São Paulo, domingo, 03 de fevereiro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O PINOCHET AFRICANO

Por decisão dos países africanos e com apoio dos EUA e da União Européia, Habré será julgado no Senegal

COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, NO CHADE

N a capital do Chade, Ndjamena, ninguém se arrisca a sair depois das 20h. Além da ameaça dos "colombianos" -como curiosamente são chamados os ladrões que dirigem motocicletas-, há ainda o perigo de ser detido por militares que trafegam com metralhadoras sobre Toyotas caindo aos pedaços. Não há esgoto, transporte público ou coleta de lixo na maior cidade do Chade.
Apesar da violência e da miséria, é comum ouvir que "a situação hoje é muito melhor". Antes do atual presidente, Idriss Déby, quem governava o país era Hissène Habré, considerado um dos mais violentos ditadores da história da África.
Habré perseguiu, prendeu e torturou membros de quase todas as 200 etnias do país. Se achava que um integrante de seu governo era desleal, mandava massacrar regiões inteiras onde viviam membros da etnia do suspeito. "Um dia, os homens de Habré chegaram e incendiaram minha vila. Morreram meu irmão, a mulher e seus cinco filhos", conta a dona-de-casa Ruth Riguilar, nascida no sul do país, onde, no início dos anos 80, a polícia de Habré matou centenas de pessoas em um episódio conhecido como "Setembro Negro".
O Chade tem 9 milhões de pessoas e abriga mais de 200 dialetos. No auge da ditadura, Habré cimentou uma grande piscina construída pelos colonizadores franceses e fez dela um centro de torturas.
O regime seria até hoje desconhecido pelo mundo, como aliás se passa com quase tudo relativo a essa isolada nação africana, caso o improvável não tivesse acontecido. Mesmo sem nunca terem vivido um período democrático e sem know-how em direito, um grupo de sobreviventes decidiu se unir para tentar fazer Habré pagar por seus crimes.
Em 1999, inspirados pelo caso Pinochet, eles procuraram a Human Rights Watch, sediada nos EUA. Um dos advogados da ONG, Reed Brody, decidiu ajudá-los. Começou, então, uma campanha internacional para julgar Habré. "Trata-se de um evento extraordinário, em que pela primeira vez na história da África as vítimas decidem buscar justiça e fazem com que um ditador seja preso", diz Brody.
Em parceria com organizações internacionais, as vítimas iniciaram um caso contra Habré no Senegal, país signatário da Convenção contra Tortura. Pelo tratado, os países são obrigados a julgar ou extraditar torturadores que se encontram em seu território.
O Senegal, então, colocou Habré em prisão domiciliar. Mas não deu andamento ao caso. Primeiro, declarou que seu código penal não havia se adaptado às obrigações da Convenção contra Tortura e que assim não poderia julgar um presidente de outro país.
Depois, quando a Bélgica pediu a extradição de Habré baseada em sua lei de jurisdição, o país recusou-se a enviar o ditador à Europa e pediu que a União Africana decidisse o que deveria ser feito.
Em um parecer emitido em 2006 por uma comissão de juristas, o órgão determinou que Habré deve ser julgado na África. O Senegal acabou adaptando sua lei às exigências da convenção e foi obrigado a prosseguir com o caso. Alegando falta de verba, até hoje o país não iniciou o processo, estimado em 28 milhões de euros.
Após muita pressão internacional, os EUA e a União Européia enfim concordaram em bancar o julgamento.
"Há quase duas décadas que batalhamos por justiça", diz Clément Abaifouta, presidente da organização de vítimas batizada oficialmente de Associação de Vítimas de Crimes e Repressões Políticas no Chade.
Em janeiro, a União Européia enviou uma missão de experts ao Senegal para estudar a melhor forma de dar assistência técnica e financeira para a organização do processo -o primeiro em que um país em desenvolvimento julgará um presidente de outra nação por atos cometidos fora de seu território. Segundo declarações a jornais senegaleses, esses especialistas consideram difícil que o julgamento comece no próximo ano, pois ainda são necessários ajustes nas leis do país e nas investigações do processo. "As vítimas estão envelhecendo, e muitas já morreram", diz Brody. "Quanto tempo mais terão de esperar para que enfim justiça seja feita?"

Defesa de Habré
Os advogados de Habré dizem que, além do direito a imunidade devido ao cargo que ocupou, o ditador jamais teria dado ordens para que a polícia cometesse crimes. Tampouco teria ficado sabendo de assassinatos ou torturas perpetrados por pessoas de seu governo. (ES)


Texto Anterior: + No banco dos réus
Próximo Texto: + Literatura: O soldado de Tocqueville
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.