UOL


São Paulo, domingo, 03 de agosto de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CACÁ DIEGUES
GANGA ZUMBA/1963

Em Campos, durante as filmagens, numa noite de folga e cerveja, acabei tendo a suprema honra de virar parceiro de Cartola, numa valsa pouco conhecida

Na época em que realizou "Ganga Zumba" você já conseguia viver só de cinema?
Não, eu não vivia de cinema. Eu tinha feito o episódio de "Cinco Vezes Favela" para o CPC [Centro Popular de Cultura] da UNE [União Nacional dos Estudantes], sem remuneração nenhuma. Antes disso, tinha feito também uns curtas em 16mm, absolutamente amadores, com a participação e o apoio de David Neves, Affonso Beato, Paulo Perdigão e outros amigos de geração e faculdade. Na verdade, vivia era de minha atividade como jornalista e de bicos temporários.

Como surgiu a idéia de filmar "Ganga Zumba"? Foi seu primeiro projeto de longa ou houve outro, abandonado no caminho?
Houve outro, baseado em fatos reais, também passados numa favela carioca, como em "Cinco Vezes Favela". Mas antes que eu terminasse seu roteiro, saiu o livro de João Felício dos Santos, "Ganga Zumba", pelo qual me aproximei devido a meu antigo interesse pelo episódio de Palmares, que conhecia desde minha infância em Maceió.

Como se viabilizou a produção?
Inicialmente, por meio de empréstimo pessoal, avalizado por amigos, no Banco Nacional de Minas Gerais, dirigido por José Luis Magalhães, que já tinha emprestado dinheiro para a produção de "Vidas Secas" e estava fazendo o mesmo com "Deus e o Diabo na Terra do Sol", "Os Fuzis" e outros filmes do cinema novo. Havia também o apoio da distribuidora Tabajara, que, durante a produção do filme, teve problemas e parou de operar. Foi aí que Jarbas Barbosa entrou como co-produtor.

Onde foram realizadas as filmagens? Quais foram as principais dificuldades?
A maior parte das filmagens foi realizada no município de Campos, no norte fluminense, por causa de seus canaviais e de seus prédios coloniais rurais. Mas o terço final foi terminado no Rio mesmo, na floresta da Tijuca. "Ganga Zumba" era um projeto de produção ousado demais, nós não tínhamos recursos nem infra-estrutura técnica para fazer tudo o que havíamos planejado. Tive que deixar de filmar grande parte do projeto, encerrando-o com a chegada do personagem principal ao quilombo. "Quilombo", que fiz 20 anos depois, era uma espécie de quitação dessa dívida comigo mesmo.

O compositor Cartola aparece no filme como ator. Como foi isso?
Eu já conhecia Cartola havia algum tempo, mais ou menos da época em que Sérgio Porto e depois Nara Leão o redescobriram. Quando fui fazer o filme, convidei dona Zica e ele para fazerem parte da equipe, além de aparecerem como atores (dona Zica também tem um pequeno papel). Em Campos, durante as filmagens, numa noite de folga e cerveja, acabei tendo a suprema honra de virar parceiro dele, numa valsa pouco conhecida, gravada apenas pelo cantor Luis Claudio. Esse foi também o primeiro filme de Antonio Pitanga fora da Bahia.

Foi o primeiro filme brasileiro feito com elenco quase todo negro?
Acho que sim. Alguns filmes brasileiros já tinham abordado, de outro modo, a questão racial ("Moleque Tião") e da escravidão ("Sinhá Moça"), mas nenhum deles tinha um elenco totalmente negro nem pretendia falar do ponto de vista do oprimido, como o nosso. Ou seja, nenhum deles tinha o mesmo projeto político que "Ganga Zumba".

Como "Ganga Zumba" foi recebido na época, pela crítica e pelo público?
"Ganga Zumba" teve um relativo sucesso de público, ainda que incomparável ao de "Assalto ao Trem Pagador" ou "Os Cafajestes", dois grandes "hits" brasileiros da época. O filme esteve na "Semana da Crítica", em Cannes, no mesmo ano em que "Deus e o Diabo na Terra do Sol" e "Vidas Secas" estavam na competição oficial, em maio de 1964, e ganhou alguns prêmios internacionais em outros festivais. Em geral, os filmes de estréia do cinema novo tendiam ao naturalismo, eram quase documentais, inspirados em temas muito contemporâneos, como o próprio "Cinco Vezes Favela" e outros. "Ganga Zumba" foi uma estréia heterodoxa no movimento, um filme de época, um espetáculo de ficção semi-operístico, uma espécie de expressionismo político que provocou prós e contras na imprensa, uma certa e inevitável polêmica.

Como você o avalia hoje, no conjunto da sua obra?
Como um primeiro filme, com toda a euforia cinéfila e a inexperiência de produção de um realizador que completou 23 anos no set de filmagem. Não costumo muito rever meus filmes, mas imagino que já estejam lá alguns sintomas dos filmes que faço hoje.

OUTROS FILMES: "Quando o Carnaval Chegar" (1972), "Xica da Silva" (1976), "Bye Bye Brasil" (1979), "Um Trem para as Estrelas" (1987), "Dias Melhores Virão" (1988), "Orfeu" (1999) e "Deus É Brasileiro" (2002).


Texto Anterior: Hector Babenco
Próximo Texto: Nelson Pereira dos Santos
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.