São Paulo, domingo, 03 de junho de 2001

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MILLÔR

Todo médico é excelente. O mal é que um leva a outro.

A GRUTA

Pequenas histórias de alto valor moral

Ingmar era um homem que vivia pobre, mas contente de sua pobre vida. Sem dinheiro para comer, e sem pão para sustentar os filhos, sem o que dar à mulher no principio do mês (nem no meio, pra falar nisso), ele, no entanto, conseguia manter, na boca de não tantos dentes, um sorriso de paz diante do mundo. Ia ao supermercado apreciar os amigos fazendo compras, acompanhava os filhos à sorveteria para ver os outros meninos pedirem marshmallow e levava a mulher à praia pra lhe mostrar como as outras mulheres eram belas e nítidas - nítidas, disse-o bem? - em seus pequenos maiôs justos nas partes. Ingmar fazia seu próprio pão do pão dos outros, bebia sua água em copo alheio e, naturalmente, respirava o livre ar das grandes democracias.
Súbito, súbito como os ventos sudoeste que vêm do norte, o sopro da prosperidade espantou-lhe os cabelos. Um dia deram-lhe um pacotinho de amendoim. Sentou-se numa esquina para comê-lo, mas, antes que o fizesse, alguém arrancou-lhe o pacote da mão e jogou-lhe uma moeda. E Ingmar viu que, com aquela moeda, podia comprar dois pacotes de amendoim. E Ingmar sentou sentou-se de novo à esquina e passantes lhe tirarm os pacotes e lhe jogaram moedas. E Ingmar viu que tinha lucro. E Ingmar viu que o lucro era bom. E logo Ingmar estava sentado à esquina com todos os membros da família, cobertos de pacotes e cobertos de moedas, e logo seu comércio cresceu, e cedo Ingmar tinha, naquela mesma esquina, um supermercado, que assim crescem os cogumelos, os Sendas e os Mappins desta vida.
E aí tudo mudou. Mudou Ingmar. Mudou a esposa. Os filhos mudaram. E tiveram sapatos e usaram -meias e tomaram banhos e sentiram o desejo de perfumes e cinemas, e teatros e relações. E cada um deixou de cortar o próprio cabelo, como tinham feito durante anos e anos, e passaram a usar profissionais especializados chamados barbeiros e cabeleireiros. E deixaram de andar a pé . E começaram a jantar e almoçar, conforme fosse dia ou noite. Passaram a viver cercados de criados e exigências. De necessidades e contas a pagar. E tudo começou a ser luxo e dissolução e decadência, e Ingmar começou a perder contato com os filhos e com a mulher.
Mas um dia, na hora de dormir, Ingmar percebeu que errara o rumo de sua vida. Sentiu que antes era mais feliz, muito mais feliz, porque não estava preso aos grilhões do mundo, não estava acorrentado às cadeias de ouro do mundo do poder. Pensou durante alguns dias, e, afinal, num momento raro em que conseguiu reunir os filhos e a mulher, falou-lhes de seus sentimentos. Para surpresa sua, os filhos e a mulher também pensavam da mesma maneira. Emocionados, choraram um pouco e resolveram agir. E, a partir do dia seguinte, começaram a se desfazer de tudo, a dar tudo, jogando o que sobrava pelas janelas. Os jornais noticiaram, houve escândalo, mas eles de novo se sentiam felizes, na imensa tranqüilidade espiritual dos que nada têm senão o que carregam consigo. Dentro de si. E como, naturalmente, não poderiam voltar à vida antiga no mesmo local, trataram de mudar-se. E foram para as montanhas distantes, pois naquele tempo ainda havia duas ou três montanhas distantes, onde as mineradoras, os garimpeiros e o Sebastião Salgado ainda não tinha chegado.
Nas montanhas, depois de dois ou três dias de procura, Ingmar descobriu ampla caverna, e ali, homem bem primitivo, instalou-se, contente, com a mulher e os filhos. E foram muito felizes. Por algum tempo. Até que o leão voltou e devorou a todos.

MORAL: Só os animais ferozes conseguem manter total simplicidade.

Site do Millôr: www.uol.com.br/millor



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