São Paulo, domingo, 03 de junho de 2007

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Candomblé clínico

"O Animismo Fetichista dos Negros Baianos" associa tradições africanas a teorias em voga no século 19 sobre histeria e sonambulismo

ISAIAS PESSOTTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Embora nesta obra de 1896-7 Raimundo Nina Rodrigues [1862-1906] pretendesse relatar "com animo scientifico" suas "perquirições" para resolver um "problema de ethologia pratica", seu talento literário transformou o relato numa narrativa envolvente e rica de episódios, personagens e depoimentos, que expõe em detalhes as profundas raízes culturais africanas das crenças e costumes das comunidades negras da Bahia.
O texto aponta a difusão dos terreiros de candomblé (que ali chegariam a milhares) e a estreita relação entre a pureza das crenças e ritos e o relativo confinamento das comunidades escravas.
Um confinamento que garantia também a diversidade de credos de grupos provenientes de diferentes países africanos.
Alguns deles, muito isolados, como os malês, de orientação muçulmana, vítimas de brutal repressão policial, pois várias sedições de escravos brotavam dos grupos religiosos mais fechados.
O relato copioso sobre as crenças, os rituais, a hierarquia de poderes nos diferentes "terreiros de santo" ou sobre a mitologia que os fundamenta é o de quem freqüentava, "com animo scientifico" (mas também com uma curiosidade fascinada) diferentes terreiros, assistindo a numerosos "estados de santo".
De alguém que conversava, com certa familiaridade, com "mães de terreiro", como "a Livaldina" ou "a Thecla", "a Isabel" ou "a filha da Julia", e que, por ser profano, só pôde assistir às escondidas ao ritual inteiro de iniciação da jovem Olympia, narrado em detalhes no texto.

Xangô, Ogum, Exu
A significação dos adereços litúrgicos, dos objetos e locais sagrados e, sobretudo, os poderes atribuídos aos fetiches e a entidades sobrenaturais como Xangô, Ogum, Exu e outras são comentados de modo a ilustrarem cabalmente a visão animista no candomblé e a crença, resultante, nos poderes dos fetiches e dos pais e mães-de-santo.
O "problema de ethologia pratica" a ser resolvido, conforme o propósito inicial desse estudo, é justamente o de explicar essa crença.
E a finalidade essencial da ampla e rigorosa exposição das tradições, ritos e costumes resumida até aqui é, essencialmente, a de fundamentar a análise crítica da "fé sincera" dos adeptos do candomblé.
Uma análise que deixa à mostra a "forma mentis" do clínico, para quem a explicação ou diagnóstico deve derivar de uma ampla anamnese de todos os dados possíveis do quadro clínico.
Afinal, quem faz tal análise é o professor de medicina, guiado pelas "exigências da analyse psychologica em matéria de phreniatria medico-legal".
Assim, reunidos os dados sobre o candomblé, à maneira de um quadro clínico, uma primeira explicação seria atribuir seu surgimento e sua evolução à mera persistência das tradições animistas trazidas da cultura africana. Mas, para o psiquiatra ou freniatra, o fator decisivo seria outro: a crença dos fiéis nos poderes do fetiche ou do possuído.
E essa fé, geradora do respeito devoto aos ritos, aos fetiches e aos seus autores, tem sua razão.
Se a pessoa possuída jamais recorda as coisas extraordinárias que disse ou fez em estado de santo, então quem dançava e proferia oráculos durante o ritual não seria ela, mas alguma entidade sobrenatural que a tinha "tomado", possuído.

"Alienação passageira"
Para o autor, a "convicção profunda e a fé sincera" de pessoas pouco cultas ignora que o estado de santo é apenas uma "alienação passageira e inegável" e "os oráculos fetichistas ou a possessão de santo não são mais do que estados de sonambulismo provocado, com desdobramentos e substituição da personalidade".
Efeitos típicos da "hysteria", segundo a teoria de Pierre Janet, então em voga. Além disso, visto o "fundo extremamente nevropáthico ou hysterico do negro", o sonambulismo poderia ser provocado nele por qualquer estimulação hipnótica.
Tal como a da "monotonia insólita" do batucajé [batida de atabaques], que acompanhava as danças rituais. Tão eficaz como "o tam-tam da Salpetrière para os hystericos de Charcot". Aliás, segundo "todos os negros que tenho visto cair de santo (...) e que pude consultar (...) é a música que os impele para a dansa e d"ahí para o santo".
Mas, se o estado de santo é um sonambulismo devido à estimulação hipnótica, seria possível produzi-lo fielmente numa sessão regular de hipnose.
Tal prova foi feita: Fausta, uma jovem vista antes em estado de santo pelo autor, foi hipnotizada no seu consultório e, após ouvir a sugestão verbal de que soava a música de seu santo, Oubatalá, quando chamada "pelo nome de Fausta disse que não era Fausta, mas sim Oubatalá".
E o "estado em que se achava, o modo de falar eram em tudo a cópia fiel do estado de santo". Mas "Fausta não voltou ainda... para completar seu exame...".

ISAIAS PESSOTTI é escritor e ex-professor titular de psicologia na Faculdade de Medicina da USP, campus Ribeirão Preto.


O ANIMISMO FETICHISTA DOS NEGROS BAIANOS
Autor:
Raimundo Nina Rodrigues
Editora: Biblioteca Nacional/Ed. UFRJ
(tel. 0/xx/21/ 2541-7946)
Quanto: R$ 15 (138 págs.)



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