São Paulo, domingo, 03 de junho de 2001

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Uma resistência possível

Alain Touraine

Se o governo norte-americano pedir ao Congresso o "fast track" (aprovação rápida de acordos comerciais pelo Congresso) e o obtiver e se, por conseguinte, seu objetivo for o de criar uma zona de livre comércio em todo o continente até 2005, com que resistências e contrapropostas se chocará? A resposta a essa pergunta é tão desesperadora que todo o mundo procura, de maneira geralmente artificial, não formulá-la e muito menos ainda aceitar essa constatação.
Mas a realidade é tão indiscutível que é preciso ter a coragem de pronunciá-la: a América Latina, em seu conjunto, aceita se integrar à América do Norte. Veremos a seguir que há apenas uma exceção a essa impotência generalizada: o Brasil. Antes, porém, é preciso constatar o colapso político desse continente, onde, durante tanto tempo, tantos homens e mulheres esperavam que se acendessem as chamas da revolução. Em lugar dessa visão grandiosa, constatamos a incapacidade da maioria dos países em contestar os objetivos dos EUA ou de negociar algumas das consequências de seus projetos.
O caso mais importante é o do Chile. Com seu governo de centro-esquerda e sua tradição de defesa nacional da indústria do couro, poderíamos imaginar ver esse país -onde a ação da Corfo (Corporação de Fomento à Produção chilena) foi tão importante no passado- encabeçar a resistência dos produtores nacionais. Mas o que acontece é o contrário. O Chile, país com tradição de livre comércio, onde os movimentos de capitais sempre foram maiores do que os movimentos de bens industriais, escolheu o Norte em detrimento do Sul. Seu tratado comercial com o México, que deu tão bons resultados, o convenceu de que, em lugar de discutir isenções ou reduções de taxas com o Mercosul, deveria entrar o mais rápida e completamente possível na zona de livre comércio.
O segundo país mais importante a já ter se engajado com projetos americanos é a Colômbia. O país não consegue fazer frente a seus problemas internos. Em campo, os paramilitares têm mais vitórias contra o Exército de Libertação Nacional do que as tropas regulares, e o Plano Colômbia confere aos EUA uma grande capacidade de iniciativa, capacidade essa que se estende até o Equador. Sem dizê-lo abertamente, muitos dirigentes colombianos se satisfariam em ver os centros da droga se deslocar ou em direção ao Peru ou ao México. A violência desencadeada no país, que já lançou mais de 1 milhão de pessoas na precariedade e no desenraizamento, é em grande medida resultado da impotência política desse país, além de causa suplementar de seu agravamento.
Deixando de lado a Venezuela, cuja evolução ainda está parcialmente indecisa, a maior parte da zona andina, incluindo países como a Guatemala e a Nicarágua, depende de sua integração com o México, por meio do plano Puebla-Panamá, e não tem nem a capacidade nem o desejo de se opor a um plano americano. O Haiti é essencialmente dependente da vontade e dos recursos americanos.

Silêncio rompido Não devemos nos surpreender com o silêncio da América Latina, não rompido por gritos de grupos esquerdistas, trotskistas ou castristas. Na Cúpula das Américas, em Québec, esse silêncio latino-americano indicou claramente que quase todos os países estavam dispostos a seguir o caminho indicado pelos EUA, quer seja por convicção ou por dependência da América do Norte. O único país que ergueu a voz foi o Brasil.
Em primeiro lugar porque é o país latino-americano menos dependente dos EUA, já que seu imenso mercado interno diminui em muito a importância de seu comércio internacional; em seguida, porque o comércio internacional do Brasil se divide de maneira mais ou menos equilibrada entre a América do Norte, a Europa Ocidental e a Ásia e, para terminar, porque o país possui forte tradição de Estado, sendo representado em nível internacional por um presidente que já se mostrou capaz de defender suas idéias com a mesma facilidade em português, inglês, espanhol ou francês e que é uma personalidade respeitada em nível internacional. Mas o que o Brasil pode fazer para elaborar um projeto que não desemboque na dependência completa?
O primeiro obstáculo a superar vem dos próprios brasileiros, que desde a desvalorização e, portanto, do fim do Plano Real perderam a confiança em seu presidente. É verdade que essa confiança já foi parcialmente recuperada, mas uma parte dos meios intelectuais quer manter a interpretação que fez de Fernando Henrique Cardoso, a de um sociólogo de esquerda que se transformou em presidente de direita, adversário do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e amigo dos americanos.
Enquanto esse grande contra-senso não for abandonado, enquanto não se reconhecer, no Brasil e fora dele, que FHC é o único dirigente latino-americano capaz de se opor aos projetos americanos e que, por meio de alianças tanto perigosas quanto inevitáveis, ele continua a ser o homem de centro-esquerda que afirma ser, não se deve condená-lo como se fosse um agente dos organismos internacionais a serviço dos americanos. É preciso dizer em alto e bom som: a política de FHC, à qual se opõem apenas sonhos de ruptura revolucionária incapazes de sair do mundo das palavras para ingressar no universo da ação, foi a menos ruim possível.
A sucessão de FHC, agora próxima, pode imbuir a política brasileira de um voluntarismo maior, mas o Brasil, tal como é, continuará a ser o único centro possível de resistência a uma iniciativa unilateral dos Estados Unidos.
A segunda condição de uma política brasileira bem-sucedida é o renascimento do Mercosul, já que a desvalorização brasileira e a dolarização da economia argentina romperam a unidade dos dois países. Esse novo Mercosul precisa encontrar na Europa um parceiro disposto ao livre comércio, ou seja, disposto a oferecer a uma parte da América Latina pelo menos as forças capazes de contrabalançar as dos EUA.
No momento, essa solução "estepe" ainda parece distante de nós. Tudo depende do êxito da política do ministro Cavallo, na Argentina. Seu fracasso destruiria qualquer possibilidade de autonomia da América Latina. Já o restabelecimento da economia argentina seria capaz de infundir vida nova no Mercosul.

Defender a autonomia O quadro traçado acima é muito simplificado, mas se apresenta assim porque mostra a extrema fraqueza da América Latina e a impossibilidade de imaginar outra linha de resistência senão a que acaba de ser definida. O México, que tomou a iniciativa de entrar na América do Norte, não pode mais assumir a liderança de um movimento contra uma tendência que ele próprio incentivou. Os brasileiros, por sua parte, não podem se limitar a esperar passivamente que a Argentina saia de sua grande crise. Eles devem voltar a confiar em seu presidente e a formular suas reivindicações.
A campanha presidencial que terá início em breve deverá se centrar em torno do reforço da capacidade do país e de todo o continente em defender sua autonomia de decisão e de elaborar projetos de atividade que associem o crescimento econômico a uma nova capacidade de ação política que, ela própria, não poderá ser separada de projetos de transformação social.
Mas voltemos à primeira constatação: o conjunto da América Latina, com a possível exceção do Brasil, se apresenta hoje incapaz de tomar decisões diante de um projeto americano que mereceria pelo menos ser discutido, já que, embora com certeza não seja inteiramente negativo para o continente, não contém mais apenas elementos positivos para ele. Está mais do que na hora de os países do continente tomarem consciência de seu silêncio diante das propostas e dos projetos dos Estados Unidos.


Alain Touraine é sociólogo, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (França) e autor de "A Crítica da Modernidade" (ed. Vozes).

Tradução de Clara Allain.


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