São Paulo, domingo, 03 de junho de 2007

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O guerreiro imortal

Inspiração para "O Senhor dos Anéis", o épico nacional inglês "Beowulf", do século 8ø, ganha nova tradução para o português

IVO BARROSO
ESPECIAL PARA A FOLHA

De tempos em tempos, os nossos arraiais literários são surpreendidos com o aparecimento de trabalhos de profunda erudição, transpostos de outras línguas, que poderiam parecer restritos a uma pequena parcela de estudiosos, mas que, graças à versatilidade de seus intérpretes, acabam atingindo um número muito mais amplo de leitores.
Em 1998, com reedição condigna em 2004 [ed. Ateliê], tivemos a empreitada de Cláudio Giordano trazendo-nos do catalão o "Tirant lo Blanc", de Joanot Martorell, romance de cavalaria escrito por volta de 1460.

Façanha tradutória
Chega-nos agora de Minas Gerais, pela competência lingüística do professor Erick Ramalho, esta façanha tradutória em que, pela primeira vez, se translada para o português "Beowulf", a saga heróica dos anglo-saxões, considerado o épico nacional inglês.
A transposição foi feita com toda a acuidade do estudioso medievalista, guardando a máxima proximidade com o texto original, mas, ao mesmo tempo, preservando suas qualidades estilísticas e sua beleza poética, o que faz com que esta tradução transcenda o nível universitário dos estudos lingüísticos para se inscrever na qualidade das leituras prazerosas.
Escrito, segundo os exegetas, entre 750 e 800 de nossa era, o longo poema de 3.183 versos narra as aventuras lendárias do guerreiro conhecido pelo epíteto de Lobo do Mel ("bee-wulf"), um eufemismo para designar urso.
Nessa linguagem figurada ("kenning"), freqüente ao longo da narrativa, o mar é por vezes designado "o caminho das baleias" e os reis como sendo "doadores de anéis".
As principais peripécias e escaramuças (não haveria épico sem essas palavras) de "Beowulf" são a batalha contra o monstro Grendel, gigante devorador de seus inimigos, a quem o herói consegue arrancar um braço, levando-o à morte; e a subseqüente luta terminal contra a mãe de Grendel, numa caverna onde jaz o cadáver do filho desmembrado.
Vendo que sua espada Hrunting não prevalece contra a poderosa guerreira, Beowulf consegue empunhar uma das armas da panóplia desta e acaba por matá-la, trazendo como troféu a cabeça decepada de Grendel.
Tornando-se rei de seu povo em tributo às suas proezas, ei-lo mais tarde tendo que defrontar um terrível dragão numa batalha em que os contendores estão submersos nas águas de um lago.

Apoio de Tolkien
Façanhas legendárias que serviram de inspiração a muitos escritores, inclusive modernos. J.R.R. Tolkien, por exemplo, jamais negou a influência deste clássico na elaboração da trama de seu famoso "O Senhor dos Anéis" (ed. Martins Fontes).
Aliás, deve-se a Tolkien haver, em 1936, dado um novo rumo às leituras do "Beowulf", quando sobrepôs os méritos literários do poema ao seu mero valor de exegese lingüística.
Composto em versos com nítida separação espacial entre os hemistíquios, estruturado segundo um esquema de rigorosas aliterações que precedeu o conceito da rima tradicional do fim do verso, o poema serve-se não raro de uma linguagem hierática, que lhe confere o tom e a grandiosidade dos textos medievais.

Imaginário pop
A transcrição inicial do manuscrito não foi feita para o inglês, mas para o latim, pelo intelectual islandês Grimur Jonsson Thorkelin, em 1786, e publicada em 1815; depois, para o dinamarquês, por Nikolaj Frederick Severin, em 1820.
A primeira versão para o inglês moderno data de 1837, feita por J.M. Kemble, e tanto esta quanto as que se seguiram sempre privilegiavam o caráter lingüístico da obra.
Só depois da conferência de Tolkien "Beowulf - The Monster and the Critics" (Beowulf - O Monstro e os Críticos, ed. Norwood) houve traduções mais literárias, culminando com a de Seamus Heaney (2000), poeta laureado irlandês e Prêmio Nobel de Literatura em 1995, que finalmente elevou o texto a obra de arte poética. Mas nem por isso as traduções para o inglês atual cessaram. A última conhecida data de 2004, devida a Allan Sullivan e Timothy Murphy.
Aquela epopéia dos tempos obscuros em que os anglo-saxões começaram a migrar e a estabelecer-se na Inglaterra (séculos 5ø e 6ø), na qual feitos reais e eventos históricos se mesclam com a imaginação dos poetas guerreiros, além de ganhar hoje essas inúmeras versões em livros, já contagiou o cinema, a televisão, as histórias em quadrinhos e até a computadorização animada sob a forma de adaptações, inspiração e reescritas.
E o sucesso de livros como os do filão Harry Potter sem dúvida ecoa o simbolismo mágico daquelas peripécias e escaramuças.

IVO BARROSO é poeta e crítico, autor de "A Caça Virtual" (Record).


BEOWULF
Tradução:
Erick Ramalho
Editora: Tessitura (tel. 0/xx/31/ 3262-0616)
Quanto: R$ 23 (216 págs.)



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