento para esse desejo de violência.

Futebol
Parece-me que esse canal já foi descoberto. E obtém um sucesso crescente no conjunto do planeta. É o futebol. O futebol permite uma liberação de adrenalina real, embora menos poderosa que a do combate físico efetivo. Oferece um suspense claramente mais forte que o de qualquer produção cinematográfica imaginável, enquanto a guerra real é na maioria das vezes relativamente entediante. O futebol permite a reconstituição da identidade nacional lúdica, porque temporária e facultativa. Portanto tem um caráter de distração, na medida em que continuará dissipando as identidades nacionais que antes serviam para iniciar e conduzir as guerras.
As frustrações ligadas ao desaparecimento das guerras são reais. Mas o meu verdadeiro tema são as frustrações ligadas ao desenvolvimento da democracia. Recorrerei a [Alexis de] Tocqueville, um contemporâneo de Comte. Levei 20 anos para decidir ler Tocqueville, embora soubesse que é um autor interessante. Comecei há alguns meses e fiquei muito impressionado. "A Democracia na América" [Martins Fontes] é uma obra-prima.
Gosto muito de romances, e de todo modo não seria capaz de escrever outra coisa. Gosto muito da arte. Em geral, é ela que me dá, junto com a sexualidade, as maiores alegrias. Tento, sinceramente, ser um bom artista. Digo, com uma modéstia que absolutamente não é fingida, que o verdadeiro milagre neste mundo é o surgimento de um novo filósofo ou um pensador.
Romances sempre haverá, e bons. Um pensamento novo, há séculos que não temos. As idéias têm muito má repercussão na crítica literária francesa, e certamente mais ainda na crítica literária anglo-saxã. Eu mesmo fui acusado várias vezes de utilizar idéias demais em meus livros. Já fui até, e essa é a injúria suprema, acusado de ser um autor de teses. Por isso vou me explicar um pouco sobre essa questão.

Balzac
Começarei por [Honoré de] Balzac [1799-1850], que na minha opinião continua sendo o pai universal dos romancistas. Balzac nunca hesitou em expor idéias em seus romances. Sejam as de seus personagens, quando ele pensava que davam um esclarecimento interessante sobre sua maneira de ser no mundo, sejam as suas próprias, e sem esconder-se. Certas idéias de Balzac, sobre o magnetismo ou sobre a teosofia de [Emanuel] Swedenborg [1688-1772, filósofo sueco], hoje podem nos parecer totalmente ridículas, enquanto nossa admiração por Balzac não diminui.
Isso não muda nada: um romancista honesto e sincero é aquele que diz tudo o que lhe parece importante dizer. E só o romancista honesto e sincero pode ser qualificado de grande romancista. Os autores de tragédias do período clássico francês não sonhavam em exprimir idéias. De um lado, porque pensavam que nenhuma idéia nova poderia surgir em um mundo que eles consideravam irremediavelmente fechado, e de outro porque exprimir uma idéia seria considerado por eles uma falta de gosto. O resultado é que deixaram uma obra perfeita, mas limitada.
Por isso a capacidade de vibração efetiva, de comoção afetiva ou intelectual, hoje está quase morta. Os autores trágicos da era clássica francesa estão mortos. Para passar a um extremo oposto, os romancistas americanos modernos se impedem de exprimir a menor idéia. Porque isso teria o efeito de diminuir o ritmo da "storytelling". Na França, a situação é diferente. Se as idéias são proscritas dos romances, é constantemente em nome do estilo. E aí a passagem mais freqüentemente citada é a de [Louis-Ferdinand] Céline, em que diz: "As idéias, como sabemos, o dicionário está cheio delas; o importante é a música".
Nunca apreciei muito Céline [1894-1961]. Acho que seu estilo, do qual tanto se orgulhava, pouco a pouco degenerou em tiques exasperadores. Céline tem de fato uma espécie de música, mas é uma música muito comum, algo intermediário entre o jazz e a canção popular francesa do início do século 20.
Pode ser, aliás, que a importância da música na literatura seja superestimada, inclusive na poesia. Que talvez esteja mais próxima das artes plásticas do que imaginamos, em geral. À parte [Charles] Baudelaire [1821-1867], que para mim continua sendo um modelo absoluto, todo autor tem um estilo-música. Céline tem uma música acre e picada, Tocqueville tem um estilo elegante, harmonioso, tenso. Mas ele exprime suas idéias. Tem uma pontuação magnífica, é incrivelmente bem pontuado.
Tocqueville vai mais longe que [Friedrich] Nietzsche [1844-1900]. Porque a descrição de Nietzsche continua sendo psicológica. Sua aversão pela metafísica vinha do fato de que ele se sentia incapaz de contribuir com esse campo. Enquanto Comte deixa a metafísica de lado, por considerá-la superada, Tocqueville supera o nível psicológico e dá uma explicação completa, histórica e sociológica, do fenômeno que ele prevê.
A sociedade que descrevo é a que Tocqueville havia previsto, exceto um detalhe: a família, a última estrutura social que ele via subsistir, em meus livros está desaparecendo. O processo de atomização social está a ponto de atingir seu estágio final. Ao mesmo tempo em que, como ele havia previsto, o controle higienista social é cada vez mais minucioso e coercitivo, como a proibição de fumar.
Mas o mais surpreendente em Tocqueville é que, apesar de acreditar que a democracia reduz o homem, que pode degenerar para um despotismo infantilizador, não deixa de ser partidário da democracia. E é isso que faz dele um dos espíritos mais estranhos e mais originais da história das idéias. Ele pertencia a uma família da alta nobreza. O que sua família tinha perdido com o desaparecimento do Antigo Regime é considerável. Mas em momento algum de sua obra ele questiona o caráter inevitável do aparecimento da democracia.
Devemos concluir que é um fatalista? Para mim, Tocqueville era sinceramente partidário da democracia, porque sentia a injustiça do sistema aristocrático. Nietzsche, ao contrário, inebriado por uma sensação injustificada de sua própria superioridade, aspirou durante sua vida inteira ao estabelecimento de uma nova aristocracia, da qual seria membro.

Tocqueville
Portanto, o maior inconveniente de uma democracia, para resumir Tocqueville, é a transformação de uma sociedade em um rebanho obediente, uniforme, de indivíduos não ligados entre si, unicamente ocupados com sua saúde e seu prazer. Com um controle social cada vez mais protetor, infantilizador. Em resumo, é a impossibilidade do aparecimento e do desenvolvimento de individualidades fortes.
Quando elas aparecem, se quiserem sobreviver, se quiserem acabar seus dias em outros lugares que não hospitais psiquiátricos, só têm uma única saída socialmente aceitável: lançar-se em carreira artística. Em termos artísticos, assim que tentamos agradar, que buscamos o consenso, que nos afastamos do processo simples no qual um artista é direta e pessoalmente responsável por uma obra, caímos inevitavelmente na mediocridade.
Resumindo, a arte tem um funcionamento diametralmente oposto ao da democracia. Assim como para as frustrações ligadas ao desaparecimento das guerras temos um remédio que é o futebol, parece-me que, para as frustrações ligadas ao surgimento da democracia, temos um remédio que é a arte. É possível amar ao mesmo tempo a arte e o futebol.

NA INTERNET - Leia a íntegra deste texto em www.folha.com.br/080312. Ela será publicada neste semestre na coletânea "Textos Originais - Fronteiras do Pensamento" (editora Unisinos).


Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


Texto Anterior: O Pinochet africano
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.