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Uma resistência possível
Alain Touraine
Se o governo norte-americano pedir ao Congresso o "fast track"
(aprovação rápida de acordos comerciais pelo Congresso) e o obtiver e se, por conseguinte, seu objetivo for
o de criar uma zona de livre comércio em
todo o continente até 2005, com que resistências e contrapropostas se chocará?
A resposta a essa pergunta é tão desesperadora que todo o mundo procura, de
maneira geralmente artificial, não formulá-la e muito menos ainda aceitar essa
constatação.
Mas a realidade é tão indiscutível que é
preciso ter a coragem de pronunciá-la: a
América Latina, em seu conjunto, aceita
se integrar à América do Norte. Veremos
a seguir que há apenas uma exceção a essa impotência generalizada: o Brasil. Antes, porém, é preciso constatar o colapso político desse continente, onde, durante
tanto tempo, tantos homens e mulheres
esperavam que se acendessem as chamas
da revolução. Em lugar dessa visão grandiosa, constatamos a incapacidade da
maioria dos países em contestar os objetivos dos EUA ou de negociar algumas
das consequências de seus projetos.
O caso mais importante é o do Chile.
Com seu governo de centro-esquerda e
sua tradição de defesa nacional da indústria do couro, poderíamos imaginar ver
esse país -onde a ação da Corfo (Corporação de Fomento à Produção chilena) foi tão importante no passado- encabeçar a resistência dos produtores nacionais. Mas o que acontece é o contrário. O Chile, país com tradição de livre
comércio, onde os movimentos de capitais sempre foram maiores do que os
movimentos de bens industriais, escolheu o Norte em detrimento do Sul. Seu
tratado comercial com o México, que
deu tão bons resultados, o convenceu de
que, em lugar de discutir isenções ou reduções de taxas com o Mercosul, deveria
entrar o mais rápida e completamente
possível na zona de livre comércio.
O segundo país mais importante a já
ter se engajado com projetos americanos
é a Colômbia. O país não consegue fazer
frente a seus problemas internos. Em
campo, os paramilitares têm mais vitórias contra o Exército de Libertação Nacional do que as tropas regulares, e o Plano Colômbia confere aos EUA uma
grande capacidade de iniciativa, capacidade essa que se estende até o Equador.
Sem dizê-lo abertamente, muitos dirigentes colombianos se satisfariam em
ver os centros da droga se deslocar ou em
direção ao Peru ou ao México. A violência desencadeada no país, que já lançou
mais de 1 milhão de pessoas na precariedade e no desenraizamento, é em grande
medida resultado da impotência política
desse país, além de causa suplementar de
seu agravamento.
Deixando de lado a Venezuela, cuja
evolução ainda está parcialmente indecisa, a maior parte da zona andina, incluindo países como a Guatemala e a Nicarágua, depende de sua integração com
o México, por meio do plano Puebla-Panamá, e não tem nem a capacidade nem
o desejo de se opor a um plano americano. O Haiti é essencialmente dependente da vontade e dos recursos americanos.
Silêncio rompido Não devemos
nos surpreender com o silêncio da América Latina, não rompido por gritos de
grupos esquerdistas, trotskistas ou castristas. Na Cúpula das Américas, em
Québec, esse silêncio latino-americano
indicou claramente que quase todos os
países estavam dispostos a seguir o caminho indicado pelos EUA, quer seja por
convicção ou por dependência da América do Norte. O único país que ergueu a
voz foi o Brasil.
Em primeiro lugar porque é o país latino-americano menos dependente dos
EUA, já que seu imenso mercado interno
diminui em muito a importância de seu
comércio internacional; em seguida,
porque o comércio internacional do Brasil se divide de maneira mais ou menos
equilibrada entre a América do Norte, a
Europa Ocidental e a Ásia e, para terminar, porque o país possui forte tradição
de Estado, sendo representado em nível
internacional por um presidente que já
se mostrou capaz de defender suas idéias
com a mesma facilidade em português,
inglês, espanhol ou francês e que é uma
personalidade respeitada em nível internacional. Mas o que o Brasil pode fazer
para elaborar um projeto que não desemboque na dependência completa?
