São Paulo, domingo, 03 de junho de 2007

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Mulheres de Cabul

Novo livro de Khaled Hosseini, "Mil Sóis Esplêndidos" repete a fórmula do best-seller "O Caçador de Pipas"

MICHIKO KAKUTANI

Não é tão difícil entender por que o primeiro romance de Khaled Hosseini, "O Caçador de Pipas" (2003, Nova Fronteira), se transformou num grande best-seller. O romance parece uma variação moderna de "Lord Jim", de Joseph Conrad, em que o herói passa a vida lamentando um ato de covardia e traição cometido na juventude.
Ele não só deu aos leitores uma visão íntima do Afeganistão e das dificuldades da vida lá como demonstrou os talentos narrativos acessíveis e muito antiquados do autor: o gosto por tramas melodramáticas, personagens de contorno definido e o destaque para emoções elementares.
Enquanto "O Caçador de Pipas" se concentrava em pais e filhos e amizades entre homens, o novo romance se atém a mães e filhas e amizades entre mulheres. Enquanto "O Caçador" tinha um começo intrigante e tropeçava em artifícios e sentimentalismo, "A Thousand Splendid Suns" [Mil Sóis Esplêndidos, Riverhead, 384 págs., US$ 25,95,
R$ 51] começa de modo esquemático e ganha velocidade e força emocional enquanto se desenrola lentamente.
Hosseini, que nasceu em Cabul e se mudou para os EUA em 1980, escreve numa prosa franca e utilitária e cria personagens que têm a simplicidade e as emoções primárias de um conto de fadas ou de uma fábula.

Circunstâncias infelizes
A simpatia que consegue atrair para elas é resultado menos de suas personalidades (o herói de "O Caçador" era um covarde improvável que deixou de ajudar seu melhor amigo) do que das circunstâncias em que se encontram: enfrentam famílias infelizes, casamentos abusivos, governos opressores e hábitos culturais repressivos.
No caso de "Mil Sóis Esplêndidos", Hosseini rapidamente deixa claro que pretende mostrar as provações sofridas pelas mulheres no Afeganistão, e nas páginas iniciais a mãe de uma das duas heroínas do romance fala com imponência sobre a sorte das "mulheres como nós", pobres e sem instrução, que suportam as durezas da vida, o desprezo dos homens, o desdém da sociedade.
Essa abertura pesada rapidamente dá lugar a eventos ainda mais romanescos: depois que sua mãe se suicida, a adolescente Mariam -filha ilegítima de um homem rico, que se envergonha de sua existência- é rapidamente casada com um sapateiro muito mais velho (Rasheed), homem bruto e porco que diz sentir vergonha de ver "um homem que perde o controle de sua mulher".
Rasheed obriga Mariam a usar burca e a trata com um desprezo mal disfarçado, "passando por ela como se fosse apenas um gato da casa".
A vida da outra heroína do romance, Laila, que se torna a segunda mulher de Rasheed, segue uma trajetória ainda mais inclinada para a ruína.
No início Mariam considera Laila uma rival e a acusa de roubar seu marido, mas, gradualmente, as duas se tornam aliadas, tentando proteger-se das raivas e exigências de Rasheed.

História em quadrinhos
Nos capítulos iniciais, as personagens são tão unidimensionais que parecem de história em quadrinhos. Aos poucos, porém, a capacidade narrativa instintiva de Hosseini toma conta, desfazendo as objeções do leitor.
Ele consegue dar verossimilhança à realidade emocional das vidas de Mariam e Laila e, ao relatar sua rotina cotidiana, nos dá uma sensação do que é a vida em Cabul -tanto antes como depois do duro regime do Taleban.
E narra a "febre do "Titanic'" que assolou Cabul em 2000, quando cópias piratas do filme apareceram na cidade: a população, faminta por entretenimento, recuperou suas TVs (que estavam escondidas e até enterradas nos quintais) e assistiu ilicitamente ao filme tarde da noite, e vendedores ambulantes começaram a vender tapetes Titanic, desodorantes Titanic, pastas de dente Titanic e até burcas Titanic.
Afinal, são esses vislumbres da vida diária no Afeganistão que tornam este romance, assim como "O Caçador de Pipas, tão excitante e distraem nossa atenção de suas inúmeras falhas.

Este texto saiu no "New York Times". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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