São Paulo, domingo, 03 de junho de 2001

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+ literatura

Há cem anos morria o autor de "Menino de Engenho"

José Lins do Rego

um contador de histórias

Gentil de Faria
especial para a Folha

A celebração do centenário de nascimento de José Lins do Rego é um momento propício para reler seus romances e refletir sobre sua fortuna crítica no âmbito dos estudos de literatura brasileira. Embora muitas notas biográficas, incluindo o site da Academia Brasileira de Letras na internet (www.academia.org.br), informem que o autor nasceu em 3 de julho de 1901, o mês correto é junho, erro provavelmente disseminado pela proximidade de grafia, diferenciada em apenas uma letra.
O local de nascimento do romancista, que antes aparecia pacificamente em todas as fontes como sendo Engenho Corredor, município de Pilar, na Paraíba, começou a ser contestado pelo pesquisador Nestor Pinto de Figueiredo. Pesquisando em vários documentos, descobriu ele a certidão de nascimento do escritor, que declara ter o mesmo nascido no Engenho Tapuá, em São Miguel do Taipu, que à época fazia parte do município de Cruz do Espírito Santo. Entretanto as demais certidões pessoais, como as de batismo, casamento religioso e civil, identidade, carteira profissional e atestado de óbito, todas levantadas por Figueiredo, não mencionam nenhum lugar nem atestam como sendo Pilar.
A descoberta de outro local como o provável lugar de nascimento traz uma novidade nos estudos zelinianos. O próprio escritor, pelo que sei, nunca mencionou essa divergência, pois sempre se identificava como natural de Pilar, que é evocada como sua terra natal até em visita, que faz acompanhado de Cícero Dias, à famosa catedral de Chartres, onde vê a Virgem Negra com o menino Deus nos braços. "É a Nossa Senhora do Pilar. Lembrei-me então da terra paraibana, onde nascera, do Pilar humilde e tosco da várzea, e olhei para a doce negra, de olhar tão manso e lhe pedi para a minha gente", recorda ele em suas impressões de viagem -"Bota de Sete Léguas" (1952).
Ao longo desses quase 70 anos, desde a apreciação pioneira de João Ribeiro, por ocasião da publicação de "Menino de Engenho" (1932), até hoje, a crítica consolidou o perfil literário de José Lins com os seguintes traços: regionalista, memorialista, documental, autobiográfico, de estilo desleixado e sem esmero de construção, contador de histórias e apático, além de pouco engajado nas questões políticas, especialmente quando comparado com Graciliano Ramos.
O romancista via nessas rotulações e juízos desfavoráveis, sobretudo os emitidos pelos críticos do sul, um preconceito em relação a sua obra. Com energia, procurou rechaçar em ensaios e entrevistas o que chamava de "separatismo literário", que estabelecia a existência de dois brasis: "O do Norte, donde vem uma péssima literatura, e o do Sul, donde vem uma ótima literatura". "Romance do Norte", dizia enfezado, "é puro documento; romance do Sul, todo alma, todo vida interior, mesmo quando o romance não seja nada".
Ele se insurgia até contra o rótulo "literatura nordestina", aparentemente utilizado sem preconceitos pelos que ele chamava de críticos do sul, como Sérgio Milliet, que, segundo ele, assim agia para "humilhá-la, para dar-lhe limites estreitos". Atacando Milliet, Lins não poupa nem Mário de Andrade, dizendo que o herói Macunaíma "é tão pouco humano e tão artificial quanto o boníssimo Peri, de Alencar". Anos mais tarde, porém, após ler os elogios feitos pelo escritor paulista a "Riacho Doce" e "Fogo Morto", reconhece que fora injusto para com Mário e o chama de sábio e mestre.


A angústia de ser rotulado de regionalista, cristalizada pela crítica, levou-o a praticar ousadas mudanças estéticas, numa tentativa de fugir da temática memorialista de escritor de engenhos mortos


