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+Livros
Mira cheia de graça
Estudo
pioneiro
revela a faceta espiritual
de uma
das mais
importantes artistas brasileiras
Ela não
chegou a ser conservadora, mas era
contra pegar em armas
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MARIO GIOIA
DA REPORTAGEM LOCAL
Deus é amor." A frase
poderia batizar
uma igreja pentecostal, mas está
presente em um
dos desenhos da série "Homenagem ao Deus-Pai do Ocidente", feita por Mira Schendel
(1919-88) em 1975.
Ela é protagonista daquela
que deve ser a exposição com
mais visibilidade de um artista
brasileiro (no caso, suíço-brasileiro) em âmbito mundial neste ano. "Tangled Alphabets",
em cartaz no MoMA, em Nova
York, até o próximo dia 15 de
junho, une a obra de Schendel
com a do argentino León Ferrari, muito mais conhecida por
seu teor político.
Com a mostra, Schendel ganha publicações e reedições no
mercado editorial, das quais a
mais importante é "Do Espiritual à Corporeidade", de Geraldo Souza Dias, 54, artista plástico e professor na Escola de
Comunicações e Artes da USP.
O livro é uma versão revisada
do seu doutorado na Universität der Künste Berlin, publicado apenas na Alemanha, pela
editora Galda.
O trunfo da obra é a revelação de diversas correspondências, páginas de diários, cadernos de viagem, registros cartoriais e outros documentos, que
atestam o interesse da artista
pela espiritualidade e pela filosofia.
Além disso, o farto material
de imagens traz a variada produção de Schendel, que foi redescoberta nos anos 1980 e teve boa convivência com pintores e críticos naquela década.
Hoje, Schendel tem seus trabalhos vendidos por cifras milionárias, mesmo no caso das
"Monotipias", que dava de graça a seus interlocutores.
Na entrevista abaixo, Dias
explica como a produção mais
espiritual de Schendel foi mal
recebida por setores da crítica
de arte e estranha a aproximação da complexa relação de influências da suíço-brasileira
com o engajamento político da
produção de Ferrari, 88.
FOLHA - Como o sr. teve acesso aos
diários, correspondências e documentos inéditos da artista?
GERALDO SOUZA DIAS - A base era
seu arquivo, que estava sendo
organizado pela filha, Ada. Tinha o propósito de escrever alguma coisa sobre arte e espiritualidade, não tinha certeza se
iria ser sobre a Mira.
Não tinha visto a Bienal de
SP com curadoria do Nelson
Aguilar [em 1994], mas eu sabia
da importância que ela teve.
Tinha feito uma entrevista
com Lygia Clark na época da faculdade e, inicialmente, achei
estranho colocar os três [além
de Schendel e Clark, Hélio Oiticica completava a tríade], e tentei pensar qual o artista que teria mais a ver com a questão da
espiritualidade.
FOLHA - Na época, a recepção da
obra de Mira era mais formal, não?
DIAS - Ela estava tendo uma
leitura póstuma muito ligada à
ótica do minimalismo.
Essa questão de arte e espiritualidade aqui, na USP, era visto com mais reserva. Na Alemanha era diferente, havia uma
tradição nesse estudo.
O que Ada achou mais interessante foi que eu estava fazendo o trabalho lá. A casa dela
tinha vários quartos, num deles
havia uma mapoteca imensa,
com todas as "Monotipias",
com muita coisa já organizada
por ela e pelo viúvo, Knut.
Com base nisso, do que eu vi
nesse arquivo, eu fotocopiei.
FOLHA - Ela veio de uma família de
judeus tchecos, que passou pela Suíça, Itália e Alemanha. Na Segunda
Guerra, passou pela Áustria, Hungria e Croácia e veio parar no Brasil,
em Porto Alegre. Todos esses deslocamentos tiveram alguma influência em sua obra?
DIAS - Isso ajudou a torná-la
uma pessoa do mundo. Embora
o lastro do livro seja a inserção
dela na cultura e na arte contemporânea do Brasil, ela tem
algo muito internacional.
Já veio com 30 anos para cá.
Por isso, não tem muito da
identidade nacional.
Faço críticas à historiografia
brasileira, muito formalista, e
também à visão externa sobre a
obra dela. A exposição do MoMA é um exemplo. Não tive
contato com o Oramas [Luiz-Pérez, curador da mostra].
Não entendo porque juntar
Ferrari com Mira só porque
tem uma passagem dos dois
com letras em seus trabalhos.
Quando o mercado internacional começou a se expandir e
a se interessar pela arte latino-americana, acaba havendo essa
visão do que é a arte brasileira,
do que é a arte latino-americana, sempre em cima do exótico.
FOLHA - Ferrari tem uma obra marcadamente antirreligiosa. Já Mira,
pelo seu livro, se interessava muito
por arte e espiritualidade.
DIAS - Acho o Ferrari um bom
artista, sem dúvida, mas a impressão que me passa é de que
sua obra é uma resposta mais
superficial a fenômenos da cultura. Importantes, claro, mas a
política exerce um papel mais
decisivo em sua produção.
O fato de a ditadura ter sido
muito mais forte e pronunciada
na Argentina do que no Brasil
fez com que os artistas de lá fossem mais engajados.
FOLHA - Ela sempre esteve afastada da política?
DIAS - Ela não chegou a ser
conservadora, mas era contra
pegar em armas, e esse será um
caminho que os dominicanos,
ligados a ela, irão tomar. Nessa
hora, ela tem medo e rompe
com as pessoas mais diretamente envolvidas com isso.
FOLHA - Algumas das críticas negativas à obra de Mira são justamente
quando explicita seu lado espiritual
-quando Frederico Morais, um crítico prestigiado, afirmou que "não
deu certo" a série "Homenagem ao
Deus-Pai do Ocidente".
DIAS - Peguei a frase da crítica
dele no "Jornal do Brasil". Ele
não explica com clareza porque
não deu certo. Lembro bem
dessa exposição, era quando a
galeria Thomas Cohn ficava
ainda no Rio, em 1975.
De repente, tinha aquelas
frases estranhas, salmos bíblicos, e ainda para criar uma obra
de arte. Mas não deu certo para
quem? É uma visão que não
permite que um trabalho tenha
múltiplas leituras.
Nos anos 1950, um período
bem interessante da cultura
brasileira, havia uma diversidade muito maior de opiniões.
Havia desde um PC de carteirinha, como o Mário Schenberg, com uma sensibilidade
para a arte que não tem nada a
ver com o que se esperaria de
um stalinista, que defende a arte abstrata.
Já Mário Pedrosa era mais
viajado, estudou em Berlim, ligado politicamente ao trotskismo, que também tinha um discurso amplo. Acho que só agora
as coisas estão mudando, e a
crítica brasileira está se renovando, ficando mais aberta.
MIRA SCHENDEL
- DO ESPIRITUAL
À CORPOREIDADE
Autor: Geraldo Souza Dias
Editora: Cosac Naify (tel. 0/xx/11/
3218-1444)
Quanto: R$ 170 (352 págs.)
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