O primeiro obstáculo a superar vem
dos próprios brasileiros, que desde a desvalorização e, portanto, do fim do Plano
Real perderam a confiança em seu presidente. É verdade que essa confiança já foi
parcialmente recuperada, mas uma parte dos meios intelectuais quer manter a
interpretação que fez de Fernando Henrique Cardoso, a de um sociólogo de esquerda que se transformou em presidente de direita, adversário do Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e
amigo dos americanos.
Enquanto esse grande contra-senso
não for abandonado, enquanto não se
reconhecer, no Brasil e fora dele, que
FHC é o único dirigente latino-americano capaz de se opor aos projetos americanos e que, por meio de alianças tanto
perigosas quanto inevitáveis, ele continua a ser o homem de centro-esquerda
que afirma ser, não se deve condená-lo
como se fosse um agente dos organismos
internacionais a serviço dos americanos.
É preciso dizer em alto e bom som: a política de FHC, à qual se opõem apenas sonhos de ruptura revolucionária incapazes de sair do mundo das palavras para
ingressar no universo da ação, foi a menos ruim possível.
A sucessão de FHC, agora próxima,
pode imbuir a política brasileira de um
voluntarismo maior, mas o Brasil, tal como é, continuará a ser o único centro
possível de resistência a uma iniciativa
unilateral dos Estados Unidos.
A segunda condição de uma política
brasileira bem-sucedida é o renascimento do Mercosul, já que a desvalorização
brasileira e a dolarização da economia
argentina romperam a unidade dos dois
países. Esse novo Mercosul precisa encontrar na Europa um parceiro disposto ao livre comércio, ou seja, disposto a oferecer a uma parte da América Latina pelo
menos as forças capazes de contrabalançar as dos EUA.
No momento, essa solução "estepe"
ainda parece distante de nós. Tudo depende do êxito da política do ministro Cavallo, na Argentina. Seu fracasso destruiria qualquer possibilidade de autonomia da América Latina. Já o restabelecimento da economia argentina seria capaz de infundir vida nova no Mercosul.
Defender a autonomia O quadro
traçado acima é muito simplificado, mas
se apresenta assim porque mostra a extrema fraqueza da América Latina e a impossibilidade de imaginar outra linha
de resistência senão a que acaba de ser
definida. O México, que tomou a iniciativa de entrar na América do Norte, não
pode mais assumir a liderança de um
movimento contra uma tendência que
ele próprio incentivou. Os brasileiros,
por sua parte, não podem se limitar a esperar passivamente que a Argentina saia de sua grande crise. Eles devem voltar a
confiar em seu presidente e a formular
suas reivindicações.
A campanha presidencial que terá início em breve deverá se centrar em torno
do reforço da capacidade do país e de todo o continente em defender sua autonomia de decisão e de elaborar projetos
de atividade que associem o crescimento
econômico a uma nova capacidade de
ação política que, ela própria, não poderá ser separada de projetos de transformação social.
Mas voltemos à primeira constatação:
o conjunto da América Latina, com a
possível exceção do Brasil, se apresenta
hoje incapaz de tomar decisões diante de
um projeto americano que mereceria pelo menos ser discutido, já que, embora
com certeza não seja inteiramente negativo para o continente, não contém mais
apenas elementos positivos para ele. Está
mais do que na hora de os países do continente tomarem consciência de seu silêncio diante das propostas e dos projetos dos Estados Unidos.
Alain Touraine é sociólogo, diretor da Escola de
Altos Estudos em Ciências Sociais (França) e autor
de "A Crítica da Modernidade" (ed. Vozes).
Tradução de Clara Allain.
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