A brasilidade, o apego à terra e as recordações da infância são as características apontadas pela crítica que mais o alegravam.
Que não o chamassem de escritor regionalista, caracterização que abominava com veemência, pensando que o rótulo diminuía o valor de sua obra. No terreno minado das influências, só aceitava as recebidas dos cegos cantadores de feira da Paraíba e das histórias da velha Totônia, que ouvira na infância. A presença de escritores estrangeiros em sua ficção só será admitida muito mais tarde nos ensaios, cartas e entrevistas.
A angústia de ser rotulado de regionalista, cristalizada pela crítica, levou-o a praticar ousadas mudanças estéticas, numa tentativa de fugir da temática memorialista de escritor de engenhos mortos. Essa guinada de inspiração literária é tomada após o quinto romance, "Usina" (1936), quando resolve encerrar o chamado romance do ciclo da cana-de-açúcar e passa a fazer experimentações artísticas com temas que não o identificavam como escritor da decadência da sociedade rural e patriarcal do Nordeste.
Assim, com esse deliberado propósito, começa uma nova série de quatro romances não identificados com a "cor local" de sua meninice nos canaviais. Essa fase vai de 1937, com a publicação de "Pureza", passando por "Pedra Bonita" e "Riacho Doce", até "Água-Mãe", publicado em 1941, e compreende romances menores, segundo o consenso crítico.
Não tão bem-sucedido fora do que sabia fazer espontaneamente, José Lins volta para o seu tema favorito e escreve "Fogo Morto" (1943), sua obra-prima, que merece figurar numa lista dos dez melhores romances da literatura brasileira. Para tomar essa atitude de retorno às origens, muito o ajudou o conselho dado por Manuel Bandeira, reconhecido pelo próprio romancista: "Você não deve sair do Nordeste. Você é motor que só funciona bem queimando bagaço de cana". "De fato, Manuel Bandeira tinha razão", concorda ele com o poeta.
O prefácio de Otto Maria Carpeaux, com o superlativo título "O Brasileiríssimo José Lins do Rego", no qual refuta as pretendidas influências de Thomas Hardy (1840-1928) e D.H. Lawrence (1888-1935) apontadas por Álvaro Lins, foi de enorme agrado ao romancista.
O crítico austríaco, então recém-chegado ao Brasil, fugindo da guerra, enaltece as qualidades de "homem da terra" e suas virtudes de contador de histórias. Segundo ele, José Lins é o último representante dos contadores de histórias no Brasil. "Com ele, a espécie extinguir-se-á", conclui.
Obviamente, o fato de ter recebido influência estrangeira não representa nenhum demérito à obra de José Lins nem diminui o seu brasileirismo insistentemente apontado pelo crítico, que prestou enorme contribuição à inteligência brasileira ao revelar, paradoxalmente, os escritores europeus mais importantes e até então pouco conhecidos no Brasil da época.
O próprio romancista reconheceu, nos ensaios e cartas, as influências assimiladas de autores estrangeiros. Sua maior personagem, o capitão Vitorino Carneiro da Cunha, foi inspirada em Dom Quixote, segundo ele mesmo confessa em carta de 24 de maio de 1943, dirigida a Gilberto Freyre: "Ontem acabei o meu novo romance. Nada lhe posso dizer. Fiz de herói do livro um bobo de engenho, o capitão Vitorino Carneiro da Cunha, vulgo Papa-Rabo. Não sei se consegui vencer as dificuldades, mas procurei dar ao meu velho Papa Rabo um relevo de Quixote dos canaviais".
José Carlos Garbuglio apontou a presença de reminiscências de leituras de "Os Maias" e de "A Ilustre Casa de Ramires", de Eça de Queirós, um dos autores mais admirados por José Lins pelo estilo libertador, sem amarras com a gramática tradicional.
Garbuglio encontra em "Bangüê" uma "certa aura queirosiana" perceptível com as aproximações que faz entre as personagens Afonso da Maia e o coronel José Paulino; e Carlos de Melo com Gonçalo Ramires.
Dentro dos limites deste artigo, não é possível analisar com vagar a sensível influência exercida pelos romancistas ingleses Thomas Hardy e D.H. Lawrence na ficção zeliniana, estudo que sairá em livro em andamento. Esses autores, também reconhecidos pelo próprio José Lins como uma de suas fontes, muito contribuíram para que o brasileiro encontrasse seu caminho na elaboração dos temas da decadência da sociedade rural, fatalidade do destino e fracasso humano (Hardy) e sensualismo lírico-erótico (D.H. Lawrence).
Marcas das leituras dos romances "Judas, o Obscuro", "Tess" e "O Retorno do Nativo", de Thomas Hardy; e de "O Amante de Lady Chatterley" e "Filhos e Amantes", de D.H. Lawrence, todos lidos em tradução francesa, são encontradas, às vezes em forma de referência expressa, em 12 romances de Lins do Rego. Essa constatação, feita após minucioso cotejo de textos e fontes, em nada diminui o valor literário do combativo romancista brasileiro. Ao contrário, a intertextualidade produzida com a leitura desses autores ingleses, também impregnados da "cor local", arraigados às tradições rurais e contrários aos avanços da sociedade tecnológica como ele, é o admirável resultado artístico produzido pelo encontro de José Lins consigo mesmo.

Gentil de Faria é professor de literatura inglesa e teoria da literatura comparada na Universidade Estadual de São Paulo em São José do Rio Preto. Escreve, atualmente, um livro sobre as influências inglesas em José Lins do Rego.


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