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+ polêmica
O deputado Aldo Rebelo rebate as críticas ao seu projeto de lei feitas pelo linguista Carlos Faraco
A neolíngua neoliberal
Aldo Rebelo
especial para a Folha
"Acreditávamos num mundo sem fronteiras,
mais solidário, e a palavra patriotismo se fazia esquecida. Hoje é dele que precisamos: tudo mudou. A nossa soberania está ameaçada, e defendê-la deve ser nossa maior preocupação."
(Oscar Niemeyer, arquiteto)
"Na verdade, a língua configura, como acentua Hayek, uma Ordem Espontânea do mesmo tipo do que o Mercado capitalista."
(J.O. de Meira Penna, escritor)
O artigo 13º da Constituição assegura a todos os brasileiros o direito de se comunicarem em
língua portuguesa: "A língua
portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil", diz o singelo artigo. Confesso que temo pelo futuro do
modesto dispositivo constitucional. Sobreviverá ele ao furor desconstitucionalizante que retirou direitos básicos e desfigurou o texto constitucional?
Já há quem aponte nele aberrações e
deformidades da mesma natureza dos
chamados direitos adquiridos ou da simples distinção entre empresa brasileira
de capital nacional e empresa brasileira
de capital estrangeiro, estes já devidamente banidos da Constituição pela onda modernizante.
Terá razão Niemeyer ou os que como
ele pensam que a face atual do internacionalismo é se integrar à corrente dos
povos que defendem sua identidade, sua
língua, culinária, herança cultural contra
a ditadura uniformizadora e empobrecedora da globalização de mão única?
Ou terá razão Friedrich von Hayek
(1899-1992), o economista austríaco,
profeta da tirania do mercado e do atual
neoliberalismo? A língua, como o mercado, dispensa a mediação das leis e dos Estados nacionais? Ou tanto uma como o
outro, criação e expressão de relações sociais forjadas no entrechoque dos interesses de seus criadores, agrupados em
etnias, classes e nações no atual período
da história humana, carecem de regras
que bloqueiem o darwinismo econômico, social e o linguístico?
A língua é algo vivo, que precisa respirar e, não duvido, se enriquece e fortalece
em contato com outras línguas e culturas. É viva justamente porque é um fato
das relações sociais e não tem, como parecem acreditar ilustres professores, vida
própria independente da ação dos homens e da sociedade.
A vulgaridade dos argumentos de alguns detratores do projeto que apresentei na Câmara dos Deputados se deveu,
creio eu, à ignorância desse ambiente político, ideológico e cultural carregado de
conflitos que conduzem para a encruzilhada da sobrevivência ou da degradação
de povos e nações em todos os quadrantes da terra.
Falso debate Daí a imposição do falso debate: proibir ou não proibir estrangeirismos. Esquecem a essência do projeto (se é que por ela se interessaram), no
seu artigo segundo:
"I. Melhorar as condições de ensino e
de aprendizagem da língua portuguesa
em todos os graus, níveis e modalidades
da educação nacional;
II. Incentivar o estudo e a pesquisa sobre os modos normativos e populares de
expressão oral e escrita do povo brasileiro;
III. Realizar campanhas e certames
educativos sobre o uso da língua portuguesa, destinados a estudantes, professores e cidadãos em geral;
IV. Incentivar a difusão do idioma português, dentro e fora do país;
V. Fomentar a participação do Brasil
na comunidade dos países de língua portuguesa;
VI. Atualizar, com base em parecer da
Academia Brasileira de Letras, as normas do Formulário Ortográfico, com
vista ao aportuguesamento e à inclusão
de vocábulos de origem estrangeira no
Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa.
Acrescenta ainda o mesmo artigo: "Os
meios de comunicação de massa e as instituições de ensino deverão, na forma
dessa lei, participar ativamente da realização prática dos objetivos listados nos
incisos anteriores" (pár. 1º).
Acusam-me agora de alimentar o mito
da língua única. "Data venia", quem sou
eu para arcar com o peso de tão grave
acusação. Por favor, senhores, o "mito"
foi construído por falantes e artífices da
língua mais, mas muito mais mesmo,
ilustres, doutos e/ou talentosos do que o
modesto escrevinhador destas linhas.
Querem ver? Camões, Bocage, Eça, Vieira, Machado, Euclides, Drummond, Chico Buarque, Elomar, Cartola, Ariano.
Há outros, populares, mas não menos
talentosos, que podem assumir o madeiro e a via-crúcis do crime da língua única: Inácio da Catingueira (negro, escravo, analfabeto, paraibano, talvez o mais
importante poeta repentista do século
19, provavelmente ignorado em certos
ambientes acadêmicos assaltados pelo
desamor ao idioma pátrio), Severino
Pinto, José Pacheco, Leandro Gomes de
Barros, para não falar dos atuais Ivanildo
Vilanova, Geraldo Amâncio, Oliveira de
Panelas, Jayme Caetano Braun (este gaúcho), entre tantos que cobriram e cobrem de bondade e beleza a língua portuguesa e o Brasil com seus versos, repentes e cordéis.
Recentemente, em debate em prestigiada universidade do Sul, ilustre professora acresceu ao mito da língua única o
mito da unidade territorial. Agora sou
acusado de propagar o mito do território
único. Imaginei uma conferência mundial para redesenhar todas as fronteiras
alteradas ao longo dos séculos por guerras e processos coloniais violentos.
Perguntei se o mito se referia apenas à
unidade territorial do Brasil ou se o questionamento se estendia para além de
nossas fronteiras. Pensei, por exemplo,
nos Estados Unidos diante de uma corte
internacional devolvendo um terço do
território usurpado dos mexicanos.
De qualquer forma lembrei nossa professora de que o discurso do combate ao
mito da unidade territorial brasileira "cai
bem" para pretendentes mais do que conhecidos aos recursos da biodiversidade
amazônica.
Intelectuais colonizados Frantz
Fanon foi médico, psicanalista e escritor.
Nasceu na Martinica, mas assumiu a
causa da independência da Argélia, nos
anos 50 e 60, e escreveu uma obra -"Os
Condenados da Terra"- considerada a
bíblia das lutas de libertação nacional daquele período. Ele observou que o intelectual colonizado "lança-se freneticamente na aquisição furiosa da cultura do
ocupante, tendo o cuidado de caracterizar pejorativamente a sua cultura nacional, ou se acantona na enumeração circunstanciada, metódica, passional e rapidamente estéril dessa cultura".
Para Fanon, "se a cultura é a manifestação da consciência, não hesitarei em afirmar, no caso que nos ocupa, que a consciência nacional é a forma mais elaborada de cultura". Bem, dirão alguns, eram
outros tempos, tempos de intelectuais
como Fanon.
Ah, mas há tantas humilhações, e muito piores, em límpido português. Por que
se preocupar com mais uma, o abuso do
estrangeirismo? É a fala do algoz a justificar o maltrato; quem sabe, um ato falho.
Aldo Rebelo é deputado federal pelo PC do B de
São Paulo.
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