São Paulo, domingo, 03 de maio de 2009

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Mira cheia de graça


Estudo pioneiro revela a faceta espiritual de uma das mais importantes artistas brasileiras

Ela não chegou a ser conservadora, mas era contra pegar em armas

MARIO GIOIA
DA REPORTAGEM LOCAL

Deus é amor." A frase poderia batizar uma igreja pentecostal, mas está presente em um dos desenhos da série "Homenagem ao Deus-Pai do Ocidente", feita por Mira Schendel (1919-88) em 1975.
Ela é protagonista daquela que deve ser a exposição com mais visibilidade de um artista brasileiro (no caso, suíço-brasileiro) em âmbito mundial neste ano. "Tangled Alphabets", em cartaz no MoMA, em Nova York, até o próximo dia 15 de junho, une a obra de Schendel com a do argentino León Ferrari, muito mais conhecida por seu teor político.
Com a mostra, Schendel ganha publicações e reedições no mercado editorial, das quais a mais importante é "Do Espiritual à Corporeidade", de Geraldo Souza Dias, 54, artista plástico e professor na Escola de Comunicações e Artes da USP.
O livro é uma versão revisada do seu doutorado na Universität der Künste Berlin, publicado apenas na Alemanha, pela editora Galda.
O trunfo da obra é a revelação de diversas correspondências, páginas de diários, cadernos de viagem, registros cartoriais e outros documentos, que atestam o interesse da artista pela espiritualidade e pela filosofia.
Além disso, o farto material de imagens traz a variada produção de Schendel, que foi redescoberta nos anos 1980 e teve boa convivência com pintores e críticos naquela década.
Hoje, Schendel tem seus trabalhos vendidos por cifras milionárias, mesmo no caso das "Monotipias", que dava de graça a seus interlocutores. Na entrevista abaixo, Dias explica como a produção mais espiritual de Schendel foi mal recebida por setores da crítica de arte e estranha a aproximação da complexa relação de influências da suíço-brasileira com o engajamento político da produção de Ferrari, 88.

 

FOLHA - Como o sr. teve acesso aos diários, correspondências e documentos inéditos da artista?
GERALDO SOUZA DIAS
- A base era seu arquivo, que estava sendo organizado pela filha, Ada. Tinha o propósito de escrever alguma coisa sobre arte e espiritualidade, não tinha certeza se iria ser sobre a Mira.
Não tinha visto a Bienal de SP com curadoria do Nelson Aguilar [em 1994], mas eu sabia da importância que ela teve.
Tinha feito uma entrevista com Lygia Clark na época da faculdade e, inicialmente, achei estranho colocar os três [além de Schendel e Clark, Hélio Oiticica completava a tríade], e tentei pensar qual o artista que teria mais a ver com a questão da espiritualidade.

FOLHA - Na época, a recepção da obra de Mira era mais formal, não?
DIAS
- Ela estava tendo uma leitura póstuma muito ligada à ótica do minimalismo.
Essa questão de arte e espiritualidade aqui, na USP, era visto com mais reserva. Na Alemanha era diferente, havia uma tradição nesse estudo.
O que Ada achou mais interessante foi que eu estava fazendo o trabalho lá. A casa dela tinha vários quartos, num deles havia uma mapoteca imensa, com todas as "Monotipias", com muita coisa já organizada por ela e pelo viúvo, Knut.
Com base nisso, do que eu vi nesse arquivo, eu fotocopiei.

FOLHA - Ela veio de uma família de judeus tchecos, que passou pela Suíça, Itália e Alemanha. Na Segunda Guerra, passou pela Áustria, Hungria e Croácia e veio parar no Brasil, em Porto Alegre. Todos esses deslocamentos tiveram alguma influência em sua obra?
DIAS
- Isso ajudou a torná-la uma pessoa do mundo. Embora o lastro do livro seja a inserção dela na cultura e na arte contemporânea do Brasil, ela tem algo muito internacional.
Já veio com 30 anos para cá.
Por isso, não tem muito da identidade nacional.
Faço críticas à historiografia brasileira, muito formalista, e também à visão externa sobre a obra dela. A exposição do MoMA é um exemplo. Não tive contato com o Oramas [Luiz-Pérez, curador da mostra].
Não entendo porque juntar Ferrari com Mira só porque tem uma passagem dos dois com letras em seus trabalhos.
Quando o mercado internacional começou a se expandir e a se interessar pela arte latino-americana, acaba havendo essa visão do que é a arte brasileira, do que é a arte latino-americana, sempre em cima do exótico.

FOLHA - Ferrari tem uma obra marcadamente antirreligiosa. Já Mira, pelo seu livro, se interessava muito por arte e espiritualidade.
DIAS
- Acho o Ferrari um bom artista, sem dúvida, mas a impressão que me passa é de que sua obra é uma resposta mais superficial a fenômenos da cultura. Importantes, claro, mas a política exerce um papel mais decisivo em sua produção.
O fato de a ditadura ter sido muito mais forte e pronunciada na Argentina do que no Brasil fez com que os artistas de lá fossem mais engajados.

FOLHA - Ela sempre esteve afastada da política?
DIAS
- Ela não chegou a ser conservadora, mas era contra pegar em armas, e esse será um caminho que os dominicanos, ligados a ela, irão tomar. Nessa hora, ela tem medo e rompe com as pessoas mais diretamente envolvidas com isso.

FOLHA - Algumas das críticas negativas à obra de Mira são justamente quando explicita seu lado espiritual -quando Frederico Morais, um crítico prestigiado, afirmou que "não deu certo" a série "Homenagem ao Deus-Pai do Ocidente".
DIAS
- Peguei a frase da crítica dele no "Jornal do Brasil". Ele não explica com clareza porque não deu certo. Lembro bem dessa exposição, era quando a galeria Thomas Cohn ficava ainda no Rio, em 1975.
De repente, tinha aquelas frases estranhas, salmos bíblicos, e ainda para criar uma obra de arte. Mas não deu certo para quem? É uma visão que não permite que um trabalho tenha múltiplas leituras.
Nos anos 1950, um período bem interessante da cultura brasileira, havia uma diversidade muito maior de opiniões.
Havia desde um PC de carteirinha, como o Mário Schenberg, com uma sensibilidade para a arte que não tem nada a ver com o que se esperaria de um stalinista, que defende a arte abstrata.
Já Mário Pedrosa era mais viajado, estudou em Berlim, ligado politicamente ao trotskismo, que também tinha um discurso amplo. Acho que só agora as coisas estão mudando, e a crítica brasileira está se renovando, ficando mais aberta.


MIRA SCHENDEL - DO ESPIRITUAL À CORPOREIDADE
Autor: Geraldo Souza Dias
Editora: Cosac Naify (tel. 0/xx/11/ 3218-1444)
Quanto: R$ 170 (352 págs.)



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