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Uma paródia lúdica da história
Marcelo Coelho
Colunista da Folha
Tem-se a impressão de que o autor
deste livro se divertiu muito ao escrevê-lo. O leitor também se diverte; mas um pouco menos. A
história é interessante e movimentada. É
fácil segui-la, mas não leva a nenhum lugar.
Sinval Medina conta as aventuras de
um personagem real, o pianista e compositor americano Louis Moreau Gottschalk (1829-1869). Gottschalk é o autor
de uma famosa "Fantasia Triunfal sobre
o Hino Nacional Brasileiro"; passou seus
últimos anos de vida no Rio de Janeiro,
tornou-se amigo do imperador d. Pedro
2º, obteve grande sucesso com seus concertos e morreu, segundo a contracapa
do livro, em "circunstâncias misteriosas". O romancista imagina a verdadeira
causa da morte de Gottschalk -uma intriga romântica, um rival, um artigo injurioso num jornal, um duelo.
Acrescenta a isso a intervenção de uma
feiticeira vodu de Nova Orleans (cidade
natal do compositor), a presença de um
simpático ajudante de Gottschalk, o mulato Benedito Calazans, e descrições ligeiras sobre a situação política no Brasil
de 1869, quando se viviam os estertores
da Guerra do Paraguai. Toda a história
de Gottschalk é narrada, ou rememorada, por um outro personagem, o milionário José Maria Sales Fernandes, que no
ano de 1926 se dispõe também a contar o
naufrágio do qual sobreviveu, ocorrido
dez anos antes no litoral de Ilhabela.
Há aí bastante material para lances folhetinescos, reconstituições de época,
mudanças de foco narrativo. O leitor vai
acompanhando tudo com um sorriso
nos lábios; "O Herdeiro das Sombras"
não é um mau entretenimento.
A energia do autor não se concentra,
todavia, na construção do enredo; sua
principal motivação é a de imitar, na escrita, o modo de falar da classe alta no
Rio de 1869. Ninguém -nem o americano Gottschalk nem o mulato Benedito
Calazans- escapa ao empenho de Sinval Medina em reunir a cada frase o máximo de expressões fora de moda e termos em desuso. Veja-se esse exemplo.
Um pianista brasileiro, Arthur Napoleão, vai interpretar num sarau algumas
composições de Gottschalk. Começa
desculpando-se: não tem o talento do
mestre. "Um macaréu de não-apoiados
agitou o mar de cabeças que fremia no
salão. Acalmada a bulha, Napoleão sentou-se ao grande Érard (...)."
Outro exemplo; mantenho a grafia do original. O jovem Benedito Calazans diz a Gottschalk que não tem talento. "Em
matéria de música, é tanta a minha estultice que nem mesmo o melhor professor
do mundo teria o condão de desasnar-me." Gottschalk responde: "Deixa-te de
chistes, menino. Podes não ter o sopro
mágico que bafeja à nascença os artistas
de gênio. Mas nem só de
Mozarts e Beethovens vive a música. Teu engenho
basta e sobeja para fazer-te um instrumentista ou
compositor de razoável
competência" (sic).
Por quase 400 páginas,
acumulam-se os "peralvilhos", os "verrinistas" que se recusam a dedicar "bajoujos" ao pianista. Não se vê bem, exceto
por uma vaga intenção humorística, qual
o sentido desse pastiche. Talvez seja justamente o fato de tudo ser sem sentido
que Sinval Medina quer destacar. Na
orelha do livro, Alfredo Bosi nota a voga
"pós-moderna" de parodiar o gênero do romance
histórico.
Essa abordagem irônica, mas não crítica (uma
ironia "branca", no dizer
do teórico Fredric Jameson), parece encarar a história como algo destituído de importância, como curiosidade, exotismo e quinquilharia. O sentimento não é deslocado
quando se pensa nas elites brasileiras sob
d. Pedro 2º. Mas é uma opção do autor, a
de limitar-se a isso.
Medina não parece ver, no material escolhido, nada além de quinquilharia, decidindo-se por uma abordagem simplesmente divertida. Os próprios personagens se transformam em esboços, veículos para um exercício estilístico não dos
mais difíceis; sem crítica nem enternecimento diante do passado, essa reconstituição "lúdica" não desagrada de todo,
mas é também de pouco interesse.
O Herdeiro das Sombras
376 págs., R$ 35,00
de Sinval Medina. Mandarim
(av. Raimundo Pereira de Magalhães, 3.305, CEP 05145-200,
SP, tel. 0/xx/11/3649-4600).
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